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Análise: com Assassin's Creed Mirage (Multi), o lance é bater ou correr em Bagdá

Embora menos grandiosa, a nova aventura da multimilionária franquia da Ubisoft é uma celebração que acalenta o coração dos veteranos.



Assassin’s Creed Mirage (Multi) é a mais nova entrada da franquia Assassin’s Creed e foi projetado pela Ubisoft como uma celebração dos quinze anos da série. Concebido originalmente como um DLC de Valhalla, o título narra, tendo Bagdá como palco, a história do amadurecimento e iniciação de Basim Ibn Is'haq, vinte anos antes da jornada que o levaria até a Inglaterra durante a era das invasões vikings. Mais do que simplesmente desenvolver um personagem notório, o novo game da saga trabalha sob um mote: rejeite a modernidade, abrace a tradição. 

Quinze anos atuando na sombras para servir a luz

Em meados dos anos 2000, a Ubisoft trabalhava em um projeto da série Prince of Persia que se desenvolveu o suficiente para se tornar uma série própria que logo ficou consolidada como um dos pilares da empresa: Assassin’s Creed.




O primeiro jogo, protagonizado por Desmond Miles e Altaïr Ibn La Alahad, tinha alguns problemas consideráveis de game design que só vieram a ser corrigidos na sequência. No entanto, é inquestionavelmente o marco zero de toda a proposta dessa expansiva, transmidiática e multimilionária franquia.

Com o passar dos anos, a série se desenvolveu e, depois de alguns títulos no ostracismo, se reformulou em uma espécie de soft-reboot para assumir um tom próximo ao de um RPG, trazendo campanhas consideravelmente maiores e ambientes mais abertos, abdicando de alguns valores do original que estão intimamente ligados ao gênero stealth, o que resultou na produção de Assassin’s Creed Origins e Assassin’s Creed Odyssey. Foi em Assassin’s Creed Valhalla, o último da trilogia, que esses preceitos tentaram ser resgatados como uma espécie de fechamento de ciclo.




O maior revés dessa proposta, entretanto, é que os vikings não são exatamente conhecidos por sua discrição, o que cria uma espécie de contradição nesse esforço. Ou seja, diante de duas opções, sendo uma delas a invasão em grupo de assentamentos inimigos, que é muito mais divertida e eficaz dentro do contexto, por que escolher a possibilidade que é muito mais trabalhosa?

Assim, Mirage tomou forma. Mais do que uma homenagem às propostas originais da série em termos de gameplay, essa retomada assume um tom irônico a um nível quase metalinguístico, visto que Bagdá, atualmente, é a capital do Iraque, um dos países que hoje ocupam o território conhecido historicamente como golfo pérsico. Ou seja. mesmo que de forma anacrônica, é como se ele resgatasse suas origens não só ao primeiro jogo da marca, mas também a Prince of Persia, seu antecessor espiritual direto. 



Das ruas de Bagdá para a ordem dos ocultos e além

Após se envolver em uma trama da Ordem dos Antigos devido a um roubo que deu errado, Basim, um simples ladrão de rua da periferia de Bagdá, é resgatado por Roshan, que o inicia na Ordem dos Ocultos como sua mentora. Depois de anos de treinamento na base assassina de Alamut, ele é enviado de volta à sua terra natal com a missão de suprimir a crescente influência da facção inimiga na região.




Simultaneamente, ele é atormentado por visões de um gênio (ou melhor, um Jinn), com as quais ele precisa lidar enquanto investiga, localiza e, por fim, elimina os membros dos Antigos infiltrados na alta esfera do califado. São, no total, cinco indivíduos distribuídos por várias áreas de Bagdá, sendo quatro subalternos cujas mortes eventuais fornecerão pistas que levarão ao líder da célula proto-templária.

Dito isso, o formato do jogo é direto e objetivo ao se voltar essencialmente para a tela de investigação no menu principal. Em Assassin's Creed Mirage, a história se concentra inteiramente na eliminação da Ordem dos Ocultos e é isso. Não há malabarismos com personagens principais envolvidos apenas tangencialmente com a Ordem, como aconteceu com Edward Kenway, de Assassin's Creed IV: Black Flag, ou com Eivor, de Valhalla.




Sob o ponto de vista da jogabilidade, existem quatro bases dos Ocultos espalhadas por Bagdá. Cada uma delas serve como ponto de investigação para o membro da Ordem dos Antigos que controla a região. A partir daí, torna-se necessário ir investigando aos poucos, reunindo informações que levem à identificação dos agentes dos Antigos. Gradualmente, o emaranhado revelações vai se afunilando até o líder da Ordem antagonista, que age nas sombras controlando a cidade.

Quando chega a hora de assassinar os quatro oficiais de alta patente da Ordem dos Antigos (antes de fechar o cerco contra o comando de Bagdá), missões especiais e mais elaboradas, as chamadas Black Box, que retornam em Mirage, têm início. Nesse momento, é necessário se infiltrar nos locais com extrema discrição, coletar informações, interagir com civis e outros personagens e se aproximar gradualmente do objetivo.




