Crônica

Jogando com crianças – Parte 1: Como começar

No dia das crianças, vamos compartilhar com elas nosso amor pelos jogos.


Esta é uma série de textos chamada Jogando com Crianças. É claro que podemos jogar juntos com diversas pessoas e de muitos modos, mas aqui focarei na experiência com meus filhos, Heitor, de 7 anos, e Dante, de 3 anos. O objetivo é prover reflexões e parâmetros para aqueles que querem jogar com crianças – quaisquer crianças: filhos, sobrinhos, irmãos, amigos, etc. – e não sabem como, quando e quais jogos.

Toda criança é diferente e não há uma fórmula única. Portanto, tudo aqui vem da construção de minha visão pessoal, combinado?

Para comemorar o dia das crianças, o texto de hoje foi escrito em dobradinha com outro publicado no Nintendo Blast. Os dois se complementam em contextos diferentes, confira lá. Como um prelúdio ao tema, eu já havia publicado aqui uma crônica chamada Dia dos Pais com Goof Troop (SNES) e Mickey To Donald: Magical Quest 3 (SNES).

A escolha é sempre sua

Como eu sou um entusiasta de games, desde antes de ter filhos, eu sonhava em jogar com eles. Levado por essa expectativa, quando Heitor tinha 3 anos, passei a pesquisar jogos que fossem acessíveis a crianças tão pequenas, mas fiquei frustrado pela dificuldade para encontrar indicações direcionadas. Tive que fazer minha própria busca e estabelecer meus próprios critérios para introduzir meu herdeiro nesse mundo criativo que tanto amo.

Quando falo de minha busca pela introdução de crianças a videogames, falo em relação a game design, não ao estudo da relação do indivíduo contemporâneo com o meio digital e as telas. Alguns podem achar que 3 anos é pouca idade para isso, mas levei em consideração que as crianças atuais já são muito expostas às telas em diversas formas e conteúdos. Logo, o videogame é minha escolha preferencial para o que meus filhos farão diante da televisão.
Montando uma biblioteca de games para as crianças conhecerem
Os motivos podem ser resumidos a dois (baseados em opinião e não em estudos concretos de pediatria e psicologia). O primeiro é porque essa mídia é uma que eu conheço bem o suficiente para selecionar e acompanhar os meus filhos em suas descobertas, o que a torna um ambiente muito mais coeso e controlado do que a infinidade aberta do YouTube, por exemplo. O segundo é porque vejo a interatividade do videogame como um processo mais ativo e estimulante do que ficar afundado no sofá assistindo a episódios consecutivos do desenho animado da moda.

É claro que isso não é uma matemática exata e não pretendo dizer que qualquer jogo é superior a qualquer filme, ou vice-versa, mas acrescento que o primeiro tem mais potencial relacional do que o segundo, pois boa porção do tempo de tela de Heitor e Dante ocorre compartilhando um multiplayer entre si ou comigo. Voltaremos a isso em texto futuro.
Stardew Valley: trabalhando em família... ou melhor, você trabalha enquanto as crianças relaxam

O que é adequado depende de você

Sim, meus filhos ainda assistem a temporadas inteiras desses desenhos nos serviços de streaming, pois deixo com eles a escolha entre assistir e jogar. Variação é saudável. Deixo claro a eles que uma opção pode excluir a outra naquele dia e, às vezes, podem optar por repartir o tempo entre as duas.

Eles escolhem o que vão pedir, mas quem monta o cardápio sou eu. É minha responsabilidade. Isso também serve para fins práticos, uma vez que dou preferência a jogos que eu mesmo quero jogar sozinho ou junto com eles.
Eu abri caminho em Spyro para eles terem mais fases para visitar
Assim, avançar no jogo não depende dos meninos, mas de mim. Várias fases ficam disponíveis para que eles possam testá-las e entrar em contato com as diferentes mecânicas e níveis de dificuldade, progredindo segundo seu próprio interesse e habilidade. Essa escolha também evita que o adulto compre um jogo que a criança só vai jogar as duas primeiras fases e devolver à gaveta.

É crucial entender que o adulto é o filtro. Os parâmetros em si variam a cada adulto, cada criança, cada circunstância. “Ah, mas eu jogava Mortal Kombat quando era pequeno e não fiquei traumatizado nem me tornei violento”. Essa é uma discussão profunda demais para tratar aqui, mas cabe um comentário.

