Ubisoft: por que ela deve continuar, mesmo que ninguém acredite mais

A indústria ainda precisa da publisher francesa, mesmo em seu pior momento.

em 27/06/2025
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Durante muitos anos, a Ubisoft foi uma potência incontestável. Ela não apenas acompanhou a evolução da indústria como também, muitas vezes, liderou-a. Seus estúdios espalhados pelo mundo entregavam com regularidade universos abertos expansivos, personagens marcantes e ideias ousadas que pareciam indicar um futuro brilhante. Durante a geração do Xbox 360 e do PlayStation 3, a Ubisoft era sinônimo de inovação em larga escala. Tinha confiança, ambição e um portfólio que poucos conseguiam rivalizar.


Hoje, o cenário é outro. A empresa vive um período conturbado, seus anúncios não geram o mesmo entusiasmo, os lançamentos não têm o mesmo peso, e a confiança do público parece cada vez mais distante. As promessas de reinvenção são constantes, mas os resultados quase nunca acompanham. O que era uma marca respeitada virou motivo de cinismo, e isso, apesar dos erros, é injusto com a contribuição histórica que a Ubisoft deu aos videogames. Para entender o porquê ela deve seguir em frente, é necessário olhar para trás.

Consistência criativa e os jogos que ninguém mais faria

Antes de ser sinônimo de Assassin’s Creed, a Ubisoft já era uma das publishers mais consistentes da indústria. Rayman, nascido nas mãos de Michel Ancel, ofereceu uma identidade visual única e gameplay refinado em plena era dos mascotes. Prince of Persia: The Sands of Time trouxe inovação com seu sistema de controle do tempo, anos antes de isso virar tendência. E jogos como Beyond Good & Evil mostravam que a Ubisoft não tinha medo de apostar em direções artísticas e narrativas incomuns.

Esses títulos, especialmente os que ficaram fora dos holofotes, são provas vivas da criatividade que a Ubisoft carregava no DNA. Beyond Good & Evil, por exemplo, não teria espaço no modelo de negócios de muitas publishers atuais. Era um jogo de escopo médio, com protagonista feminina e uma ambientação difícil de vender em pitch de reunião. Mas a Ubisoft bancou. E embora não tenha sido um sucesso comercial, foi um sucesso criativo e artístico, que deixou uma marca que perdura até hoje.

Esse tipo de risco criativo era recorrente. Peter Jackson’s King Kong, uma adaptação licenciada que poderia ser só mais um tie-in esquecível, acabou se tornando uma das experiências mais imersivas e atmosféricas da época. Era um jogo sem HUD, com ritmo cinematográfico e decisões ousadas de direção. A Ubisoft era uma das poucas publishers grandes que ainda aceitavam falhar tentando algo diferente.

A era da ousadia (e dos riscos)

Com o sucesso massivo de Assassin’s Creed II, a Ubisoft se viu em uma posição privilegiada: consolidada comercialmente, elogiada pela crítica e com liberdade para experimentar. E foi exatamente isso que ela fez. Em 2012, lançou Far Cry 3, um dos jogos mais marcantes da década e, sem dúvida, um dos mais influentes no gênero de mundo aberto.

Hoje, a ideia de “subir torres para liberar o mapa” virou um símbolo de design repetitivo e fórmulas desgastadas, porém, em 2012, esse sistema era novidade. Era uma forma inteligente de guiar o jogador sem quebrar a imersão e que fazia sentido no mundo do jogo. A estrutura de progressão de Far Cry 3, seu ritmo dinâmico, o carisma do vilão Vaas e a sensação de liberdade total transformaram o jogo em um modelo que seria seguido por toda a indústria, dentro e fora da própria Ubisoft. Esse ciclo de conquista e recompensa se tornaria o novo padrão de mundo aberto fora do eixo Rockstar Games. A influência de Far Cry 3 é inegável, ainda que hoje seja encarada com reservas por ter inspirado tantos clones sem alma.

