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Análise: Ghost Trick: Phantom Detective (Multi) é um mistério assustadoramente inteligente

Clássico do Nintendo DS finalmente consegue sua democratização de público em uma excelente remasterização.



Ghost Trick: Phantom Detective é um produto concebido por Shu Takumi, a mesma mente por trás da série Ace Attorney e, embora seja um clássico do Nintendo DS, nunca foi realmente um estouro de vendas, mas seus sistemas inventivos foram suficientes para transformá-lo numa espécie de clássico cult, que é venerado incondicionalmente por um nicho seleto de fãs. Depois de vários anos preso ao console de duas telas da Nintendo, o título finalmente recebe uma remasterização capaz de alcançar um público maior.


A trama de Ghost Trick começa com Sissel, um fantasma que acorda desmemoriado em um lixão escuro. Após tomar consciência de seu trágico destino, ele descobre que ganhou a habilidade de possuir objetos inanimados e manipulá-los de várias maneiras. Através desses poderes, nosso herói é capaz de realizar os chamados tricks (truques, em português) para interagir com o mundo dos vivos.

Ao despertar em sua morte, Sissel logo encontra um outro cadáver ao seu lado, o de uma investigadora chamada Lynne. Determinado a descobrir sua própria identidade e ajudar os outros, o herói decide usar seus poderes para evitar a morte de Lynne e resolver o mistério por trás de sua própria identidade e, por consequência, das circunstâncias que envolvem sua morte. 




À medida que Sissel explora o mundo como um fantasma, ele descobre que não está sozinho nessa situação. Ele encontra outros fantasmas, como Ray, um espírito misterioso que lhe dá informações valiosas, e Missile, um cão que também possui habilidades sobrenaturais. Juntos, eles se unem para desvendar uma conspiração maior que envolve assassinatos e segredos ocultos.

Durante a jornada, Sissel descobre que sua morte está conectada a um evento chamado de "Cabanela Incident". Ele precisa encontrar pistas, resolver quebra-cabeças e manipular objetos para alterar o curso dos acontecimentos e evitar que tragédias ocorram. A história é complementada por diálogos bem escritos, personagens carismáticos e um tom narrativo que consegue alternar entre momentos mais sérios e de comédia da mesma maneira que Ace Attorney. 

Uma das principais competências de Ghost Trick está em como ele mescla muito bem a narrativa de mistério com as próprias mecânicas de jogabilidade em puzzle. Essa combinação não é nem de longe uma novidade, mas a principal sacada está justamente na execução e como os elementos de história acabam sendo traduzidos de forma muito competente em sistemas de gameplay prático.




Por exemplo, Sissel, como um fantasma, tem a habilidade de possuir objetos inanimados, podendo manipulá-los de várias maneiras para influenciar o ambiente. Ele pode ouvir conversas, ler livros, acionar alavancas, abrir portas ou fazer com que objetos muito específicos exerçam suas funções, como fazer com que a estrela do topo de uma árvore de natal comece a tocar música. 

De maneira combinada, a morte também garantiu a Sissel uma outra habilidade: a de voltar alguns minutos no tempo antes da morte de alguém. Tal técnica permite que ele intervenha em tais acontecimentos e altere seu curso, efetivamente evitando acidentes ou assassinatos, mudando o trágico destino do dito cujo. 

Considerando que o tempo é um fator determinante, vários dos quebra-cabeças de Ghost Trick funcionam quase como uma música, sendo necessário acertar o momento exato para realizar os truques necessários com os objetos inanimados e, assim, criar uma sequência de ações capazes de impedir o pior. De certa forma, é quase como se fôssemos o Wile Coyote ou o gato Tom montando aquelas armadilhas super complexas para capturar o Papa-Léguas ou o camundongo Jerry, respectivamente. 




A técnica de possessão de Sissel ganha também algumas utilidades extras ao ser realizada em um telefone. Além de poder escutar as conversas e, assim, conseguir dicas valiosas para a resolução do mistério principal da trama, ele também permite que o protagonista viaje entre vários telefones diferentes e, efetivamente, serve como uma forma de justificar as trocas de cenário do game.