A graça é que, embora o jogo forneça algumas dicas sobre como esse tipo de infiltração pode ser executado, existem várias maneiras de alcançar tal objetivo. Não é um quebra-cabeça, cuja resolução é única, mas um problema a ser resolvido através da lógica e do contexto apresentado.

Na prática, a campanha se desenrola por meio de quatro narrativas distintas que o jogador pode seguir de acordo com sua vontade. Eventualmente, essas narrativas convergem à medida que são reunidas informações suficientes para revelar a identidade do líder dos Antigos, que opera nas sombras controlando Bagdá




Tal trama se mostra amigável e autocontida até os quarenta e cinco minutos do segundo tempo, quando Basim finalmente descobre a verdade sobre o Gênio que o atormenta, o que tece uma ligação direta com acontecimentos de Assassin’s Creed Valhalla. Em outras palavras, o enredo final do protagonista de Mirage só vai fazer algum sentido para os corajosos que investiram pelo menos umas quarenta horas (chutando baixo) do título viking da franquia.

Embora essa ligação seja interessante, ela falha miseravelmente na hora de contar uma história cuja reviravolta final seja capaz de ser plenamente compreendida por figuras como a de um eventual veterano que tinha abandonado a franquia e decidiu voltar, ou a de um novato que poderia ter escolhido o conto de Basim como sua porta de entrada para a marca.




A dependência de um outro produto mais robusto para a assimilação plena da narrativa só denuncia a condição de Assassin’s Creed Mirage como um antigo DLC que decidiram expandir para se tornar um título próprio, de pretensa independência.

A despeito dessa problemática, o cerne do jogo funciona muito bem. A simplicidade geral na sua proposta é um belo estímulo para os jogadores, pois não há qualquer invenção: basta cumprir as missões apresentadas enquanto explora as ruas de Bagdá, reunindo os colecionáveis espalhados.




Vez ou outra, há também a possibilidade de completar algumas missões paralelas que rendem em bônus diversos, como novos equipamentos e materiais necessários para aprimorá-los, além de pontos de experiência que podem ser usados para desbloquear novas técnicas em três árvores de habilidades distintas.

Um adendo: o áudio em árabe contribui horrores para a imersão no cenário, um verdadeiro acerto do time de desenvolvimento. A localização nacional, por sua vez, também não é ruim, tanto que me vi trocando entre as duas de acordo com o meu humor e vontade para cada jogatina.



"Não pense, apenas pule!"

Os times responsáveis pela série Assassin’s Creed costumeiramente sofrem vários tipos de criticismo, especialmente relacionados à parte que envolve a concisão do produto e estabilidade do software que é o jogo, mas é muito raro deixarem de entregar um mundo imersivo e convincente. A Bagdá de Mirage não é exceção.

Explorar as ruas e os telhados da Cidade da Paz é uma delícia. É ótimo ver um Assassin’s Creed retornar a um ambiente primariamente urbano em vez de fazer o personagem principal correr em campo aberto pela maior parte da campanha. Ainda, o mapa é bem balanceado nesse aspecto, visto que esse tipo de ambiente espaçado ainda se faz presente na periferia na forma do deserto e do bosque de palmeiras nos subúrbios do local. A chave aqui é o equilíbrio alcançado, o que impede que a cidade se torne cansativa, mesmo sendo em uma escala menor.




Com um ambiente urbano bem povoado, o grau de notoriedade volta a ter um impacto bem maior na progressão. É crucial saber escolher entre os momentos certos de atacar as hordas de guardas que tentam eliminar Basim e a hora simplesmente fugir e se esconder para evitar que a bagunça entre em uma espiral ainda mais complicada de se resolver.

Nota-se que a Ubisoft ainda não perdeu o toque mágico: todos os elementos parecem estar nos lugares certos. Um cartaz de procurado, necessário para reduzir o grau de notoriedade, nunca está longe demais. É possível encontrar montes de palha ou cortinas para se esconder a cada esquina. As estruturas que sistematicamente conectam os telhados, como andaimes, grades, caixotes e cordas, também estão minuciosamente posicionadas.




Tudo seria perfeito se não fosse a movimentação do próprio Basim. A primeira impressão que fica é que ele é notavelmente lento. Considerando que o mundo aberto de Mirage é bem menor do que o dos antecessores diretos, faz sentido diminuir um pouco a velocidade do personagem principal, mas a sensação imediata antes de se acostumar com isso é de frustração. Para piorar, como Bagdá é uma cidade bem fechada, chamar uma montaria (que pode ser tanto um cavalo quanto um camelo) acaba não valendo a pena.

Em geral, o parkour funciona na maior parte das vezes. O problema se encontra nas ocasiões em que ele falha, principalmente nos momentos de tensão. A principal dificuldade de Basim, nessas situações, é passar por janelas abertas. O jogo tem dificuldade em fazer com que o protagonista consiga entrar em uma janela logo na primeira tentativa, fazendo com que ele continue escalando a parede por cima dela ou pelos lados.