No ano seguinte, mesmo com Assassin’s Creed já consolidado como sua principal franquia, a Ubisoft não teve medo de sair da zona de conforto. Assassin's Creed IV: Black Flag (2013) alterou drasticamente a estrutura da série ao adicionar exploração naval, combates em alto-mar e um escopo totalmente novo para um mundo aberto. Um risco calculado que poderia ter alienado os fãs de sua principal franquia, mas o resultado foi surpreendente. Black Flag se tornou um dos capítulos mais queridos da franquia, tanto por sua ambientação vibrante quanto pela liberdade proporcionada. Mais do que uma decisão criativa e ambiciosa, o jogo mostrou que a Ubisoft estava disposta a reinventar suas maiores marcas sem medo de correr riscos.

Em seguida, veio Watch Dogs, anunciado com pompa, trailers visuais impressionantes e a promessa de um novo passo evolutivo no mundo aberto urbano. Era a Ubisoft mirando mais alto do que nunca.

Contudo, foi aí que a estrutura começou a rachar. Watch Dogs foi o início de uma quebra de confiança com o público. O “downgrade” gráfico entre trailer e jogo final virou símbolo da dissonância entre marketing e entrega. Pela primeira vez, muitos jogadores começaram a ver a Ubisoft como uma empresa que prometia demais e entregava de menos. E isso seria apenas o começo de uma crise maior.

A queda

A partir de Watch Dogs, a relação da Ubisoft com o público começou a se deteriorar. A questão não era apenas técnica, era simbólica. O estúdio que antes era admirado por arriscar passou a ser visto como manipulador. Vieram práticas corporativas controversas: monetização agressiva, edições deluxe com conteúdo essencial, sistemas de pré-venda que fragmentavam a experiência base. A Ubisoft estava seguindo mais o mercado financeiro do que os jogadores.

Pior ainda foi a postura pública de sua liderança. Em 2024, Philippe Tremblay, diretor de assinaturas da Ubisoft, afirmou que “os jogadores precisam se acostumar a não serem donos dos jogos”. A frase caiu como uma bomba em uma comunidade já desconfiada da transição total para o digital. Mas o impacto não veio apenas pelas palavras, veio também pelos atos.

No mesmo período, em março de 2024, a Ubisoft desligou permanentemente os servidores de The Crew (2014), tornando o jogo completamente inacessível, mesmo para quem o havia comprado legalmente. Não era mais possível jogá-lo, nem mesmo offline. O discurso corporativo se materializava: o jogador realmente não era dono de nada.

Essa frieza contrastava diretamente com a imagem construída nas gerações anteriores, a de uma empresa próxima, criativa, que valorizava o jogador e entregava experiências duradouras. O episódio de The Crew se tornou simbólico: uma ruptura entre a Ubisoft e a ideia de confiança do consumidor, que até hoje não foi totalmente reparada.

As tentativas da Ubisoft de seguir tendências, de jogos como serviço a NFTs, revelaram uma empresa mais preocupada em responder ao mercado do que em liderá-lo, como fazia no passado. O caso de Hyper Scape, seu battle royale futurista lançado em 2020, é emblemático: prometia inovação, porém fracassou em atrair jogadores e foi desligado menos de dois anos depois. Já XDefiant (2024), um shooter gratuito inspirado em Call of Duty, chegou atrasado, sem identidade própria e rapidamente perdeu tração. Foram apostas sem alma, que ilustram bem o desalinhamento entre ambição comercial e visão criativa.

Colaborações improváveis

Com todos os tropeços, ficou fácil para os jogadores esquecerem que, apesar de uma década de momentos ruins e práticas infelizes, a Ubisoft continuou a entregar jogos com sua identidade. Em 2017, a empresa teve a oportunidade de trabalhar com o maior ícone da história dos videogames: Mario. Com a chancela da própria Nintendo, muitos esperavam uma abordagem segura, um jogo de aventura em plataforma ou algo mais próximo do que o público mainstream associaria ao personagem. Entretanto, a Ubisoft fez o contrário: escolheu desenvolver um RPG tático por turnos.

