Análise: Hell Clock mescla história e brasilidade em um roguelike desafiador

Indie brasileiro se inspira na Guerra de Canudos para entregar uma experiência empolgante.

em 22/07/2025
Desenvolvido pelo estúdio Rogue Snail, Hell Clock é um roguelike de ação com elementos livremente inspirados em um dos episódios mais violentos da história do Brasil: a Guerra de Canudos. Mesclando brasilidade com uma produção de alta qualidade, este indie brasileiro tem tudo para ser um destaque dentro do gênero em 2025.

Canudos, 8 anos depois…

Hell Clock tem como base o sangrento episódio da história brasileira conhecido como a Guerra de Canudos. O evento ocorreu na Bahia durante os anos de 1896 e 1897, quando o exército da recém formada República Brasileira foi responsável por um verdadeiro massacre dos moradores de Arraial de Canudos, um assentamento liderado por Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro.

Foram várias investidas do exército republicano para derrubar o local, que era visto como uma ameaça já que Antônio defendia a restauração da monarquia e pregava valores religiosos conservadores para seus moradores. Sendo assim, em outubro de 1897, após três derrotas consecutivas para os sertanejos locais, os militares realizaram a quarta e última expedição, levando armamento pesado e não poupando nenhum dos canudenses em uma ofensiva feroz e violenta. Antônio teve, depois de morto, a  sua cabeça cortada e levada para Salvador para que sua “loucura” fosse estudada.

Em Hell Clock assumimos o papel de Pajeú, um dos homens de confiança de Conselheiro e um dos líderes da resistência sertaneja contra os militares republicanos. No jogo, o homem retorna do mundo dos mortos oito anos após os eventos em Canudos, na região de Quixeramobim, na Bahia.

O jagunço, espantado com tal fenômeno, percebe que está sob influência de uma estranha habilidade: a capacidade de adentrar o inferno em busca da alma de Antônio Conselheiro, com a missão de levá-la à paz e libertar as vítimas do massacre da tormenta eterna.

Entretanto, Pajeú não é totalmente livre para tal. Ele está amaldiçoado com um relógio que limita o tempo dentro do qual ele pode adentrar no submundo. Quando o cronômetro do artefato chega a zero, Pajeú é forçado a retornar para a superfície para a casa de Conselheiro, para se preparar e adentrar novamente no porão da casa de seu antigo amigo, arriscando tudo novamente para resgatar sua alma e dar a ela o descanso que necessita.

Quando o talento brasileiro e um gênero popular se misturam

Hell Clock é um roguelike de ação com elementos de RPG, no qual assumimos o papel de Pajeú em uma perigosa e desafiadora missão para resgatar a alma de Antônio Conselheiro das profundezas do inferno. Para isso, o antigo homem de confiança do líder religioso contará com a ajuda de João Abade, outra figura histórica do episódio de Canudos, que o guiará e fornecerá os meios necessários para a missão.

Pajeú pode equipar até cinco habilidades distintas para atacar e se defender das criaturas do submundo. À medida em que derrota inimigos, o personagem acumula pontos de experiência e, ao subir de nível, pode escolher melhorias para seus equipamentos. Relíquias com efeitos especiais também podem ser equipadas para fortalecer sua build, tornando-o mais preparado para enfrentar as forças do inferno e alcançar sua meta.

Como todo bom roguelike, Hell Clock testa constantemente as habilidades do jogador. A cada tentativa, os recursos acumulados podem ser usados para desbloquear melhorias permanentes nos atributos de Pajeú, além de novas habilidades que são liberadas conforme avançamos na narrativa principal.

A progressão do jogo ocorre conforme descemos pelos andares do inferno em busca da alma de Conselheiro. Cada nível apresenta novos desafios, inimigos variados, batalhas contra hordas, subchefes e chefes. O grau de dificuldade aumenta visivelmente. Enquanto os primeiros ambientes permitem um controle mais tranquilo da situação, as áreas seguintes introduzem inimigos mais fortes e resistentes, exigindo estratégias melhores e atributos mais robustos.

No entanto, os inimigos não são o único obstáculo. A jornada de Pajeú também é uma corrida contra o tempo. Ao entrar no porão um cronômetro é ativado, e este indica quanto tempo ele pode permanecer no submundo. Se for derrotado ou se o tempo acabar — o que quer que aconteça primeiro — o jogo termina, e o personagem retorna a Quixeramobim, na superfície, para recomeçar com novas melhorias.

Esse sistema de tempo cria um senso de urgência intenso. Diferente de outros roguelikes, nas quais é possível explorar livremente e acumular recursos, em Hell Clock o jogador precisa escolher bem onde gastar seu tempo. Derrotar todos os inimigos de um andar pode render recompensas, mas também consome segundos preciosos, que farão falta nos níveis mais profundos. Há uma opção de desativar o cronômetro, mas isso altera a proposta central do jogo — por isso, é altamente recomendável jogar com ele ativado.

