Jogando com crianças – parte 3: para além do rótulo infantil

Se bem apoiada, a criança tem o potencial de sair da caixa dos jogos ditos “infantis” e acompanhar você rumo a outros horizontes.

em 26/10/2022

Esta é uma série de textos chamada Jogando com Crianças, com foco na experiência de jogar com meus filhos, Heitor, de 7 anos, e Dante, de 3 anos. O objetivo é prover reflexões e parâmetros para aqueles que querem jogar com crianças – quaisquer crianças: filhos, sobrinhos, irmãos, amigos, etc. – e não sabem como, quando e quais jogos.


Toda criança é diferente e não há uma fórmula única. Portanto, tudo aqui vem da construção de minha visão pessoal, combinado?

A série corre com textos paralelos no Nintendo Blast, mas neste caso os temas são diferentes. Lá, abordo como o foco familiar da Nintendo coloca a experiência de suas franquias como um legado passado de geração a geração. Os links para as partes anteriores estão no final.



Briga de rua

Tá, ainda não comecei nesse gênero com os meninos porque são jogos focados apenas em brigar, sem outros objetivos, como explorar, planejar, coletar e saltar por plataformas, como acontece em Guacamelee! 2 (Multi), por exemplo, um metroidvania de luchadores que acabei de começar com Heitor e Dante.

Apesar disso, mal posso esperar para me juntar a eles em clássicos como D&D: Shadow Over Mystara (Multi) e Cadillacs and Dinosaurs (Arcade)!

Mesmo beat ‘em ups mais cartunescos fogem à classificação indicativa Livre por sua proposta básica de violência fantasiosa, como o recente Teenage Mutant Ninja Turtles: Shredder’s Revenge (Multi) e River City Girls (Multi), indicados a partir dos 10 anos. Por mais fofinho que seja Scott Pilgrim vs The World: The Game (Multi), tem a mesma classificação de Streets of Rage 4 (Multi): 12 anos.



Classificação Indicativa

Esse sistema pode ser controverso, mas no fim é apenas uma sugestão, não uma proibição. A própria definição no portal mostra que os adultos responsáveis são o principal filtro e que isso requer conhecimento e participação a respeito daquilo que as crianças experimentam:
“A Classificação Indicativa não substitui o cuidado dos pais - é fundamentalmente uma ferramenta que pode ser usada por eles. Por isso recomendamos que os pais e responsáveis assistam e conversem com os filhos sobre os conteúdos e temas abordados na mídia.”
Quem vai decidir o que é apropriado para a maturidade da sua criança amada é você, junto com os demais responsáveis por ela. A única maneira certa de conduzir essa escolha é conhecer bem a criança como indivíduo, não apenas pelo que se pensa daquela idade em geral. Por isso, eu sabia que Heitor poderia jogar It Takes Two (Multi) comigo sem problemas aos 7 anos, mesmo com a indicação de 12 anos.

Dois são necessários

Vencedor de jogo do ano no The Game Awards 2021, It Takes Two chama a atenção por não cansar de propor mecânicas diferentes a cada capítulo, sempre renovando a gameplay.

O casal May e Cody transita entre funções complementares: ele tem os pregos para criar apoios nas paredes, ela tem o martelo para pendurar-se neles e golpear alavancas; ele tem o lançador de seiva inflamável, ela tem o atirador de fósforos; ele tem um imã exclusivo a um polo magnético, ela tem o do polo oposto; ele tem o relógio para manipular o tempo, ela faz clones para poder estar em dois lugares ao mesmo tempo; ele vira um mago, ela, uma guerreira.



Outras vezes, ambos detêm as mesmas habilidades e precisam determinar quem vai dar suporte ao outro, ou apenas apostam corrida até o final. Sem mencionar os 25 minigames... é realmente um jogo muito divertido para curtir com criança ou adulto (joguei com Cody ao zerar com minha esposa e troquei para May para jogar tudo de novo com Heitor).

Como não há dublagem em português, precisei ler bastante para Heitor e Dante, que nos assistia, entenderem o que se passava. O casal de protagonistas conversa o tempo todo, então tive que adaptar e concentrar nas falas mais importantes para não ficar com minha atenção totalmente voltada a isso.



It Takes Two é colorido e tem enredo mágico, mas é a história de um casal em processo de divórcio e uma filha fragilizada que não sabe expressar para eles o que sente. Algumas emoções e motivações podem não ser bem compreendidas pela criança e precisarão de explicação. Fora algumas cenas inquietantes, como a do aspirador de pó e da Rainha Fofinha... ehr... é melhor mudar de assunto!

“Honk!”

Untitled Goose Game (Multi) tem a melhor sinopse oficial que já vi em um jogo: “faz um belo dia no vilarejo e você é um ganso terrível”. Eu já queria jogá-lo, mas, quando vi o trailer que adicionava mais um ganso para co-op local, eu soube que era chegada a hora de me juntar a Heitor para grasnar e levar o caos ao pacato interior inglês.

As palavras do jogo são apenas as listas de objetivos, mas as interações são muitas, desde intrigar pessoas até surrupiar itens. Atuando em dupla, então, os dois gansos terríveis podem bolar planos para cumprir objetivos como fechar portões para impedir perseguidores, fazer uma pessoa recomprar as próprias coisas, invadir um pub, fingir-se de estátua e bagunçar muitos objetos.



A inocência animal do ganso transgressor é uma divertida saída para travessuras inofensivas, mas estratégicas. Como um jogo de stealth cooperativo, é necessário ser sorrateiro e coordenar bem as ações para conseguir atravessar cada trecho do vilarejo. Heitor e eu conversamos e rimos muito enquanto experimentamos as possibilidades: “o que vai acontecer se eu empurrar este balde?”