Mario + Rabbids: Kingdom Battle foi uma decisão que contrariava todas as expectativas comerciais. Combinar Mario com os caóticos Rabbids já era incomum, mas colocá-los em um sistema de combate estratégico, num gênero considerado nichado, era quase impensável para um projeto desse porte. Apesar do risco, o jogo foi bem recebido pela crítica, vendeu acima do esperado e mostrou que, mesmo cercada de desconfiança, a Ubisoft ainda era capaz de arriscar e entregar algo inesperado, criativo e com identidade própria.

Essa parceria improvável não apenas foi bem executada, ela simbolizou uma filosofia que, mesmo abalada, ainda resistia dentro da Ubisoft: a vontade de fazer diferente.

Essa mesma capacidade de adaptação apareceu em seus investimentos em grandes franquias licenciadas. Com Avatar: Frontiers of Pandora, a Ubisoft criou uma experiência visualmente impressionante, que capturava a essência do universo de James Cameron. Embora as mecânicas ainda carregassem o DNA de Far Cry, havia ali um esforço legítimo de criar algo bonito, coeso e tecnicamente refinado.

Já Star Wars Outlaws teve um impacto imediato, porém não necessariamente positivo. O jogo chegou ao mercado com grandes expectativas e um dos maiores nomes da cultura pop nas mãos, mas acabou frustrando muitos jogadores no lançamento. Críticas recaíram sobre bugs, design superficial e uma sensação geral de que o jogo parecia mais um produto “fabricado” do que uma experiência com identidade.

Foi um erro da Ubisoft lançá-lo naquele estado. A confiança do público, que já era instável, sofreu mais um abalo. É preciso reconhecer, contudo, o outro lado da moeda: a resposta foi rápida, objetiva e, mais importante, visível. Atualizações vieram em sequência, o feedback foi levado a sério e, em poucos meses, Outlaws recebeu melhorias claras em performance, equilíbrio e experiência geral.

Não se trata de elogiar o erro, mas de valorizar o esforço de correção. Em uma indústria onde muitas empresas simplesmente abandonam jogos problemáticos, a Ubisoft corrigiu o rumo. E, nesse processo, deixou claro que ainda existe disposição para ouvir, consertar e reconquistar parte da confiança perdida.

A experiência que só existe porque a Ubisoft existe

Poucos lembram de Steep, lançado em 2016, porém, para quem jogou, foi inesquecível. Um jogo de esportes de inverno em mundo aberto, com foco na liberdade de exploração, sem combates, sem armas, sem checklists infinitos. Apenas você, a neve e o som do vento nos Alpes. Uma proposta totalmente fora dos padrões da indústria e que só existiu porque uma Ubisoft saudável bancou esse tipo de experiência.

O estúdio responsável, Ubisoft Annecy, talvez seja o segredo mais bem guardado da empresa. Em 2021, eles lançaram Riders Republic, um sucessor espiritual que misturava modalidades como bike, snowboard, wingsuit e mais, tudo com uma energia jovem e absurda. Era ousado, frenético e completamente distinto de qualquer outro jogo de grande orçamento no mercado.

Esses títulos não nascem do acaso. Eles surgem de um ambiente onde ainda se permite errar, tentar e criar algo diferente, mesmo que não vá vender 10 milhões de cópias. E se a Ubisoft continuar encolhendo, estúdios como a Annecy serão os primeiros a serem sacrificados. Perder isso seria perder a parte mais viva e autoral da empresa.

O legado que a má fama não apaga

É fundamental admitir algo que costuma ser ignorado por boa parte do público: a Ubisoft nunca parou de lançar bons jogos. Ela pode ter errado em estratégias, discursos e até em timing, mas em qualidade, variedade e volume, seu catálogo continua sendo um dos mais diversos da indústria.

Não é exagero dizer que seria impossível listar aqui todos os títulos relevantes que a empresa lançou na última década. Para cada lançamento frustrante, houve uma entrega consistente que passou despercebida, muitas vezes não por demérito do jogo, e sim pela desconfiança que a marca carrega.

