As revistinhas Pulp eram um tipo de publicação popular no começo do século XX.
Impressas em baixa qualidade, mas com um estilo artístico e narrativo bem
próprios, elas abrangiam uma variedade de gêneros, embora as de maior destaque
tenham sido as de ficção científica, terror e crime — temas que,
eventualmente, seriam considerados os carros-chefes para o estilo.
The Drifter, desenvolvido pelo estúdio Powerhoof, se utiliza com
maestria dessa atmosfera tão característica emanada por tais magazines a fim
de propor uma abordagem única ao gênero clássico de point and click.
A morte em fluxo
The Drifter conta a história de um homem chamado Mick Carter. Após uma
temporada longe de sua cidade natal por estar obviamente fugindo de certos
traumas do passado que se recusa a encarar, ele acaba retornando a fim de
comparecer ao velório de sua mãe. Entretanto, a situação escala quando ele
se depara com o assassinato brutal de seu companheiro de vagão e se mete em
uma trama de atmosfera conspiratória com um quê de revistas pulp.
A questão é que o sobrenatural entra em cena quando termina por ser
capturado, tem seus pés amarrados a um peso e é lançado em um reservatório
na intenção de que ele morresse afogado. Entretanto, por algum motivo, ele é
incapaz de morrer. Sempre que está à beira do fim, o tempo parece voltar e
ele pode repetir seus últimos momentos de vida, ganhando a oportunidade de
escapar daquela situação.
Nesse instante a história se mescla com o gameplay, já que, na prática,
trata-se de um checkpoint velado que permite ao jogador tentar outra vez,
caso o desfecho não tenha sido positivo. A morte, componente corriqueiro nos
games, é incorporada à narrativa que vai escalando em um horror psicológico
à John Carpenter, cineasta nominalmente mencionado no material promocional
do jogo, que consegue fazer jus à sua obra.
Como um point and click em uma veia mais clássica, seu design se estrutura
na exploração de ambientes que levam à quebra-cabeças que, quando
solucionados, fazem a narrativa progredir. É nesse momento em que o game
brilha, uma vez que a dificuldade parece estar sempre na medida certa. Ao
contrário de vários clássicos do gênero, que contam com cenários poluídos de
múltiplas interações a fim de apenas uma ser a correta, The Drifter é como
um restaurante chique. Ele reduz o leque de possibilidades com o objetivo de
facilitar certas conduções lógicas.
A palavra de ordem, então, é ritmo. Mesmo sem saber o que fazer, nós
dificilmente nos vemos clicando em todos os elementos ao léu ou dando voltas
pelos ambientes disponíveis até chegar em alguma dedução absurda. The
Drifter consegue ser intuitivo em suas resoluções e, mesmo quando a coisa
aperta, o título sempre vai dar algum empurrão ao jogador, nem que seja para
matá-lo para resetar a seção no intuito de fazê-lo recomeçar, com todas as
condições zeradas.
Nesse aspecto, ele me lembrou um pouco o que faz
Ghost Trick: Phantom Detective. O vislumbre da própria morte, em determinadas situações, nos traz o
conhecimento necessário para entender o que aconteceu — geralmente, como
Carter pode se relacionar com o cenário em que está — e tentar mudar esse
destino, encontrando uma solução e, por fim, dando prosseguimento à
trama.
Em The Drifter, nada trava o nosso progresso por muito tempo. A história
está sempre em movimento. É apropriado com o título do jogo, que pode ser
traduzido como nômade, andarilho, aquele que nunca fica parado em um mesmo
lugar.
Outra fonte possível de dicas são as reflexões do próprio protagonista. Sem
uma lista de tarefas tradicional, é possível acessar uma espécie de
inventário de pensamentos que registram as opiniões e interpretações de
Carter sobre vários assuntos distintos. As conversas com os NPCs também
partem sempre desses mesmos assuntos anotados, então é muito difícil que
alguma informação fique para trás ou, pior, nós tenhamos que passar por todo
o diálogo novamente a fim de extrair apenas uma ou duas linhas realmente
úteis para a informação que procuramos.
