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Análise: Pentiment (Multi) traz um design de texto único e uma ficção histórica bem escrita e imersiva

O novo jogo da Obsidian é um fascinante RPG de aventura simples em gameplay e animação, mas cuidadoso e refinado em texto, música e direção de arte.


Desenvolvido pela Obsidian Entertainment, sob a direção de Josh Sawyer, e publicado pelo Xbox Game Studios, Pentiment é uma ficção histórica ambientada no século XVI, na Baviera, durante o período da Reforma e da Contrarreforma no Sacro Império Romano-Germânico.


A trama é contada em um estilo de arte e escrita típicos dessa época. O jogo pode ser definido como uma aventura narrativa com mecânicas de RPG, trazendo algumas variações na trama conforme a exploração do jogador e suas escolhas em perícias e árvores de diálogo. Trata-se de uma fórmula elegante de design que tem resultado em jogos com tramas muito bem escritas como Disco Elysium (Multi) e Citizen Sleeper (PC), cada qual com suas peculiaridades.

Importantes revoltas e reformas históricas cercadas por assassinatos

Sob a direção narrativa de Josh Sawyer (conhecido por Fallout 3, Fallout: New Vegas e a série Pillars of Eternity), Pentiment traz elementos de RPG de mesa para o desenvolvimento de seus personagens principais.

Na criação do protagonista Andreas Maler, por exemplo, é possível determinar sua origem, sua formação e algumas de suas aptidões. No meu caso, estabeleci que ele teria vindo da Itália, onde estudou Direito na universidade e leu muitos clássicos da literatura greco-romana. Esse histórico forneceu-lhe habilidades com italiano, latim e grego, além de boa memória com citações clássicas e marcos culturais.


Em cerca de 15 horas, a trama conta com nove capítulos, divididos em distintos momentos históricos separados por três atos e unificados por um longo mistério na vila de Tassing.

O primeiro ato inicia em 1518, quando Andreas chega nesse vilarejo, na Alta Baviera, para trabalhar na Abadia de Keirsau como “iluminador”, nome que se dava aos artistas que faziam iluminuras (pinturas decorativas em livros). Convém lembrar que nesta época um livro era uma obra de arte complexa cuidadosamente confeccionada a mão, com uma caligrafia altamente estilizada, muitos ornamentos coloridos e desenhos detalhados.

Em abril daquele ano, o protagonista conhece o barão Lorenz Rothvogel, amigo do príncipe-bispo de Freising e benfeitor de Keirsau. Rothvogel mostra-se um nobre muito culto, interessado por arte, literatura clássica e as ideias revolucionárias de Martinho Lutero. Por outro lado, é visível seu desprezo pelos camponeses incultos. Insatisfeito com o trabalho do velho iluminador Piero, o barão contrata Andreas para terminar de ilustrar o manuscrito que encomendara da abadia.




No dia seguinte, Piero encontra Lorenz Rothvogel morto e esfaqueado na sala capitular da abadia. Como a morte do barão certamente prejudicaria muito a reputação da abadia, o abade Gernot se apressou em presumir que o iluminador o teria matado, prendendo-o provisoriamente até que o arquidiácono do príncipe-bispo, Jacob Estler, venha conduzir o inquérito sobre o crime. No entanto, Andreas acredita na inocência do velhinho, então inicia uma investigação própria para que possa deixar o arquidiácono o mais informado possível.

A partir de então, o jogador explora a cidade e os arredores atrás de informações sobre o barão e de pistas e possíveis suspeitos do assassinato. Particularmente suspeitas são algumas notas com uma caligrafia muito sofisticada que são enviadas a todos aqueles que desejavam a morte do barão, incitando-os ao crime. Ao final desse ato, alguém será executado, e suas escolhas vão fazer diferença na sentença do arquidiácono. Aliás, suas atitudes ao longo da história também repercutem a longo prazo nos próximos atos.

A arte imita a morte: várias camadas de embasamento histórico

Sem entrar em maiores detalhes, adianto que Andreas continuará sua investigação no Ato II, tratando agora de outro caso de assassinato. Por fim, no Ato III, 18 anos depois, há outra tentativa de assassinato, e o jogador assumirá o controle de uma personagem diferente, Magdalena, filha do impressor da cidade e amiga de Andreas. Essa mudança de protagonismo não é fortuita, pois proporciona um contraponto feminino e geracional em relação ao iluminador.

Enquanto Andreas é um artista iluminador estrangeiro com uma formação medieval, Magdalena é uma artista de afrescos, natural do vilarejo, está inserida em um contexto crítico em relação às tradições e é filha de um impressor, um dos ofícios mais importantes para o nascimento do Período Moderno.


Devemos lembrar que Pentinent se passa em uma época de profundas transformações através da inquisição, da formação de cidades (burgos) com vários trabalhos liberais, de revoltas contra nobres, um renascimento das artes e dos conhecimentos greco-romanos, da Reforma Protestante a partir das 95 teses de Lutero e do surgimento da prensa móvel de Gutenberg, que tornou semi automatizada a reprodução de livros.

