Jogamos

Análise: Uuultra C (PC) é uma visual novel BL de luta cheia de personalidade, mas muito confusa

O novo jogo da ADELTA traz uma premissa original e com estética mais rica e estilosa do que nunca, mas com uma trama problemática em vários aspectos.

Desenvolvido pela ADELTA — mesma desenvolvedora de Hashihime of the Old Book Town (PC/Switch) — e publicado pela MangaGamer, Uuultra C é uma visual novel BL (boys love, romance entre garotos) de luta. Visual  Com um estilo cinético, ou seja, sem praticamente nenhuma intervenção de gameplay, o jogo se passa na década de 1970, no final da Era Showa, e mais especificamente no bairro residencial de Soshigaya, em Tóquio.


As lutas na trama surgem a partir de confrontos à moda dos tokusatsus da época, entre herói e “vilões” chamados kaiju (monstros gigantes), envolvendo baixa fantasia e elementos de horror e ficção científica. Os romances BL de Uuultra C se desenrolam a partir de três casais com histórias paralelas em Soshigaya que se complementam em capítulos separados.

Vela destacar de antemão que Uuultra C, na versão sem censura publicada pela MangaGamer e disponível no Steam, é uma VN BL 18+, apresentando cenas sexuais explícitas. Isso não significa que a trama se sustente unicamente em função dessa temática, muito pelo contrário. A trama traz atos sexuais (em boa parte, subentendidos, com cortes de câmera) relacionados a determinados conceitos fantásticos da lore e traz nudez com alguma frequência, enquanto apelo artístico, mas não se trata de um nukige, ou seja, não possui constante conteúdo desse tipo.

Toda visual novel pode ser entendida como uma mistura entre text-adventure e o graphic adventure, mas há diferenças entre elas. A primeira divisão ocorre entre VNs interativas (geralmente não-lineares), como mecânicas de adventure (como de point-and-click), e VNs cinéticas e lineares, limitadas a meramente “passar diálogo e imagens”. Como Uuultra C é um caso desse segundo tipo, de uma VN cinética, esta análise limitar-se-á aos aspectos narrativos e audiovisuais da obra.




Os relacionamentos por trás do confronto entre Ikaros e os kaijus

Apesar de os acontecimentos da história de Uuultra C estarem fragmentados em tramas paralelas de três casais distintos, a narrativa da VN é linear, em uma sequência de três capítulos que cobrem o mesmo espaço de tempo, cada qual para o desenvolvimento de um casal em um contexto diferente da região de Tóquio, o que lembra o design narrativo dos mangás de Nakamura Shungiku (Junjou Romantica e Sekai-ichi Hatsukoi). A trama é ambientada na região de Soshigaya, e não por acaso, mas decorrente de ser um local marcado pela cultura do tokusatsu, como pela escultura do Ultraman na Estação Soshigaya-Okura.

Como se trata de baixa fantasia, os elementos fantásticos são pontuais e colocados dentro de um cenário que representa parte do mundo real (o bairro de Soshigaya na década de 1970). Quanto aos elementos fantásticos, eles estão relacionados aos superpoderes do herói, em seus trajes típicos de tokusatsu, e dos kaijus, incluindo suas transformações em criaturas monstruosas. Contudo, na trama, essas duas forças opostas têm mais aspectos em comum do que aparentam — não posso dizer mais do que isso para não dar spoilers.





Porém, de onde surgiram esses elementos fantásticos em uma Tóquio da década de 1970? Bem… 10 anos antes do período em que se passa a trama, um misterioso monumento apareceu em Tóquio. Desde então, ocorreu uma disseminação de criaturas aparentemente malignas chamadas de “kaiju”. Inicialmente, elas se parecem com qualquer pessoa comum, mas são capazes de se transformar em monstros amedrontadores e com poderes destrutivos. Nesse contexto, surgiu um herói mascarado capaz de lidar com essa ameaça, chamado Ikaros, provavelmente uma transliteração de “Íkaros”, remetendo ao personagem da mitologia grega.

Após o surgimento de Ikaros, o herói passou a ser muito amado pela população local. Por outro lado, as pessoas tiveram que começar a coexistir e até se acostumar, na medida do possível, com potenciais kaijus misturados entre eles. Em ocasiões de um ataque de kaiju, é acionado um som forte, estridente e característico chamado de "sirene do herói", que serve para alertar o herói de que é hora de entrar em ação e “salvar o dia”. No meio desse ciclo se normalizando na região se desenrolam os três capítulos, cada qual seguindo um de três protagonistas ukes/passivos: Kagome Shotaro, Chotsugai Shirou e Sayashi Jyurou.




