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Análise: Lost Eidolons (PC) é um TRPG que concilia gameplay clássica com estética imersiva e realista

Embora possa ser mais polido, este é um feliz encontro entre a gameplay de Fire Emblem e a direção cinematográfica dos RPGs ocidentais.


Desenvolvido e publicado pela Ocean Drive Studio, sob a direção criativa de Jin Sang Kim, Lost Eidolons é o jogo de estreia deste estúdio indie sul-coreano, fruto de três anos de trabalho sob financiamento no Kickstarter. Trata-se de um RPG tático medieval com alguns elementos fantásticos, foco narrativo político-militar e uma jogabilidade que procura conciliar a fórmula clássica oriental de Fire Emblem com um tom estético e narrativo próximo de séries ocidentais de CRPG como Baldur’s Gate, Dragon Age e Divinity: Original Sin.

Um Império em um ciclo de ruína alimentado por vingança e desconfiança

A história se passa em Artemesia, um continente dividido em sete reinos feudais que foram conquistados e unificados em um império. O conceito do mundo é realístico, fortemente inspirado pelo contexto feudal europeu, mas com algumas inspirações fantásticas pontuais, como para usuários de magia e para a concepção de alguns monstros, mesmo que sejam criaturas pouco presentes nos campos de batalha.

Nesse cenário, o imperador Ludivictus encontra-se em idade avançada, o que impõe a escolha de um sucessor ao trono, mas algo mais preocupante povoa sua mente: chega ao seu conhecimento uma profecia sobre duas feras divinas ancestrais, os Eidolons, que estariam relacionadas a um possível destino trágico do continente.


A partir de então, o monarca começa a agir de forma desmedida e imprevisível, queimando locais do reino, perseguindo quem conhece a profecia e atacando ferozmente seus opositores políticos. Não há ninguém que assuma uma liderança antagônica ao império, mas não faltam rumores de rebelião diante de suas súbitas expedições militares que deixam rastros de vingança, sangue e medo.

Alguns desses rumores chegam a uma pequena província litorânea chamada Benerio. Nessa região, o jogador segue um pequeno grupo de mercenários liderado por Even, que assume para si missões menores para ajudar as pessoas do povoado. Em uma de suas façanhas, ele acaba sendo considerado um fora-da-lei, mas encontra proteção junto a dissidentes das forças imperiais e alguns civis provincianos insatisfeitos com a política local.


Esses eventos marcam o início de uma longa guerra civil que dividirá a aristocracia, os generais e o povo, e só acabará após os mistérios por trás da tal profecia serem esclarecidos e o Império assumir uma soberania estável. O exército rebelde toma Benerio, viaja para outros feudos e busca aliados tanto na nobreza quanto à margem da lei, mas tal aliança não se mostra algo simples, já que membros importantes da rebelião não são muito confiáveis.

Para piorar, os aliados de Even possuem interesses distintos nessa história, vários dos quais contrários entre si, gerando profundos conflitos internos, sobretudo na segunda metade da campanha. Desse modo, o jogador se vê em uma árdua jornada para lidar com diferentes desejos de vingança e poder.


A obra aborda temas como de classe social, mas a todo momento é movida mesmo pelo que se chama nas tragédias gregas de hýbris, um estado de “desmedida” que caracteriza alguém que tem descaso pelos outros (ou pelo divino), achando que pode fazer tudo que quiser. Nesse sentido, alguém com hýbris manifesta-se com vícios como arrogância, presunção e ganância.

Ao descobrir sobre uma profecia, por exemplo, o personagem tenta ir contra a vontade dos deuses, e ao descobrir uma oportunidade de ter poder, não a deixa escapar mesmo que possa prejudicar outras pessoas. Tradicionalmente, a punição dessa atitude é a vingança (nêmesis), e assim acontece em Lost Eidolons, com uma história marcada por personagens que cavam sua própria ruína pela arrogância e presunção em relação a outros homens ou às profecias.

A trama possui mais de 30 horas e foi dividida em 27 capítulos. Ela se inicia com um prólogo que é retomado um pouco depois da metade do jogo. Fora esse desvio, todo o resto é linear. Há escolhas de diálogo, mas elas não interferem no conteúdo principal. O ritmo é sempre dramático, sério e com boas reviravoltas, embora algumas sejam um tanto abruptas.