Esses e outros aspectos históricos do período são muito bem abordados no jogo. A escrita de cenário é extremamente rica e imersiva, e há uma densidade impressionante de detalhes e referências que exploram múltiplas facetas da transição do medievo para a modernidade, mas sempre com o cuidado de mostrar como as práticas medievais coexistiam bem ou mal com as novidades culturais e sociais que surgiam.

Tal riqueza contextual pode ser notada sobretudo em revoltas populares durante a trama, diferenças de classes sociais, festas a santos e em numerosos diálogos em diferentes idiomas e com citações da literatura clássica, como Orígenes e Aristóteles, e de filósofos e teólogos como Tomás de Aquino e Erasmo de Roterdã.


Entretanto, o mistério de assassinatos não é tão satisfatório em seu desfecho. Considero que o Ato III tomou algumas soluções artificiais em relação a Andreas e que a personagem Magdalena não foi tão desenvolvida como poderia. Por outro lado, é crível a intenção por trás dos assassinatos, faz sentido naquele contexto histórico, e as investigações são bastante envolventes nos dois primeiros atos.

No mais, como se pode ver nos créditos pela boa consultoria e pela robusta bibliografia, trata-se de uma das ficções históricas mais precisas já feitas em videogames, pelo que também merece ser valorizada.

Uma aventura simples e um pouco repetitiva, mas prática e coerente

Sob a direção de Josh Sawyer e o design de Matthew Loyola, a proposta para a gameplay de Pentiment parte do princípio de que o jogador está dentro de um livro de iluminuras cujos diálogos estão sendo escritos a mão ou com tipos móveis de prensa (depende do personagem que esteja falando). Nesse contexto, mudar de cenário significa passar uma página, e abrir menus para ver status ou mapa significa literalmente consultar um material suplementar para a escrita, como um mapa ou um glossário.

Por sua vez, respeitando a perspectiva de desenho da época, o visual é 2D e a movimentação é side-scrolling. O design e a animação dos personagens também procuram refletir escolhas artísticas próximas ao que se pode encontrar em iluminuras daquele período. Dentro dessas limitações, a jogabilidade é bastante simples: o jogador pode andar dentro de um vilarejo pequeno e seus arredores e interagir com alguns objetos e os habitantes do local.


O coração da experiência está nos diálogos. É preciso ficar atento às suas escolhas; elas afetarão não só o destino da trama em alguns aspectos, mas também como as pessoas julgam você, o que pode inviabilizar certas missões opcionais, por exemplo. Além disso, o background narrativo que você escolhe para seus personagens pode ocultar ou revelar opções de diálogo adicionais, bem como dar acesso a informações que seriam impossíveis de outro modo, como ler um texto em uma língua clássica.

Outro fator de variação na aventura é o aproveitamento do tempo na exploração ou em atividades opcionais, como jogar baralho ou ir a uma caçada. Essa escolha de design captura a ideia cíclica da rotina do século XVI antes e depois de um relógio mecânico ser trazido para a vila de Tassing.


Ao meu ver, esse aspecto poderia ser melhor explorado, mas já é interessante como o jogador pode optar por fazer coisas diferentes com o tempo que tem até o limite do prazo para a resolução de cada assassinato.

Tanto as variações narrativas relativas à árvore de diálogo quanto aquelas relativas ao aproveitamento do tempo possuem um impacto pequeno nos eventos principais e no desfecho da trama, mas são satisfatórios para a imersão nos papéis dos personagens. Porém, a exploração se torna um pouco repetitiva depois do Ato II, posto que o cenário é o mesmo, embora mudem as estações e algumas localidades se tornem acessíveis em circunstâncias específicas.

A experiência também é um pouco prejudicada pelas passagens de páginas durante os cenários. É um conceito interessante, mas aplicado com muita frequência durante as transições. Ademais, seriam bem-vindos mais elementos de RPG para essa aventura. Creio que eles não só poderiam tornar mais interessante a evolução dos protagonistas, como poderiam aprofundar outros aspectos históricos, como economia e aprendizado.

Uma fascinante experiência literária com belas peças musicais para a imersão no século XVI

Sob a direção de arte de Hannah Kennedy, Pentiment traz um design audiovisual muito bem inspirado, profundo e coerente. Quando analisamos um jogo, normalmente pode-se separar com relativa facilidade o texto e o visual, mas não é assim em Pentiment. Ele conta com uma variedade de topografias que faz da experiência de leitura também uma experiência de apreciação visual, um verdadeiro encontro entre a literatura e a pintura, porém de forma interativa na mídia dos videogames.

Acreditando no poder dessa experiência de leitura, os desenvolvedores não usaram qualquer dublagem; a voz dos personagens só pode ser ouvida em canções. Entre as variações tipográficas, é interessante notar como a fala pouco polida ou às vezes até rude dos camponeses se traduz em uma escrita cursiva simples, enquanto as falas dos monges são representadas por uma fonte gótica elaborada. Em contraposição a essas escritas personalizadas, as falas da família de Magdalena são padronizadas conforme um estilo da prensa móvel usada por seu pai.