Horror marginal em poucos bits
Em contrapartida, esses raciocínios temáticos são ilustrados através de
ícones no menu e eles não são exatamente muito intuitivos ou decifráveis.
Nisso, o visual do jogo se mostra um pouco inconstante, uma vez que ele
conta com um pixel art muito bonito, mas alguns elementos na tela são de
difícil distinção.
O problema aí reside nos detalhes. Esses ícones de pensamento, os itens do
inventário, os rostos dos personagens. Até a fonte padrão chega a ser um
pouco incômoda, difícil de acompanhar e cansativa de se ler por longos
períodos. Ela é pixelada, então não era incomum que se tornasse uma bagunça
de pixels quando sobrepostas no próprio cenário. Por sorte, o time de
desenvolvimento chegou a considerar essa possibilidade e adicionou a opção
de simplificação no menu de acessibilidade.
Por outro lado, a nível panorâmico, considerando a visão geral, The Drifter
é impressionante. Os cenários são detalhados na medida certa e contribuem
para o fluxo de jogabilidade fluida do título, sem muitas distrações em
relação aos quebra-cabeças apresentados. Não há muita tralha inútil para se
perder tempo, apenas o essencial está na tela.
Outro destaque fica no uso das cores, que também conseguem exalar com êxito
essa atmosfera de mistério e terror psicológico bem característico das já
mencionadas revistas Pulp. Essa ambiência casa muito bem com os aspectos
sonoros do game, com trilhas sintetizadas que habilmente evocam o sentimento
de mistério paranormal clássico dos anos 80 ao mesmo tempo em que as
atuações de voz foram muito bem dirigidas, acertando o tom sem aquelas
entonações exageradas tão comuns na indústria de games.
Eu só questionaria o uso excessivo da tela preta para algumas situações que
exigiriam animações mais complexas. Está certo que não é fácil fazer pixel
art animado nessa qualidade, mas tem horas que a transição através de fades
incomoda pela frequência. Isso fica um pouco mais chato quando olhamos para
as animações que realmente existem e são sublimes. Logo no prólogo, há um
fuzilamento incrível a nível visual e que consegue ditar muito bem a
qualidade absurda (no bom sentido) que está por vir no resto da campanha.
Adicionalmente, mesmo sendo ágil em sua própria essência, o jogo se
aproveitaria de um botão de avanço rápido das cenas, especialmente depois de
cada morte do protagonista.
Nômade (s.m.): aquele que não permanece em um só lugar; que está sempre em movimento.
The Drifter é um produto que exala todo o respeito e paixão por suas
inspirações, das revistas Pulp ao próprio gênero de point and click, ao
mesmo tempo em que consegue estabelecer sua própria identidade ao combinar
esses elementos com um incomparável sucesso. Com uma narrativa envolvente,
de ritmo preciso, e uma atmosfera noir artesanalmente construída, o game se
mostra uma experiência não só intrigante, mas também acessível e fluida.
Sabendo trabalhar suas influências, ele compreende bem o valor da concisão,
tanto na progressão quanto no design, e, tal como seu protagonista errante,
nunca se permite estagnar, conduzindo o jogador por um memorável mistério de
morte e paranoia e aceitação.
Prós
- Narrativa competente em integrar com sucesso certos elementos de jogabilidade ao mistério que propõe;
- Ritmo bem calibrado, evitando travas frustrantes comuns ao gênero point and click.;
- Quebra-cabeças intuitivos, mas com nível de dificuldade equilibrado, sem menosprezar a inteligência do jogador;
- Ambientação fiel ao clima retrô das revistas Pulp.
Contras
- Alguns elementos visuais são confusos ou mal definidos, como itens de inventário e rostos dos personagens;
- Uso excessivo de tela preta para transições, as quais poderiam ser animadas;
- Embora o ritmo geral da campanha seja exemplar, ainda é sentida a falta de botão para avanço rápido de cenas, especialmente após mortes repetidas.
The Drifter — PC — Nota: 8.0
Revisão: Thomaz Farias
Análise produzida com cópia digital cedida pelo estúdio Powerhoof