O primeiro capítulo de Uuultra C será talvez o mais interessante, tanto por seus personagens quanto pelo ritmo em que os mistérios são revelados, porém, apesar de confusa, a trama tem várias superficialidades, é exagerada e muito, muito maluca. Isso se dá não somente em um sentido que possa ser divertido, mas também no sentido de que tira a imersão e a seriedade do que está sendo construído, e às vezes até mesmo no sentido de flertar com temas controversos e acontecimentos eticamente repudiáveis lidados com pouca preocupação.

O casal do primeiro capítulo é composto pelo calmo e tímido jovem Kagome (24 anos), muito fã do herói Ikaros e aspirante a se tornar um ator de tokusatsu, embora tenha que trabalhar em vários empregos para sustentar a si e seu namorado Kodzuka Akira (19 anos), um viciado em mahjong e aspirante a mangaká com um estilo mais “delinquente” e desajeitado, embora seja bem amoroso. Akira atrai problemas como um ímã, mas curiosamente quando a “sirene do herói” soa, ele é o primeiro a desaparecer. Os dois formam um contraste hilário e, ao mesmo tempo, bonitinho, e o desenrolar da história deles revela os conceitos-chave para o enredo.




Por sua vez, o casal do segundo capítulo também tem um ímã de problemas, mas dessa vez é o uke/passivo, o fotógrafo Shirou (27 anos). Crítico, bem aberto com o que sente e pensa, ele é alguém que detesta tanto Ikaros quanto os kaiju, tendo inclusive perdido toda sua família por conta de um deles. Por ironia do destino, seu seme/ativo (embora com figurino um tanto feminino), Isshiki Suzu (também 27 anos), é um belo kaiju que brinca de ser um “Ikaros branco”. Este é um casal que se sustenta muito na premissa de primeiro amor (desde a infância) e o desenrolar de sua história se passa em um contexto em que envolve travestis e uma realidade mais periférica e suja da antiga Tóquio dos anos 1970.

Por fim, o terceiro capítulo é protagonizado por Jyurou (28 anos), um ator famoso, bonito e de origem nobre com uma personalidade pacífica e racional. Apesar de ser uma pessoa contida e equilibrada, Jyurou se sente muito solitário. Seu namorado e “servo obediente” Hibarino Yomi (24 anos) é bem amigável, educado e misterioso.

Como você pode imaginar, os três casais atraem experiências diferentes e estão relacionados a três realidades sociais distintas da região de Soshigaya, assim se complementando na história. A trama ainda conta com bons personagens secundários e às vezes de forma imprevisível e inteligente como só a ADELTA consegue fazer. Entretanto, a forma como tudo é elaborado não se compara com o esmero de seu trabalho anterior. Em Uuultra C, é bom estar preparado não só para um enredo intrincado e confuso, mas também para eventos arbitrários, bizarros e apelativos.






Uma arte rica, estilosa e detalhada acompanhada de boas escolhas musicais para a proposta

É fácil ver o charme visual único e exuberante do estilo de Rinko Kurosawa (criadora da ADELTA) nesta VN, e em alguns sentidos é perceptível um bom aprimoramento em relação à arte de Hashihime of the Old Book Town, que já era incrivelmente bela. As características visuais marcantes de Rinko, sobretudo de sua obra anterior, fazem-se notar em principalmente quatro aspectos: os traços dos rostos de seus personagens; a ambientação em parte do século XX do Japão; grande quantidade de CGs (imagens computadorizadas de alta qualidade) bem estilizadas e expressivas; e o uso de cores bem vivas ou preto-e-branco em contraste com cenários majoritariamente realistas.

Em todos esses quatro aspectos, é possível ver uma evolução em Uuultra C. Os personagens continuam lindos em seus traços delicados, alvos e esguios, mas se na obra anterior alguns deles eram muito parecidos entre si, agora não há esse problema, cada um tem uma identidade visual bem própria, além de que a anatomia física dos personagens está mais detalhada e bem-feita (especialmente notável o avanço nos momentos de nudez). Além disso, a ambientação de época agora, embora menos rica em referências históricas, é mais variada e mais estilizada.






As CGs também são mais numerosas, detalhadas e com efeitos visuais que dão mais dinamismo para os momentos de combate. Particularmente, a cenografia é mais expressiva, além de alternada por momentos quadrinizados, menos detalhados e em preto-e-branco, geralmente para lidar com memórias pouco vívidas dos personagens sobre o que realmente ocorreu.