A escrita é explorada visualmente também por falas em diferentes idiomas modernos, quando personagens estrangeiros chegam à cidade, e por epígrafes em latim ou grego. Há também interessantes abordagens metanarrativas, quando se funde a experiência do personagem estar lendo algo e o jogador estar lendo a atuação de seus personagens. Outro caso interessante é o de um personagem que não pode falar e se comunica escrevendo. Fortalece essa experiência o design dos personagens, que lembra o estilo empregado nos manuscritos medievais.

Contando com o trabalho artístico de Soojin Paek e Emily Cheeseman, um dos aspectos de destaque de Pentiment está em seus magníficos cenários oníricos. Durante seus sonhos, o jogador é levado a um mundo subjetivo de Andreas, onde caminha por labirintos e conversa com santos, deuses, pessoas que conheceu ou figuras históricas como Sócrates. Tudo isso se passa em releituras de cenários pictóricos presentes no imaginário nas obras da época.


Por fim, o jogo conta com um trabalho musical excelente. As faixas não são muito presentes, pois em boa parte da campanha há apenas efeitos sonoros; porém, elas aparecem em momentos estratégicos e causam grande impacto. A música é quase tão circunstancial como deveria ser em uma época sem rádio ou qualquer mecanismo prático para reproduzir o som.

A trilha sonora usa tanto de tons maiores quanto menores, a depender da ocasião, e ritmos típicos do período. As excelentes composições e performances podem ser divididas em dois grupos.

Por um lado, temos o cantochão, que é um estilo de canto monofônico muito comum na música sacra europeia. Pentiment apresenta algumas peças nesse estilo, com letra em latim medieval, em ocasiões em que os próprios monges as interpretam; confira um trecho no vídeo abaixo:


Por outro lado, há músicas com um estilo popular que coexiste com aquele de natureza religiosa. Essas peças populares utilizam instrumentos da época, principalmente alaúde. Em um ponto específico da trama, pode-se assistir a uma apresentação de bardos viajantes. Nesse momento, também dá para notar a diferença da técnica vocal, muito diferente do lirismo dos monges e com uma letra no idioma vulgar local em vez do latim.

De forma ocasional durante a jogatina, conseguimos ouvir algumas músicas de fundo mais simples, com ênfase em cordas, e que auxiliam na atmosfera de tensão e/ou de mistério em determinados pontos da história. Além de ajudar com esses sentimentos, elas também conseguem quebrar um pouco a monotonia de haver apenas efeitos sonoros na maior parte do jogo.

Contudo, também há algumas poucas músicas com instrumentos modernos. Um desses casos é talvez o maior destaque da OST: “Ein Traum”, composta por Kristin “Língua Ignota” Hayter em cima do poema Ich hatte einst ein schönes Vaterland (1832), de Heinrich Heine; confira um trecho no vídeo abaixo:

Uma aventura simples, mas bem escrita e altamente coerente e imersiva como ficção histórica

Apesar de trazer uma experiência de gameplay limitada, às vezes repetitiva, e um tanto simples em elementos de RPG, Pentiment é um dos melhores exemplares de ficção histórica que a mídia dos videogames já produziu.

Sua narrativa possui um mistério engajante com um gameplay acessível, um contexto historicamente rico com vários bons pontos de reflexão sobre a passagem do medievo para a era moderna, um audiovisual coerente e imersivo e, acima de tudo, um design de texto único que faz com que cada palavra lida diga muito mais do que seu mero significado.

Prós

  • História de mistério engajante e bem escrita em sintonia com motivações pertinentes ao século XVI;
  • Contexto de ficção histórica rico e preciso, explorando diferentes facetas da transição do período medieval para o período moderno, sobretudo nos âmbitos cultural e social;
  • Personagens principais que se complementam na visão histórica da obra e com customizações de RPG narrativo interessantes para a vivência da aventura;
  • Audiovisual altamente coerente e imersivo para a proposta do período, fazendo com que o jogador possa apreciar aquele momento histórico através de elementos de sua própria arte, língua e música.

Contras

  • O terceiro ato possui algumas soluções um pouco artificiosas para o desfecho da trama e não desenvolve tão bem o potencial de Magdalena;
  • Alguns recursos poderiam ser mais bem aproveitados para o argumento do projeto, como a dinâmica da temporalidade cotidiana com base no relógio;
  • A gameplay é um tanto simples e repetitiva, faz um pouco de falta um maior desenvolvimento de seus elementos de RPG para torná-la mais rica e instigante naquele contexto;
  • Os cenários poderiam ser mais variados nos dois últimos atos; além disso, às vezes são muito fragmentados e pequenos.
Pentiment — PC/XBO/XSX — Nota: 9.0
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital adquirida pelo próprio redator

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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