A problemática
Para contextualizar essa mudança, podemos voltar os olhos para a quinta geração de consoles (PlayStation, Nintendo 64, Sega Saturn), quando os gráficos 3D passaram a ser um diferencial crucial. Naquela "guerra" por supremacia, uma quantidade impressionante de grandes franquias foram lançadas: três Final Fantasy (VII, VIII, IX), quatro jogos principais do Crash Bandicoot, além de múltiplos Tomb Raider, Resident Evil e Metal Gear Solid em um curto período de tempo, são alguns poucos exemplos.
Tudo isso não continuou nas gerações seguintes, e a Rockstar Games é um caso emblemático. Durante a era PS2/Xbox, o estúdio lançou toda a trilogia principal de Grand Theft Auto — GTA III (2001), Vice City (2002) e San Andreas (2004) — em apenas quatro anos. Na geração seguinte (PS3/Xbox 360), o ritmo já diminuía: GTA IV chegou em 2008, seguido por Red Dead Redemption em 2010.
Na era PS4/Xbox One, porém, a queda na quantidade tornou-se gritante. A Rockstar lançou apenas GTA V (2013) e Red Dead Redemption 2 (2018), com cinco anos entre eles. O próximo título, GTA VI, só é esperado para 2026 — mais de doze anos após seu predecessor.
Padrão semelhante segue a Naughty Dog. Na era PS3, o estúdio lançou quatro grandes títulos em sete anos: Uncharted: Drake's Fortune (2007), Uncharted 2: Among Thieves (2009), Uncharted 3: Drake's Deception (2011) e The Last of Us (2013). Já na geração PS4, apenas dois jogos foram finalizados: Uncharted 4: A Thief's End (2016) e The Last of Us Part II (2020), com quatro anos de intervalo. Atualmente, trabalham no Intergalactic: The Heretic Prophet — não apenas o primeiro jogo original do estúdio para a geração PS5, mas provavelmente o único, dada a extensão dos ciclos de desenvolvimento contemporâneos.
Motivos óbvios
A escassez de jogos AAA é impulsionada por uma combinação de ambições técnicas e pressões financeiras. O foco obsessivo em realismo gráfico e de mundo elevou os custos de produção a patamares estratosféricos. Desenvolver ambientes hiperdetalhados, animações cinematográficas e sistemas físicos complexos exige equipes de milhares de profissionais trabalhando por cinco a sete anos — como ocorreu com Red Dead Redemption 2 (custo estimado em US$ 540 milhões) e Cyberpunk 2077. Paralelamente, a demanda por superproduções transformou cada lançamento em um projeto de alto risco: títulos precisam ser simultaneamente obras de arte técnicas, narrativas épicas e plataformas de monetização, gerando uma carga insustentável para os estúdios.
Essa dinâmica é agravada pela pressão dos acionistas por retornos financeiros crescentes. Com orçamentos que frequentemente ultrapassam US$ 200 milhões, as publishers passaram a priorizar franquias "seguras" (Call of Duty, FIFA) e mecanismos de monetização pós-lançamento (loot boxes, DLCs, passes de batalha). O resultado é uma aversão generalizada a riscos criativos: novas IPs são raras, e inovações de jogabilidade são sufocadas pela necessidade de atender a fórmulas consagradas. Prova desse fenômeno é o fracasso de Forspoken (2023): com custos de US$ 100 milhões, vendas abaixo de três milhões de cópias (metade do esperado) e críticas negativas por seu mundo aberto vazio e narrativa superficial, o primeiro jogo da Luminous Productions levou ao seu fechamento e ao abandono definitivo da Luminous Engine pela Square Enix.
A exponencialização do tempo de desenvolvimento completa o ciclo vicioso. Enquanto um Grand Theft Auto da era PS2 levava dois anos com equipes de mais ou menos 50 pessoas, projetos atuais demandam mais de cinco anos com centenas de especialistas: programadores de sistemas complexos, artistas 3D hiper-realistas, designers de mundo aberto e engenheiros de física/motor gráfico. Um único mês de operação pode custar muito caro na folha salarial. Essa complexidade não só reduz lançamentos, mas inviabiliza projetos mais ousados.
Uma solução
A crescente escassez de jogos AAA tem encontrado um contraponto estratégico na ascensão dos jogos indies e AA, que oferecem alternativas viáveis tanto criativas quanto comerciais. Esses projetos combinam desenvolvimento ágil, inovação de jogabilidade e orçamentos sustentáveis, preenchendo lacunas deixadas pelas superproduções. Stardew Valley (criado por um único desenvolvedor) e Among Us (equipe inicial de cinco pessoas) demonstram como experiências cativantes podem surgir com recursos mínimos, gerando não apenas sucesso crítico mas retornos impressionantes — Stardew vendeu 41 milhões de cópias, enquanto Among Us atingiu 500 milhões de jogadores ativos.