Enquanto no original essas mecânicas podiam ser realizadas 100% na tela de toque do Nintendo DS, a remasterização segue com uma dinâmica parecida ao ser possível jogá-la apenas com o apertar do mouse, sendo que os botões podem ser utilizados como simples atalhos, se possível. É claro que, nos consoles, o jogo acaba ficando restrito ao controle, mas a versão de PC acabou conseguindo esse charme a mais, remetendo ao clássico gênero de aventura em point-and-click

O verdadeiro mérito da história do jogo, contudo, é como há uma sinergia com as mecânicas de gameplay, uma vez que o título não tem vergonha de ser um jogo. Não há uma barreira que separa o jogador do universo dentro do game, uma vez que os próprios personagens comentam coisas como “aperte um botão para ler os pensamentos” ou “entre no telefone para desbloquear um menu”. Os tutoriais, apresentados pelos próprios personagens, apresentam todas as mecânicas dessa maneira, não há um menu externo que serve de interface e só é visualizado pelo jogador através de um meta-entendimento. 




Tudo isso é competentemente encapsulado por uma estética bastante charmosa. Os gráficos são estilizados, com ilustrações desenhadas à mão sobre ambientes tridimensionais, criando uma estética única que até serve de incunábula para o estilo hoje conhecido como HD-2D. Nesta remasterização, inclusive, houve um serviço muito competente na transição dos modelos tridimensionais e ilustrações para o HD. É essa, inclusive, a principal vantagem de qualquer visual cartunesco: ele não envelhece da mesma maneira do que um jogo realista. 

Como obra audiovisual, a trilha sonora também não fica para trás, entrando em um conjunto muito harmônico com a direção visual. Composta por Masakazu Sugimori (também responsável por Ace Attorney e Viewtiful Joe), as músicas de Ghost Trick seguem o estilo de melodia chiclete que conseguem fazer com que o jogador as cantarole mesmo quando ele está desligado do título e cuidando da sua vida real. 

Mais do que isso, tal como acontece em Ace Attorney, elas são marcantes o suficiente para representar verdadeiros momentos de reviravolta com a força que acabam exercendo durante sua utilização, terminando de amarrar todo o conjunto que fomenta a atmosfera do game. De bônus, também é possível alternar entre as versões originais e os novos arranjos especialmente para esta versão remasterizada. 




De resto, o único ponto um pouco mais cansativo está na parte da própria escrita. Longe de ser incompetente, deveria haver a possibilidade de controlar a velocidade dos diálogos — uma vez que aquele modelo de exibição letra por letra pode tirar um pouco a nossa paciência. Isso também se aplica a quando recomeçamos algum puzzle e precisamos esperar o tempo certo para que determinadas ações aconteçam. Um botão para rodá-las mais rápido teria caído como uma luva. 

Outro ponto negativo envolve o fato de que os enigmas só têm apenas uma única solução, não se enquadrando no estilo conhecido como problem solver, em que o problema é exposto e o jogador pode solucioná-lo de várias maneiras distintas, sendo elas previstas ou não pelos game designers. É claro que essa questão tem relação com o game design já do original e, portanto, não haveria como mudar nesta reedição. Entretanto, se por ventura uma sequência for contemplada, trata-se de um formato que poderia ser trazido para a mesa. Afinal, menos linearidade aumentaria o fator replay. 



Uma intrigante jornada trazida do além 

A sétima geração de consoles ficou marcada por um pico criativo da indústria, que começou a se aproveitar com as novas formas de jogar que nela se popularizaram, como é o caso tanto dos sensores de movimento do Wii quanto da tela de toque do Nintendo DS. Ghost Trick: Phantom Detective é mais um inventivo título consequente dessa época e que finalmente conseguiu se livrar de suas amarras para alcançar um público mais amplo. Ademais, com personagens carismáticos, visual marcante e jogabilidade singular, o jogo é uma daquelas experiências fascinantes que vez ou outra surgem para nos lembrar dos motivos que nos fazem gostar de videogames, em primeiro lugar. 

Prós

  • Trabalho de remasterização tão impecável quanto a própria direção de arte geral do game;
  • Jogo que não tem vergonha de ser um jogo;
  • Trama tão imersiva quanto inventiva;
  • Embora não revolucione o gênero puzzle, a maneira como ele os tematiza é brilhante;
  • Possibilidade de jogar exclusivamente com o mouse evoca o sentimento clássico de aventuras point-and-click.

Contras

  • Diálogos e outras animações são um pouco lentas dentro de certas filosofias de game design mais modernas;
  • Sendo um puzzle-solver em essência, ele não contempla múltiplas formas de solucionar um enigma;
  • Por conta disso, o fator replay acaba sendo reduzido.
Ghost Trick: Phantom Detective — PC/PS4/XBO/Switch — Nota: 8.0
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Heloísa D'Assumpção Ballaminut
Análise produzida com cópia digital cedida pela Capcom

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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