O xadrez político possui bons papéis, porém poucos personagens memoráveis. O protagonista poderia ter mais nuances, e alguns vilões acabam sendo um tanto caricatos, mesmo quando conseguem ser verossímeis em suas ambições. No mais, é uma boa tragédia épica dentro de sua proposta.

Quanto ao texto, ele é claro e direto na trama geopolítica de fundo, porém com muitos diálogos opcionais durante os acampamentos que acrescentam pouco. Em ambos os casos (narração e diálogos), é sempre tranquilo de acompanhar em português, embora com legendas muito pequenas.

Um gameplay clássico bem-feito, mas com um level design que demora um pouco para engrenar

Como esperado de um TRPG, Lost Eidolons possui uma mistura de design de RPG com estratégia tática por turnos (TBT). Entre as mecânicas de RPG, temos os sistemas de job (10 classes finais) e nível (até 50), além de gerenciamento de itens, equipamentos e habilidades. Há mais de 20 personagens jogáveis, cada qual com slots para armamento primário e secundário, livros (no caso de usuários de magia), roupa, acessório e montaria.

Raros e valiosos, os cavalos são usados para aumentar a movimentação de personagens sob o custo de um pouco da precisão de seus golpes. As unidades também podem levar para as batalhas até três consumíveis, como poções e bombas. Os atributos e os poderes são distribuídos automaticamente conforme o nível e a classe, mas é possível equipar previamente as habilidades passivas e ativas que estarão vigentes em combate.


Assim como na série Divinity: Original Sin, podemos interferir no cenário. Dá para queimar uma floresta para causar dano a quem passar por ali ou apagar o fogo com um poder de água. Além disso, há variáveis ligadas ao ambiente. Quando molhadas, por exemplo, as unidades movimentam-se lentamente e podem sofrer mais dano com ataques de raio.

O design tático é muito semelhante ao das séries Fire Emblem e Langrisser. Diferentemente de jogos como Final Fantasy Tactics ou Triangle Strategy, não há uma alternância dinâmica entre as unidades do jogador e as de seu adversário, mas sim um ritmo de turno um-para-um entre exércitos. Isso significa que em seu turno você pode mover todos seus personagens e, passada sua vez, seu oponente pode fazer o mesmo com os dele.


Os cenários de batalha não possuem verticalidade e consistem em tabuleiros não muito grandes, elaborados para partidas com um número limitado de turnos (normalmente 20). É preciso cumprir objetivos dentro desse limite e com no máximo 10 unidades posicionadas, cada qual podendo ter uma outra de suporte. Em geral, basta simplesmente eliminar todos os inimigos, mas há exceções.

Em cada transição de capítulo, é possível entrar em uma missão de batalha opcional. Esses combates são genéricos e repetitivos, e somente servem para grinding ou para obter itens para sidequests. O level design das fases principais também é simplista, mas passa a melhorar após a retomada do prólogo na história, o que demora um pouco, infelizmente.

A partir de então, há maior variação de objetivos, envolvendo também estratégia furtiva, emboscada e resistência, além de maior interação com objetos como balistas, portas e barricadas, e os exércitos dos oponentes são mais desafiadores.

Desse ponto em diante, podemos usar um poder especial ofensivo em área com Even. É um adicional interessante, mas que poderia ser melhor desenvolvido; ainda que seja um elemento narrativamente importante, tem pouco impacto na prática.




Após cada capítulo, o jogador controla Eden em um acampamento, como em Dragon Age. Você pode fazer negócios, treinar, encontrar itens, entregar presentes e conversar, aumentando seu nível de liderança, expandindo a base e aprofundando o elo de amizade com seus amigos. Relacionamentos mais desenvolvidos enriquecem o enredo, mas trazem pouco benefício em combate, se comparados a outras séries com esse elemento.

Outra coisa que merecia maior profundidade em Lost Eidolons é o permadeath. Assim como em Fire Emblem, ocasionalmente os personagens morrem permanentemente na guerra, mas isso infelizmente não afeta em nada a trama, já que os personagens principais aparecem normalmente no acampamento e em cutscenes.




Para evitar a morte, pode-se retroceder turnos, mas só de forma limitada, restrito a 10 vezes ou um pouco mais, dependendo de seu nível de liderança. Apesar disso, há uma fase em que praticamente é obrigatória a morte de uma unidade para a distração do inimigo. 