Falo por experiência própria: após muitas horas com Hell Clock, entendi que cada segundo importava. Minha estratégia se resume a uma regra simples: elimine o que puder, corra sempre que possível. É possível desbloquear habilidades que estendem o tempo disponível, mas mesmo assim, cada instante é valioso nessa corrida para libertar a alma de Antônio Conselheiro do inferno.

Quase perfeito

Hell Clock é, sem dúvidas, uma das melhores experiências do cenário independente brasileiro em 2025. Um dos grandes destaques vai para a apresentação geral do jogo. A direção de arte única, a trilha sonora com o som característico da viola sertaneja e a dublagem com o sotaque marcante do povo nordestino chamam a atenção e conferem à experiência um charme especial, deixando claro que estamos diante de algo genuinamente brasileiro.

A jogabilidade, especialmente com controle, é ágil e intuitiva, alinhando-se bem à proposta de urgência para resgatar Conselheiro antes que o tempo se esgote. O desafio crescente, marca registrada dos roguelikes, é um verdadeiro deleite para os fãs do gênero.

No entanto, mesmo com tantos méritos, Hell Clock apresenta pequenas falhas de execução que, embora não comprometam a experiência, impedem o jogo de alcançar a perfeição. O principal ponto, a meu ver, é o balanceamento dos inimigos. Já na segunda área do jogo, mesmo após várias melhorias em Pajeú, fica claro que os adversários se tornam muito mais fortes em um curto espaço de tempo — e isso ainda no primeiro ato da campanha. Imagine a partir do segundo, ou do temido terceiro ato.

As habilidades de Pajeú também ficam restritas aos atos alcançados. Novas técnicas só são desbloqueadas após o término do primeiro ato, o que limita nossas opções de construção de builds no início. O jeito é ser criativo e insistente com o que está disponível até conseguir formas mais eficientes de enfrentar os demônios do inferno.

Outro ponto de atenção está nos menus, que ainda carecem de otimização para navegação com controle. Em praticamente todas as vezes em que precisei equipar relíquias, distribuir pontos de habilidade ou ajustar opções, optei por usar o mouse. Caso o jogo seja lançado para consoles futuramente, esse aspecto precisa ser melhorado para garantir uma experiência mais fluida.

Apesar disso, Hell Clock encerra com um saldo extremamente positivo. É um jogo que dá prazer em jogar — não só pela sua qualidade técnica, mas por ser um projeto que oferece entretenimento sem abrir mão de uma generosa dose de história e cultura brasileiras. Em uma época na qual conhecer nossa própria história nunca foi tão necessário, esse mérito merece ainda mais reconhecimento.

Eita jogo arretado de bão!

Hell Clock é um dos projetos mais marcantes do cenário independente brasileiro em 2025, não apenas por sua qualidade como jogo, mas pelo orgulho que carrega ao retratar um pedaço brutal e pouco explorado da história brasileira. Ele une com competência um gameplay desafiador, ambientação rica e forte identidade cultural, entregando uma experiência única, imersiva e necessária.

Mesmo com ajustes pontuais a serem feitos — especialmente no balanceamento e na usabilidade dos menus com controle —, trata-se de um título que merece ser jogado, discutido e valorizado. É o tipo de obra que prova que o Brasil pode criar jogos que, além de divertidos, têm algo relevante a dizer.

Prós

  • Direção de arte única, com estética forte e coerente com o tema histórico e cultural;
  • Trilha sonora marcante que faz uso inteligente de elementos sonoros regionais, como a viola sertaneja;
  • A dublagem com sotaque nordestino fortalece a identidade brasileira do jogo;
  • Jogabilidade ágil e precisa bem adaptada à proposta de urgência;
  • Um resgate da história nacional, abordando a Guerra de Canudos com respeito e criatividade.

Contras

  • Balanceamento desigual em certas áreas, em que inimigos podem se tornar desproporcionalmente fortes muito cedo;
  • Limitação inicial nas builds com poucas opções de habilidades no early game.
  • Menus pouco otimizados para controle prejudicam a fluidez da experiência, especialmente fora das batalhas.
Hell Clock — PC — Nota: 9.0
Revisão: Juliana Piombo dos Santos
Análise produzida com cópia digital cedida pela Rogue Snail
OpenCritic
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Alexandre Galvão
Fã de Castlevania, Tetris e jogos de tabuleiro. Entusiasta da era 16-bit e joga PlayStation 2 até hoje. Jogador casual de muitos e hardcore em poucos. Nas redes sociais é conhecido como @XelaoHerege
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