No espaço intermediário, os jogos AA, como Expedition 33 (focado em narrativa profunda com tecnologia acessível) e Split Fiction (que reinventa gêneros clássicos com mecânicas inovadoras), operam como ponte entre a ousadia indie e o polimento AAA. Estúdios como Ember Lab (Kena: Bridge of Spirits) e A44 Games (Ashen) provam que é possível criar mundos imersivos com equipes de 15-50 pessoas e orçamentos entre US$ 5-20 milhões, fração dos custos AAA. Até a Sony reconheceu esse valor ao elevar ASTRO BOT — originalmente uma experiência técnica — a jogo completo aclamado, ganhando até como jogo do ano no The Game Awards, demonstrando que inovação e charme podem superar orçamentos bilionários.
Paralelamente, a Nintendo consolida-se como prova definitiva de que tecnologia avançada não é pré-requisito para sucesso massivo. Enquanto concorrentes perseguem gráficos 4K e ray tracing, a gigante de Kyoto prioriza design criativo e jogabilidade refinada. Franquias como Animal Crossing: New Horizons (vendeu 45 milhões) e The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom (dez milhões em três dias) alcançam recordes com hardware modesto, demonstrando que inovação conceitual supera poder bruto. Seu Switch, tecnologicamente inferior aos concorrentes desde 2017, tornou-se o terceiro console mais vendido da história (mais de 141 milhões) graças a experiências únicas como a transformação de controles Joy-Con em ferramentas de pesca em Ring Fit Adventure ou a física experimental de Super Mario Odyssey.
Essa filosofia ecoa nos indies: Hollow Knight comprova que atmosfera e level design superam polígonos, enquanto Palworld (25 milhões em um mês) mostra que combinações criativas de gêneros cativam mais que gráficos realistas. A Nintendo opera como farol dessa mentalidade — seu Labo VR, usando papelão e lentes simples, ofereceu realidade virtual acessível anos antes do Meta Quest Pro, priorizando acessibilidade sobre tecnologia de ponta.
Essa diversificação não é um paliativo, mas uma reestruturação saudável: enquanto os AAA se concentram em experiências cinematográficas, indies e AA revitalizam gêneros abandonados (Sea of Stars ressuscitando RPGs 16-bit), exploram narrativas ousadas (Norco) e testam mecânicas arriscadas (Baba Is You). O resultado é um ecossistema mais resiliente no qual criatividade e sustentabilidade coexistem, oferecendo aos jogadores um fluxo constante de experiências genuínas sem depender exclusivamente do insustentável modelo AAA.
AAA mais raros?
Se as tendências atuais persistirem, os jogos AAA caminham para uma crise de sustentabilidade sem precedentes. Estúdios podem levar mais de seis anos para concluir um único projeto — tempo suficiente para uma geração inteira de consoles chegar ao fim sem que novas IPs sejam lançadas. A Rockstar ilustra esse cenário: enquanto no PS2 lançava três jogos principais em quatro anos, agora dedica oito anos a um único título (GTA VI), consumindo todo o ciclo do PS5/Xbox Series.
A ascensão de serviços como Game Pass e cloud gaming acelera essa transformação. Se consolidados como modelo dominante, substituirão a necessidade de hardwares poderosos — e com ela, a lógica de jogos que exigem orçamentos bilionários. A Microsoft já sinaliza essa mudança: 60% de seus investimentos são direcionados ao Game Pass, não a exclusivos AAA tradicionais.
Diante desse quadro, a reinvenção torna-se inevitável. Como provam os indies, os jogos AA e a estratégia anticonvencional da Nintendo, o futuro está em experiências escalonáveis e criativamente ousadas. Animal Crossing: New Horizons é um ótimo exemplo: priorizou o engajamento social em vez de gráficos ultrarrealistas, vendendo 45,36 milhões de cópias, com um custo de US$ 15 milhões para seu desenvolvimento. Por outro lado, Cyberpunk 2077, mesmo com um investimento de US$ 316 milhões, vendeu 30 milhões de cópias.
Os AAA não desaparecerão, mas sua escassez forçará a indústria a redefinir prioridades: orçamentos enxutos, ciclos de desenvolvimento realistas e inovação que transcenda corridas tecnológicas. Nesse novo ecossistema, um jogo feito por uma pessoa poderá valer mais que dez franquias bilionárias — não em polígonos, mas em alma.
Revisão: Vitor Tibério