Discussão

(Ainda) existe vida entre os AAA e os indies

Realidade: quem pode estar com os dias contados são justamente esses dois extremos.


Um verdadeiro AAA é relativamente fácil de identificar. Segundo o The Videogame Style Guide And Reference Manual, um guia de estilo visando a imprensa de games produzido justamente para tentar criar uniformidade e definir com exatidão certos termos da indústria, um AAA é “um jogo de alta qualidade que se espera figurar entre os mais vendidos do ano”. Só depois que ele completa que são títulos que usufruem de orçamentos maiores para sua produção. 


O termo é recorrente na indústria desde o começo dos anos 2000, quando os videogames começaram a contar com produções de grande porte e precisavam se diferenciar de outros títulos de menor escopo. Foi mais ou menos quando os games cinematográficos como Final Fantasy VII e Metal Gear Solid começaram a ganhar espaço. Isso, consequentemente, tem muito a ver com a definição que categoriza os títulos AAA como jogos que têm alta expectativa de venda, uma vez que, se eu invisto mais em alguma produção, obviamente viso um lucro proporcionalmente maior.

Usualmente, a categoria AAA hoje em dia é utilizada para se diferenciar dos chamados indies. Ainda segundo o Style Guide and Reference Manual, um indie se refere a “qualquer jogo ou empresa não afiliada a uma distribuidora maior. Esses games geralmente têm orçamento menor e/ou são financiados somente pela própria desenvolvedora”. 

Nota-se que, quando a definição de AAA surgiu, os jogos independentes existiam, mas eram bem menos disseminados, além de raros porque autopublicação era algo complicado. Tais títulos necessariamente precisavam ser distribuídos de forma física (cartuchos, CDs ou disquetes), visto que plataformas como Steam eram um sonho distante. Eles literalmente eram produzidos e distribuídos de maneira independente, tal como seu nome diz. 

Obviamente, o mercado mudou bastante com o tempo. O Steam teve um papel importantíssimo nesse aspecto porque promoveu a acessibilidade. Paralelamente, os jogadores começaram a se incomodar com práticas predatórias promovidas pelas grandes empresas e passaram a ver os games independentes como os últimos bastiões de game design apaixonado.

Contudo, algo muito importante é que essa dicotomia entre AAAs e Indies é extremamente rasa e, ao menos por enquanto, ainda existe vida entre essas duas classificações. 



Duplo A: um A para o dinheiro, outro A para o refino técnico. O que falta é a grife

Tendo em vista os jogos AAA como o crème de la crème da indústria, os principais lançamentos do ano e verdadeiros monstros midiáticos cuja atenção chama até daqueles que não estão tão envolvidos assim no meio, existem vários outros lançamentos de algum destaque e que não são independentes o suficiente para serem considerados indies. 

Analisando um exemplo de lançamento recente: The King of Fighters XV. Ele, com certeza, se trata de uma das principais franquias da indústria, anteriormente rivalizando até mesmo com a principal marca de seu gênero, Street Fighter. Entretanto, KOFXV pode ser considerado um AAA? A resposta é não.

Isso se deve a uma série de fatores. Embora a marca seja forte o suficiente para se vender sozinha e impulsionar o potencial de lucro, o caráter da produção — e da própria SNK, a desenvolvedora — não é suficiente para se esperar um sucesso arrasa-quarteirões no que diz respeito às suas vendas (de acordo com a definição que trouxemos anteriormente). Além disso, o próprio gênero acaba tendo peso na classificação. Games de luta hoje em dia estão bem distantes do seu auge de popularidade se comparados aos anos 90. 

Isto é, quantas séries de luta realmente podem ser considerados AAA hoje em dia? No máximo, Street Fighter, sendo que esse papel é decorrente apenas da força tanto do próprio renome quanto da Capcom em si. Quiçá, Mortal Kombat também. Já Guilty Gear, por exemplo, um competidor que andou ganhando espaço nos últimos anos, está muito longe de atingir sua plenitude ao lado de Street Fighter, bem como a Arc System Works, que precisou desenvolver um título de Dragon Ball, uma das franquias mais populares do mundo, para conseguir ser reconhecida como um estúdio por aqueles fora do nicho — e isso veio mais por conta do apelo visual de FighterZ do que devido à sua qualidade de jogabilidade.