Apesar de menos recorrentes, alguns tropeços que rendem quedas bobas também acontecem, como cair para fora do monte de palha ou errar a direção de um salto em direção a outro telhado, além de instâncias em que o jogo decide seguir por outro caminho possível, indo contra o sentido indicado pelo direcional do controle. Entretanto, vale o reforço: mesmo não sendo estritamente infalível, o parkour ainda funciona na esmagadora maioria das vezes.

A parte de stealth, por sua vez, foi executada de uma forma tão impecável, com tantas possibilidades de assassinato e infiltração, funcionando de maneira tão fluida, que o título poderia até oferecer um desafio maior. Tudo parece um pouco fácil demais, mesmo nas dificuldades mais altas.




Em termos mais diretos, a inteligência artificial programada nos guardas e inimigos chega a ser quase risível. Se eles fossem um pouco mais inteligentes, Mirage proporcionaria uma experiência mais desafiadora e a sensação de recompensa pela superação seria proporcionalmente mais satisfatória. Em resumo, até mesmo o stealth, que teoricamente deveria recompensar a cautela, beneficia-se de certa ousadia e imprudência

Independentemente dessas questões, Basim conta com um recurso único chamado Foco de Assassino. Trata-se de uma maneira inédita de eliminar os alvos em sucessão sem que a condição de anonimato seja perdida. Esse modo especial permite parar o tempo por alguns instantes, pré-determinar a ordem dos inimigos a serem eliminados e, em seguida, iniciar uma sequência em que o protagonista praticamente hackeia a realidade da Animus e os executa sem ser notado, teletransportando-se entre eles.


Tal técnica tem uma variedade considerável de utilizações contextuais e, em sua versão mais evoluída, pode marcar até cinco oponentes diferentes. Cada alvo eliminado consome um marcador registrado no canto inferior da tela, sendo possível preenchê-lo gradualmente por meio dos assassinatos silenciosos mais tradicionais. É fácil a adição mais interessante de Assassin’s Creed Mirage e tem potencial para se tornar uma mecânica essencial no futuro da marca.

Por fim, o sistema de combate é funcional, mas beira o limitado. Por mais que a ideia fosse torná-lo precário a fim de fazê-lo ser evitado a todo custo, enfatizando o fator stealth, ele não precisava ser tão simplificado, resumindo-se apenas ao movimento de bloqueio e contra-ataque.




Além disso, é possível utilizar no combate o variado arsenal de Basim, composto por armadilhas, dardos soníferos, bombas de fumaça e facas de arremesso, embora essas ferramentas sejam mais adequadas para situações em que o protagonista está escondido, aguardando a aproximação do oponente

O que é uma volta às origens?

A série Assassin’s Creed se evoluiu a um ponto em que qualquer retorno às origens inevitavelmente significará reduzir o escopo e limitar as opções como um todo, já que todos títulos da época da “origem” eram assim, seja por decisão criativa, seja por limitação técnica.




A história de Basim, embora decepcionante em alguns aspectos, carrega um sabor de nostalgia bem agridoce para os verdadeiros veteranos na ordem dos Ocultos, já que Assassin’s Creed Mirage representa uma espécie de retorno ao lar ao escolher o Oriente Médio como o palco de uma aventura em que uma execução limpa e silenciosa será sempre o melhor caminho a seguir. Cheia de problemas? Com certeza. Objetivamente limitada, um produto que fica sempre à sombra da expansividade sem igual de seus antecessores diretos, mais robustos e concisos? Seguramente. Agradavelmente divertida? Sem sombra de dúvidas.

Prós

  • A cidade de Bagdá foi magistralmente reconstruída em uma belíssima e imersiva experiência;
  • Basim é um protagonista divertido e cheio de personalidade, acima da média para os padrões da franquia;
  • A simplicidade da história por boa parte da campanha torna a progressão menos carregada, fazendo com que a assimilação da trama seja mais direta e menos cansativa;
  • Os vários momentos voltados para o stealth, especialmente as missões de Black Box, enchem os olhos dos veteranos na franquia;
  • A adição do Foco de Assassino pode se tornar um divisor de águas na série;
  • A localização de áudio para a língua árabe contribui significativamente para a experiência de imersão no cenário.

Contras

  • História autocontida até o finalzinho, quando o conhecimento prévio acerca dos acontecimentos de Valhalla se mostra necessário;
  • A inteligência artificial dos guardas poderia ser um pouco mais desafiadora;
  • É necessário certo tempo para se acostumar com a artrite na movimentação do protagonista;
  • Não há problema com um combate simplificado, mas não era para tanto;
  • As janelas abertas são os maiores adversários que Basim enfrentará.
Assassin’s Creed Mirage — PS4/PS5/XBO/XSX/PC — Nota: 7.5
Versão utilizada para análise: PlayStation 4
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital cedida pela Ubisoft

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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