Construímos objetivos, definimos papéis, desempenhamos ações combinadas e mostramos ao vilarejo que os gansos têm seu lugar.



Retroescavador

Até fiquei surpreso com alguns jogos que não achei que ele daria conta. Shovel Knight (Multi) foi um deles. É um exemplar de plataforma 2D em pixel art (que Heitor chama de “quadradinhos”) que imita o visual da geração 8-bits com sua paleta de cores limitada. Ao som de chiptunes empolgantes, o jogador se vale dos comandos precisos, o que é muito importante para os vários saltos mortais e chefes perigosos que encontra em seu caminho. Felizmente, não há limites de vida.

Apesar dos personagens com estilo de desenho animado, tanto o estilo retrô como o nível de desafio mostram que o título não foi produzido tendo as crianças em mente – mas isso não quer dizer que as exclui! Foi Heitor quem quis testar o jogo, atraído pela capa quando a encontrou na minha biblioteca do PS4.



A princípio, duvidei que ele conseguiria jogar direito. Levou um tempinho para ele se acostumar aos pulos e continuamos jogando enquanto eu ainda pensava: “bom começo; vamos ver até onde ele consegue acompanhar, o que vier é lucro”. Logo ele estava quicando por aí sobre a pá com bastante autonomia e sempre pedindo para jogar mais um estágio, então vi que seguiríamos na aventura até o fim.

Nos chefes, quem tinha a maior parte do trabalho era eu. O objetivo que eu dei a ele foi escapar dos ataques e permanecer vivo o máximo que pudesse para tentar dar os golpes finais quando eu caísse. Ao final de cada fase há uma contagem de pontos entre a dupla e lembro de Heitor conseguir me vencer genuinamente em pelo menos duas ocasiões, o que mostrou seu progresso na habilidade com o cavaleiro da pá.



Depois de zerarmos, ele jogou sozinho um pouco das outras três campanhas centradas em personagens diferentes, bastante interessado em como cada uma altera fundamentalmente o jeito de jogar. É uma pena que essas não tenham co-op.

Zona de desenvolvimento proximal

Em texto anterior, mencionei o socioconstrutivismo. Um dos conceitos dessa teoria pedagógica é a zona de desenvolvimento proximal, que representa uma etapa intermediária do processo de aprendizagem. Nela, certo conhecimento ou habilidade da pessoa ainda não se encontra consolidado, mas ela tem o potencial de alcançá-los se for guiada ou acompanhada nesse propósito.



Em outras palavras, existe o potencial, mas, sem apoio, ele pode passar despercebido e ser ignorado e, com isso, tornar-se mais difícil de ser adquirido. Por isso, só poderemos saber se a criança conseguirá se adaptar a determinado nível de pensamento e atividade se a deixarmos tentar e a acompanharmos no trajeto, sem subestimá-la.

Isso pode ser ler os objetivos de Untitled Goose Game para uma criança iletrada e definir o papel de cada ganso, explicar como funcionam as mecânicas de It Takes Two, indicar a estratégia a ser usada em Trine 4, ou até executar primeiro um caminho complexo em Shovel Knight para que ela tente imitar. Como uma boa esponja de experiência, a pequena vai seguir, caminhar e, enfim, correr ao seu lado com mais vigor do que se estivesse sozinha.



A adaptação não ocorre apenas no nível mecânico, mas também cultural. Essa aproximação guiada, passo a passo, pode abrir portas para que o herdeiro entre em contato com diversos produtos históricos, gêneros e narrativas que talvez não conhecesse sozinho.

Por isso, além de refinar o aprendizado de Heitor em jogos de plataforma, Shovel Knight é também um exercício estético para qualquer jogador nascido neste século, especialmente quando segue os passos de um jogador mais calejado para expandir seu repertório de apreciação artística de maneira a fomentar um olhar através do qual gameplay e gráficos “velhos” possam ser considerados agradáveis e até admiráveis.



Trio de aventureiros

O jogo que realmente serviu de “teste de zona de desenvolvimento proximal” foi Trine 4 (Multi), quando Heitor ainda tinha 5 anos. Os jogadores alternam à vontade entre um trio de mago, ladra e guerreiro e usam as habilidades únicas de cada um para chegar ao fim das fases ao atravessar vários obstáculos de puzzles.

Geralmente, não há solução única, mas ainda é preciso pensar bem em como resolver os problemas que surgem pelo caminho. Eu me indaguei se Heitor conseguiria jogá-lo sob orientação e a única maneira de descobrir era jogando. Apesar do pouco crédito que dei à idade, fiquei surpreso com o quão bem ele se adaptou!



Como de costume, o trabalho mais pesado coube a mim, mas ele correspondeu muito bem ao trabalho em equipe e, à medida que entendia melhor como tudo funciona, passou a dar sugestões e apresentar boas soluções aos problemas.

Satisfeito com o resultado, aprendi que testar é o melhor caminho. Quer jogar Shovel Knight? Vamos lá! Se, por acaso, não der certo e a criança ainda não conseguir entrar no fluxo de progressão do jogo nem se divertir, basta escolher outro título um degrau mais simples enquanto espera mais um tempo para tentar novamente. Seis meses ou um ano fazem muita diferença na história do desenvolvimento das crianças.



No próximo capítulo...

Mudando o ritmo semanal desta série, ainda teremos uma quarta parte em algum momento de novembro e o tema será acompanhar a autonomia da criança que se aventura em jogos solo. Além disso, ainda sobraram alguns títulos que joguei em co-op com os filhos e ficarão para um texto futuro. Até lá!

Jogando com crianças

Nintendo Blast

GameBlast

Revisão: Heloísa D'Assumpção Ballaminut

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Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Você pode compartilhar este conteúdo creditando o autor e veículo original (BY-SA 3.0).