Com o recente lançamento de Death Stranding 2: On the Beach, a franquia de Hideo Kojima voltou aos holofotes de todo tipo de discussão sobre videogame. O primeiro jogo já havia dominado as conversas relacionadas na internet, gerando muita controvérsia especialmente pelo seu gameplay diferente do modelo tradicional de ação AAA. Contudo, o Death Stranding original tem muito a dizer, e grande parte dessas mensagens acaba por se perder nas polêmicas sobre o ritmo do gameplay. Nesse contexto, cabe dar um mergulho pelos temas filosóficos e políticos do game.
Antes de qualquer outra coisa, é preciso contextualizar o universo em que se passa Death Stranding. Nele, houve uma imensa catástrofe que erradicou a maior parte da humanidade quando o limbo entre o mundo dos vivos e o dos mortos “encalhou” no nosso lado dessa divisão. Depois disso, os sobreviventes passaram a viver em bunkers individuais ou em cidades isoladas umas das outras. É diante desse cenário que Bridget Strand, a presidente das “Cidades Unidas da América” e mãe do protagonista Sam Porter Bridges, elabora um projeto para reconectar o país e reerguer a nação. É aí que o jogador entra.
A filosofia holística
O excelente e minucioso youtuber Noah Caldwell-Gervais possui uma análise de Death Stranding na qual aborda também o conteúdo filosófico do jogo. De início, ele avalia que o game compõe uma visão holística sobre as questões existenciais fundamentais, como o que acontece após a morte. Isso significa que todos os aspectos da obra (das mecânicas do gameplay aos diálogos das cutscenes) servem a um objetivo maior: comunicar tal mensagem.
É possível sintetizar a filosofia do jogo em um ato: “construir pontes”. Tanto no sentido literal quanto na alegoria à conexão humana, Death Stranding é todo sobre a construção de pontes. De fato, pode-se dizer que até a polêmica frase de Hideo Kojima sobre o gênero da obra (seria o primeiro jogo “strand-type” – “strand” é uma palavra com mais de uma acepção, mas nesse caso pode-se interpretar seu significado como “cordão entrelaçado”) diz respeito a como o modelo de gameplay com multiplayer assíncrono é inteiramente baseado na colaboração e interconexão entre jogadores que nem sequer se conhecem.
O ato de desbravar o mundo bastante hostil de Death Stranding torna-se muito mais fácil com a construção de apetrechos menores e estruturas maiores (como, literalmente, pontes). Acontece que tudo que se constrói no jogo aparece também na perspectiva de outros jogadores – há uma espécie de sistema de compartilhamento de mundo entre jogadores aleatoriamente selecionados. Dessa forma, a empatia torna-se uma mecânica de gameplay muito importante: quando um jogador se dedica ao melhoramento do mundo, todos os que nele habitam são recompensados. Não é difícil ver aí a mensagem.
A trama acompanha de perto essa noção. Tanto a história propriamente dita quanto a ambientação narrativa da obra se dedicam integralmente ao ideal da conexão humana. A missão do protagonista consiste em conectar as cidades e indivíduos do país em uma “rede quiral”, um tipo de super internet capaz de conectar eficientemente pessoas anteriormente isoladas. Quanto à construção do mundo no qual tal jornada se passa, retomaremos essa questão logo, mas aqui há de se mencionar a fixação da mitologia do jogo com a figura do cordão umbilical. Trata-se de talvez a melhor imagem possível de uma fortíssima conexão entre dois seres humanos.
Um contexto coletivo
Em uma entrevista concedida à BBC na semana do lançamento do jogo, Hideo Kojima comentou o ideário político de Death Stranding. O criador citou a temática de construção de pontes, e enfatizou a atualidade de tal mensagem em meio ao clima político dos dias de hoje. Para ele, o individualismo domina o espírito do tempo, e sua obra é uma resposta ao egoísmo e à divisão que crescem cada vez mais na sociedade. De fato, há uma grande ironia no atual estado de coisas: todos estamos conectados através da internet, mas o isolamento e a solidão se apresentam como implacáveis. Uma autêntica conexão humana, baseada em fortes laços comunitários, parece estar ausente do cotidiano contemporâneo.
É preciso destacar que, tanto na entrevista de Kojima quanto no conteúdo do jogo, há uma ênfase universalista, ao invés de uma mensagem direcionada a um único país ou grupo. O coletivismo de Death Stranding é uma mensagem para toda a humanidade, especialmente importante nos tempos de tamanho ódio nas redes sociais. Nas palavras da lenda dos videogames, “Quando estamos conectados temos uma responsabilidade um com o outro. Mas as redes sociais não parecem ter essa responsabilidade, por exemplo”. É nas relações de responsabilidade mútua em um contexto de comunidade que respiram as ideias políticas da obra.