Por fim, é sempre bom ter um pouco mais de transparência das variáveis do jogo, o que ajuda no cálculo tático em momentos mais difíceis. Seria útil que se mostrasse, por exemplo, as chances de acerto de uma ofensiva e de golpes críticos. Alguns efeitos negativos e positivos também poderiam ser indicados de maneira mais intuitiva.

Um TRPG indie com aspirações a AAA

Sob a direção de arte de Zaixun Lee e a direção técnica de Junil Oh, Lost Eidolons traz uma experiência de usuário e interface (design de UX/UI) eficiente combinada com transições bem fluidas para animações de ataques. O jogo também conta com várias cinemáticas, voice acting e boa iluminação e modelagem em Unity 3D que fazem jus às suas inspirações em AAAs ocidentais, além de detalhadas ilustrações para cutscenes narradas.

Contudo, há alguns defeitos e limitações. Na maior parte dos diálogos, opta-se por um fundo estático ilustrado, o que empobrece a cenografia e impossibilita a interação direta entre os personagens. As cinemáticas costumam ser breves e em cenários limitados, a sincronização labial com o voice acting não é boa e os menus são um tanto crus em design e pouco otimizados.


Por fim, vale salientar que há alguns errinhos técnicos, mas que devem ser corrigidos por meio de atualizações. Em alguns capítulos, por exemplo, ao usar uma barreira de gelo, apareceu no campo uma imagem diferente do que deveria em locais congelados. Entretanto, nem esses erros menores, nem os defeitos antes mencionados obscurecem o fato de que Lost Eidolons faz um ótimo e imersivo trabalho técnico e artístico dentro de suas limitações.

Algo que também contribui para essa imersão é a trilha sonora, composta por Clark Aboud (Slay the Spire), que proporcionou um bom número de faixas. As melodias não são tão marcantes, mas há uma variedade razoável, além de que as peças não soam repetitivas e capturam tanto a sobriedade necessária para o raciocínio tático quanto a epicidade sombria da narrativa.


A OST é quase toda em cordas, frequentemente acompanhadas de percussão. Há também a voz de sua irmã, Sophie Aboud, em duas músicas. A harmonia é bastante dramática, tensa e um pouco dançante, como que em uma marcha, mas também tem momentos suaves. Em traços gerais, o estilo lembra Game of Thrones e The DioField Chronicle, mas é mais impetuoso.

O compositor dá ênfase a melodias simples, mas com intensidade, sons graves, algumas dissonâncias, tons menores e um ritmo bem marcado em velocidade moderada. Essas escolhas contribuem para uma experiência ao mesmo tempo impactante, imersiva e pouco enjoativa.

Uma boa execução de “Fire Emblem ocidental”, e que seja apenas o primeiro

Eu tenho algumas ressalvas técnicas, artísticas e de escrita de personagem, e acho que o level design poderia ser mais variado e desenvolvido desde o início, mas não tenho dúvidas de que Lost Eidolons traz como nenhum outro RPG tático até então um encontro entre Fire Emblem e uma estética ocidental imersiva, trágica e épica. Torço por sequências que explorem o continente de Artemesia e o tornem ainda mais interessante.

O jogo de estreia da Ocean Drive Studio tem um audiovisual sólido e consistente, está bem escrito para seu propósito e tem uma gameplay que deve agradar tanto a novatos no gênero (em modo casual) quanto a veteranos, se jogado em modo normal ou superior e com permadeath.

Pros

  • Boa customização das unidades;
  • Audiovisual bem-feito, imersivo e coerente;
  • Um mundo interessante, com uma fantasia contida e bem escrita;
  • Gameplay bem balanceada para novatos e veteranos;
  • Proposta inspirada e que preenche uma lacuna no mercado de TRPGs;
  • Transições fluidas para animações em batalha.

Contras

  • Level design subdesenvolvido em boa parte do jogo;
  • Alguns personagens poderiam ser melhor escritos, dando mais nuances a seus papéis;
  • Experiência maçante no acampamento e nas missões opcionais;
  • O Permadeath poderia ser melhor pensado no level design e no design narrativo, bem como a habilidade especial do protagonista;
  • A cenografia poderia ser melhor desenvolvida, principalmente fora das batalhas, durante diálogos em outros locais que não o acampamento;
  • O design de UX/UI é eficiente, mas poderia ser mais rico e intuitivo em batalha, usar uma fonte maior para as legendas e ter menus mais elegantes para a customização das unidades.
Lost Eidolons — PC — Nota: 8.0
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital cedida pela Ocean Drive Studio

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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