The Division, lançado em 2016, enfrentou críticas por conta de downgrades visuais, assim como Watch Dogs, mas, apesar disso, foi um sucesso comercial e antecipou tendências que só se consolidaram anos depois, sendo um dos primeiros jogos a explorar mecânicas que hoje definem o gênero extraction shooter.

Assassin’s Creed Odyssey (2018), a segunda fase da reinvenção da franquia, transformou a série em um verdadeiro RPG épico, elogiado pela crítica e indicado a prêmios de jogo do ano. A reinvenção foi ousada, e, para muitos, é o melhor título moderno da saga.

Rainbow Six Siege, lançado em 2015, parecia fadado ao fracasso em seus primeiros meses. Mas com suporte constante e diálogo com a comunidade, o jogo não apenas sobreviveu como se tornou um dos shooters táticos mais influentes da década. Completando 10 anos de atividade em 2025, o jogo continua relevante e competitivo.

Prince of Persia: The Lost Crown, uma nova abordagem de uma franquia clássica em um gênero onde a empresa não tinha tradição recente: o metroidvania. O resultado? Um jogo artisticamente sofisticado, com gameplay elogiado e direção de arte impecável, que, mesmo com desempenho comercial abaixo do esperado, a crítica reconheceu o acerto criativo.

Vale lembrar ainda da reinvenção de Rayman na era PS3/X360 com Rayman Origins e Rayman Legends, dois dos melhores platformers 2D da geração, tanto em animação quanto em level design. Ou dos ambiciosos títulos de corrida da série The Crew, especialmente The Crew 2, que literalmente colocou uma versão inteira dos Estados Unidos à disposição dos jogadores para explorar de carro, moto, barco ou avião.

A verdade é que a Ubisoft entregou muita coisa boa. Só que parte disso perdeu relevância, não por falta de qualidade, e sim por causa da marca Ubisoft em si, que passou a ser tratada com cinismo. Isso é injusto com centenas de desenvolvedores que, mesmo em meio a crises internas e pressões corporativas, continuaram colocando bons jogos nas mãos do público.

O que a indústria perde quando ignora a Ubisoft

É fácil desconfiar da Ubisoft. Ela se colocou nessa posição. Lançou jogos inacabados até mesmo dentro de suas franquias mais valiosas, como Assassin’s Creed Unity (2014), que ainda carrega a reputação de um dos lançamentos mais problemáticos da indústria. Adotou práticas comerciais predatórias, distanciou-se da própria base de jogadores e frequentemente prometeu mais do que foi capaz de cumprir. Mas o que acontece quando empresas assim somem? O mercado fica mais previsível, menos arriscado e competitivo.

Experiências como Steep e The Crew 2 só nascem em ambientes onde há liberdade criativa, dinheiro para sustentar riscos e fé nos desenvolvedores. Com o estado atual da Ubisoft, somado ao desprezo do público por suas práticas recentes, estúdios como a Ubisoft Annecy talvez não tenham mais a chance de realizar sua próxima visão.

Por trás da frieza corporativa e dos erros de gestão, ainda existem equipes apaixonadas, talentos genuínos e projetos únicos sendo gestados. A Ubisoft pode estar passando por um momento difícil, porém descartá-la completamente seria ignorar seu potencial e legado.

A Ubisoft precisa mudar, mas não desaparecer

A Ubisoft já cometeu muitos erros, e precisa responder por eles, mas também entregou ao mundo alguns dos jogos mais ousados, estranhos e inesquecíveis das últimas décadas. Se a empresa desaparecer ou for reduzida a uma sombra de si mesma, perderemos muito mais do que franquias e IPs. Perderemos a capacidade de ver o inesperado surgir de onde ninguém mais teria coragem de apostar.

Ela precisa mudar, mas, acima de tudo, precisa continuar.

Revisão: Alessandra Ribeiro
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Matheus Oliveira
Entusiasta de games e cinema, sempre explorando novos gêneros e estilos enquanto acumula um backlog infinito. X e Instagram
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