Uma perspectiva política de um país
Há de se deixar claro que, apesar da intenção universalista de Kojima, Death Stranding é a perspectiva de um desenvolvedor japonês sobre o imaginário dos Estados Unidos. Dessa forma, trata-se de uma interessante visão externa sobre a alma estadunidense. De início, o já citado Noah Caldwell-Gervais identificou um paralelo entre a narrativa do jogo e a história dos EUA: ambas consistem no caminho do leste para o oeste da América do Norte. Enquanto no caso histórico houve um processo bastante violento de expansão da nação, há um outro significado no contexto do jogo. Trata-se da reintegração e reconstrução do país em novas bases: bases de conexão humana.
Para além da história, a cultura estadunidense também cumpre um papel central no panorama de Death Stranding. Há de se destacar que a ética do trabalho duro é um aspecto fundamental dessa cultura; mas também não se pode esquecer que, aqui também, há uma dicotomia entre a vida real e a imaginação do jogo. No mundo real, há uma forte lógica de enriquecimento pessoal, mesmo em um sistema no qual ele é muito difícil de ser logrado. No mundo imaginado por Hideo Kojima, o trabalho duro é dedicado às conexões e ao melhoramento do mundo para o benefício de todos.
Dessa forma, o individualismo é substituído pelo coletivismo da mensagem universal do jogo, mas de uma forma que pode ser integrada naturalmente ao ideário norte-americano. De fato, existe até um paralelo político da atualidade expressando esse novo projeto de país. O lema da missão principal da obra é “Make America Whole Again” (“torne a América inteira de novo”, em tradução livre), uma clara brincadeira com o MAGA trumpista – a substituição aqui é a remoção dos delírios de grandeza da extrema-direita com a inserção do ideal da verdadeira conexão nacional.
A conexão/encalhamento da morte
A língua é outro aspecto bem importante da cultura de um país. Aqui, o jogo se interessa pela dualidade de sentido de uma palavra da língua inglesa e seus derivados: “strand”. Como já dito neste texto, a palavra pode significar algo como “cordão entrelaçado”, significando essencialmente uma conexão. Contudo, “stranding” também pode significar “encalhamento”, como quando baleias encalham em uma praia. É justamente essa imagem que motiva o título do jogo, e o nome do evento apocalíptico que arrasou o mundo da obra. O “death stranding” foi o “encalhamento” da Praia, a transição entre o mundo dos vivos e o dos mortos, no nosso lado dessa divisão. Isso resultou no estranho fenômeno no qual as almas não conseguem fazer a passagem, e permanecem “conectadas” com o mundo dos vivos.
Tal panorama tira bastante inspiração da mitologia egípcia, no que diz respeito ao que acontece após a morte. Todavia, também é inerentemente conectado com a filosofia holística do jogo, tanto no que diz respeito ao funcionamento do universo quanto às suas consequências para as mecânicas do gameplay. Acontece que a violência é um ato de desconexão, e a morte é a desconexão suprema, quando todas as conexões com o nosso mundo são cortadas. O “pulo do gato” da perspectiva existencial de Death Stranding é a investigação da contradição fundamental do título do jogo: a conexão da morte, ou o que acontece quando a morte deixa de representar a última desconexão.
É aí que entra em jogo o gameplay. Após o fenômeno conhecido como “death stranding”, todos os cadáveres precisam ser rapidamente incinerados, ou a tentativa de retorno da alma de quem morreu resultará em uma explosão capaz de destruir uma cidade inteira. Desse modo, o ato mais comum em jogos de ação – matar – torna-se proibitivamente custoso, pois exige uma pausa no fluxo normal de gameplay para levar o cadáver do falecido a um incinerador. Assim, o jogo interage com seu gênero ao rejeitar a violência e a matança que costumam o constituir. A desconexão é preterida em favor de uma forte e universal mensagem de conexão humana.
Por fim, citei mais de uma vez neste texto o vídeo de Noah Caldwell-Gervais sobre Death Stranding, e ele também serviu de inspiração para partes onde não foi diretamente citado. Entretanto, há um trecho do vídeo que me marcou profundamente e que ainda não mencionei aqui. Trata-se de quando se exibe uma pintura do artista japonês Tsukioka Yoshitoshi que se assemelha bastante a um dos momentos mais emocionantes do jogo, perto do início da obra. Me refiro a quando Sam carrega o cadáver de sua mãe Bridget para um incinerador. A pintura retrata o ato folclórico de carregar uma idosa para longe de seu vilarejo para morrer, e a inclinação da colina destaca o esforço do homem que carrega a mulher. Nas duas obras, e nos dois momentos de contemplação aos nossos olhos, impera a tristeza e a brutalidade de saber que é um caminho sem volta.
Revisão: Johnnie Brian