A maior dificuldade, em se tratando de uma obra de menor orçamento, é lidar com o dinamismo esperado para as lutas. Não há animações durante os combates e isso realmente faz falta para a imersão nesse tipo de proposta. Mesmo que tenha uma boa variedade de CGs nas lutas, elas nem sempre são detalhadas o suficiente ou com bons ângulos para se imaginar o que está acontecendo com a mesma clareza com que é possível imaginar e se imergir em outros momentos da trama.







Quanto à parte sonora, não acho que se possa falar em evolução, mas é uma proposta bem diferente. A proposta musical de Uuultra C, para combinar com seu tema, tende a se afastar de peças acústicas ou de estilos como de jazz etc. Em vez disso, sua OST é rica em timbres sintéticos mais old school, ritmo repetitivo e dançante de pop, harmonia mais alegre e dinâmica, além de melodias simples e grudentas, sobretudo nas canções, as quais são bem produzidas.

Tudo isso faz bastante sentido com o tema da obra, mas, tanto pela natureza de algumas composições quanto pela pouca variedade de faixas, por vezes a música de fundo pode incomodar um pouco na leitura, sendo um tanto repetitiva e desconcertante. A direção de som também é fraca, o que é uma pena, porque mais efeitos sonoros ajudariam bastante na imersão de alguns momentos. Como nas obras prévias da ADELTA, há poucos sons de objetos, ruídos do ambiente etc., embora até certo ponto compreensível, por se tratar de um trabalho indie.

Outro problema é a dublagem. Com raras exceções, como as atuações de Yagami Daisuke (Isshiki Suzu) — que já havia trabalhado em Hashihime of the Old Book Town — e de Sano Yuuri (Kagome Shotaro), a maioria dos personagens possui atuações medianas ou fracas, principalmente para passar emoções em luta e em cenas românticas. Pelo baixo orçamento, o fato de ser uma visual novel boys love com mais cenas explícitas e por ter um clima atípico de ação para um jogo do gênero, é compreensível a dificuldade do elenco, mas ainda acho que poderia ter sido feito um trabalho melhor nesse setor.






Uma obra ao mesmo tempo deslumbrante e desastrosa como o voo e a queda de Ícaro

O problema principal de Uuultra C está no enredo e no formato narrativo. É verdade que sua história é pouco profunda e muito confusa, convoluta e recheada de arbitrariedades, entre as quais, de elementos apelativos e controversos. Entretanto, a premissa da trama tem bastante personalidade e sua execução não é de toda ruim, especialmente porque alguns personagens possuem bons desenvolvimentos.

Além disso, em termos visuais, esta visual novel é o pináculo das obras de ADELTA até aqui, até mesmo um dos destaques em VNs de BL no geral. Em música e som, apesar da obra passar por altos e baixos, suas peças são razoavelmente bem produzidas e condizentes com a proposta. Assim, é uma obra recomendável para quem não se importa muito com algo muito confuso e maluco e esteja atrás de um audiovisual diferenciado e bem-feito em BL com alguns bons personagens.

Prós

  • Numerosas CGs detalhadas, variadas e de alta qualidade;
  • Alguns cenários bem ambientados em relação à época e ao mesmo tempo com design estiloso e expressivo;
  • Há bons personagens (inclusive secundários), e geralmente bem desenvolvidos;
  • Audiovisual adequado para a proposta de tokusatsu da década de 1970, com efeitos visuais e escolhas musicais que contribuem para a imersão no tema, na época e no dinamismo das lutas;
  • As diferentes tramas abordam diferentes realidades sociais complementares dentro da região de Soshigaya dos anos 1970;
  • Possui foco nos romances com alguns bons momentos entre os casais, com destaque para o casal do primeiro capítulo, que é bem carismático e tem uma sintonia única de contraste de personalidades;
  • Temática de luta de tokusatsu bem original em visual novel abordada de forma a problematizar a dualidade vilão vs. herói;
  • Algumas conexões bem-feitas entre as histórias dos três capítulos.

Contras

  • Atuações geralmente medianas ou fracas;
  • Músicas de fundo pouco variadas e às vezes muito repetitivas e desconcertantes para a leitura;
  • Ritmo da narrativa muito confuso e convoluto de forma pouco justificada;
  • Enredo pouco profundo e cheio de arbitrariedades bizarras, elementos apelativos e cenas controversas;
  • Embora tente, a estética não consegue passar muita imersão dinâmica nos momentos de ação de tokusatsu.
Uuultra C - PC - Nota: 8.0
Versão utilizada para análise: PC

Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital adquirida pelo próprio redator

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


Disqus
Facebook
Google