The King of Fighters XV — e Guilty Gear Strive — se encaixam em uma categoria cada vez menos levada em consideração, a de jogo AA. Afinal, são marcas que conseguem garantir seu sustento por sua própria força, mas ainda não estão entre os lançamentos mais esperados, bem como movimentam menos quantias de dinheiro e, portanto, também têm uma expectativa menor de vendas.




O preço do jogo do varejo influencia na classificação de um AAA ou AA? É difícil concordar com isso. O próprio The King of Fighters XV custa sessenta dólares, o mesmo preço de um The Legend of Zelda: Breath of the Wild. O oposto pode ser igualmente levado em consideração: The Legend of Zelda: Skyward Sword, no Switch, é de uma marca renomada, mas é possível uma remasterização tão simples ser um AAA, custando os sessenta dólares de Breath of the Wild?

Isso se aplica até a grandes clássicos do passado. Uma reedição de Ocarina of Time ou Final Fantasy VII dificilmente poderia se enquadrar como AAA. Primeiro porque o processo de remasterização nem de longe exigiria o mesmo custo e trabalho que os próprios títulos exigiram em seu tempo de desenvolvimento original. Segundo porque a maioria das pessoas já jogou esses games que, aliás, são facilmente emuláveis, o que acaba tirando um pouco da expectativa — o chamado hype — que inclusive é um dos principais nortes da indústria hoje.

Nota-se que esses jogos AA têm um potencial de lucro muito particular. Afinal, levemos em consideração o exemplo da própria Arc System Works. A ArcSys é um estúdio com seus próprios seguidores fiéis que pode contar com essa base fixa e quase garantida de consumidores. 

A PlatinumGames e a Grasshopper Manufacture também funcionam bem nesse modus operandi, basta ver o catálogo de ambos os estúdios. Do lado da Platinum, há títulos como The Wonderful 101 (Multi) ou até mesmo Metal Gear Rising: Revengeance (Multi), que chamou mais a atenção dos fãs da Platinum do que dos fãs de Metal Gear. A Grasshopper, por sua vez, conta com games de nicho considerados cult (ou seja, cultuados fielmente por sua base apaixonada) como No More Heroes (Multi), Lollipop Chainsaw (X360/PS3) e Killer7 (Multi).

É por esse tipo de produto, aliás, que muitos dos jogadores estão atrás. Como não são AAAs, eles têm uma margem maior para ousar devido a um investimento menor. Ainda, esse orçamento pode estar longe do dinheiro que movimenta os grandes lançamentos do mercado, mas segue um recurso substancial a ponto de garantir a qualidade técnica. 



Mas e os pseudo-indies? 

Se formos pegar a definição do termo em sua forma mais reduzida e radical, os indies são games e desenvolvedores que tentam vender seu produto sem qualquer apoio. Na expressão popular, “com uma mão na frente e outra atrás”. Só que, como constatamos, o conceito de dev indie é muito bem visto no mercado e pelos consumidores, porque há uma visão romantizada a respeito dessa galera que, teoricamente, trabalha sob péssimas condições tudo em prol da “arte” que acreditam. 

É claro que se vender como indie é uma tática de marketing cada vez mais comum na indústria. Cuphead é um indie? Ele é constantemente catalogado como tal, mas ainda é difícil encará-lo assim com o aporte financeiro e publicitário que recebeu da Microsoft durante sua produção. O mesmo vale para Kena: Bridge of Spirits. Especialmente quando aplicamos a definição do Videogame Style Guide, uma vez que são games e desenvolvedoras que receberam apoio e notoriedade por estarem relacionados a marcas maiores (no caso de Kena, houve um acordo entre a Ember Lab e a própria Sony).




É aí que entramos na questão dos jogos A. Eles nem de longe têm o refino técnico, a grana ou uma responsabilidade tão grande quanto os AA, quem dirá os AAA. Ainda assim, tais games têm que prestar contas de alguma forma, visto que houve acordos de financiamento e, quem financia, quer ver o retorno. 

Um exemplo interessante que dá para trazer à tona de single A é o Teenage Mutant Ninja Turtles: Shredder's Revenge. Com uma ideia chamativa de resgatar a essência da série no Super Nintendo (como Turtles in Time), ele claramente visa muito mais o fanservice de quem jogou os originais do que se vender como um grande título inovador, revolucionário ou que ofereça uma experiência transcendental. 

Entretanto, a marca “Tartarugas Ninja” é poderosíssima e chama atenção por si só. Aliás, é um produto licenciado, o que faz com que ele jamais possa ser chamado de indie nesse aspecto, já que ele não é um game que se vende de forma “independente”. Há a muleta da licença, mesmo que ela tenha sido concedida de graça.




Vários jogos considerados indie hoje conseguem acordos de distribuição para outras plataformas com empresas que fazem justamente esse meio de campo e se especializaram em produtos desse perfil. Por exemplo, tente visualizar um desenvolvedor indie que realizou a façanha de conceber seu próprio bebê sozinho e com muito esforço. Agora imagine que tal game designer conseguiu fechar acordo com a Devolver Digital. É justo que o dito título, com uma marca como a Devolver sendo atrelada a ele, esteja na mesma categoria daqueles que industrialmente entram todos os dias na Steam?

A questão é que ser (ou ao menos se dizer) um jogo indie é uma publicidade extremamente positiva no mercado hoje. Por outro lado, o que não é indie, muitas vezes é visto como AAA. E isso acaba polarizando uma situação em que ainda existe meio termo e, pasme: a tendência, talvez, é que esse meio termo seja o que vai se tornar o comum daqui para frente. 

A Morte dos AAA. E dos indies como os conhecemos


Em contrapartida a essa dicotomização do mercado, há quem diga que os AAA estão morrendo. Mesmo grandes empresas como a Electronic Arts ou a Square Enix estão se apoiando cada vez menos nesse modelo de produção por conta do fator de risco envolvido — e investidores odeiam risco, preferem sempre a garantia.

É por isso que, de tempos em tempos, o mercado sempre fica saturado com alguma ideia em específico. Lembra-se da segunda metade dos anos 2000, da quantidade de first-person shooters cinzentos à Call of Duty que poluíram o mercado? Isso acontecia logo porque notaram que um título com tais características ia gerar um retorno com maior facilidade. Esses jogos de tiro deram lugar a games expansivos de mundo aberto, como Red Dead Redemption, The Elder Scrolls ou The Witcher, para citar os grandes lançamentos do começo dos anos 2010.

No caso, a garantia de hoje, queira ou não, está no mercado mobile. A própria Konami, por exemplo, já reorganizou todo seu escopo de negócio para se focar nessa ramificação. Desenvolvedores indie também perceberam que é uma maneira mais segura de se sustentar. Games assim têm um custo de produção incrivelmente baixo, um escopo reduzido e simples e um grau de lucratividade gigantesco caso sigam os modelos já consolidados no mercado, como títulos freemium, gacha e similares. 




Microtransações são outro meio que os desenvolvedores, especialmente os grandes, começaram a contemplar porque é uma forma fácil e rápida de conseguir retorno financeiro extra que ajuda a sanar os custos da produção. Não basta vender o jogo, pois há um potencial de rendimento extra daqueles mais viciados e dispostos a gastar. O mesmo vale para a nova tendência de game as a service, visto que títulos de suporte continuado apresentam um potencial de lucro a longo a prazo em vez de produtos premium fechados cujo lucro se dá por vendas individuais.

Ou seja, a tendência é que os AAA sejam cada vez mais escassos porque eles precisam de muita grana para serem produzidos. E quem tem essa grana, na verdade, está com os olhos em novos modelos de negócio exponencialmente rentáveis e seguros.

Embora esta reportagem pareça um acumulado de ideias aleatórias sobre como classificar o escopo de uma produção na indústria— pode até parecer algo fútil, mas toda indústria do entretenimento faz — o que tentamos trazer dessa discussão é que ainda há muito espaço entre os grandes AAA e os games independentes. Ademais, o caminho natural é justamente diminuir essa lacuna entre ambos os lados, se aproximando do centro. Afinal, os jogos AAA estão ficando cada vez mais escassos e os próprios indies estão conseguindo condições de financiamento e publicações mais justas e dignas para que o produto final seja bom. 
Revisão: Heloísa D'Assumpção Ballaminut


É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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