O que importa é a consciência de que o conteúdo ao qual a criança tem acesso representa algo para ela e fará parte de suas vivências. Portanto, deve seguir em coerência com o que seus responsáveis valorizam e promovem na vida dela. O diálogo é essencial para contextualizar aquilo que está além da maturidade do pequenino e para justificar as eventuais proibições sem criar um tabu opressivo ou sedutor por trás disso.
Crash Bandicoot 4: It's About Time

A criança é a protagonista

Costumamos avaliar as crianças por faixas etárias e a própria classificação indicativa incentiva isso com suas recomendações. No entanto, cada criança é um indivíduo e tem sua própria história, maturidade, necessidades, ritmo, interesse, empenho e confiança. Essa personalidade deve ser levada em consideração para compreender a relação da criança com o videogame e com os demais jogadores.

Um caso claro de individualidade está nos meus filhos. Apenas quando Heitor passou dos quatro anos eu senti que estavámos realmente jogando juntos, ao invés de só tentar ou fingir. Dante, por sua vez, aos três anos e meio, demonstrou a mesma desenvoltura, sendo capaz de jogar Lego Os Incríveis (Multi), passar sozinho de algumas fases de Crash Bandicoot 4: It's About Time (Multi) e até aprender boa parte das tarefas do excelente simulador de fazenda Stardew Valley (Multi) enquanto joga em família.
Os jogos de Lego são repletos de personagens para brincar
Quem acompanha crianças pequenas sabe que seis meses representam diferenças consideráveis de desenvolvimento. Heitor, em todo caso, agora é experiente o bastante para ser o guia do irmão menor – eles usurparam meu Lego Star Wars: Skywalker Saga (Multi) e jogam juntos, sem me dar espaço.

Também é importante atentar que a criança pratica a brincadeira de forma mais imersiva que nós. Uma das implicações disso é que ela geralmente vai querer jogar com a protagonista – ao menos até você pegar uma personagem mais legal e ela dizer que quer a sua. Não só isso, muitas vezes a criança vai querer escolher as fases ou o modo de jogá-la. Não raro, vai prestar atenção apenas em si mesma e não vai seguir algumas de suas recomendações. Errar e reiniciar fases poderá ser recorrente.
O caos em Lego Star Wars: Skywalker Saga ainda rendeu um troféu
É muito fácil que as diferenças de modo de conduzir a jogatina leve a discussões, especialmente quando as ações da criança levam a dupla à derrota (quem nunca?). Então lembre que você precisa ser o mais maduro da relação e que seu objetivo não é só jogar, mas curtir a relação com a criança por meio do jogo.

A caixa de areia

Você já deve ter ouvido jogos sendo descritos como sandbox. Não é exatamente um gênero, mas um modo de funcionamento no qual o jogador tem liberdade de ação para o meio de atingir os objetivos ou até para estabelecer seus próprios objetivos. Daí vem a associação com a caixa de areia do parquinho, na qual a criança brinca conforme sua criatividade: poderá fazer montes de areia, escavar em busca de tesouro ou criar a geografia de um minimundo. A medida é a imaginação.
Em Stray, você é o gato
Vários games, inclusive para adultos, incentivam essa atuação criativa, mas, no fundo, a criança não depende disso, uma vez que ela tem em si mesma os meios de reinventar e transformar a jogatina. Potencialmente, quando uma criança assume o controle, a maioria dos jogos pode ser uma pequena caixa de areia.

O pequeno pode ficar maravilhado com o simples ato de pular e tentar alcançar um lugar mais alto ou querer repetir longamente a habilidade nova introduzida na fase. Essa é a caixa de areia dela, deixe-a aproveitar. Deixe-a passear com o gato no interessante mundo robótico de Stray (Multi), subir nos telhados, arranhar sofás e até tirar um cochilo na almofada.
A Short Hike
Deixe-a planar e andar pela pacífica ilha de A Short Hike (Multi) ou incorporar dezenas de personagens e poderes pelos mundos abertos de Lego Marvel Collection (Multi) ou Lego Os Incríveis (Multi) ou, na verdade, praticamente quase qualquer jogo de Lego.

Veja o prazer infantil de cavalgar em Stardew Valley, regar, minerar, dar presentes, pegar os itens guardados no baú do irmão (resolva a briga), ou apenas entrar no faz de conta e relaxar na água quente do spa (enquanto você trabalha duro para a fazenda ter lucro).
 
A Hat in Time
Um bom exemplo dessa lógica de liberdade é de quando Heitor jogou A Hat in Time (Multi), que, como um título de plataforma 3D, tem fases abertas para explorar. Ele não concluía as fases, mas muitas vezes iniciava o jogo e passeava entre as localidades, descobrindo detalhes. Certa vez, passou um bom tempo numa praia da Cidade Máfia tentando caçar um caranguejo ermitão. O bicho realmente está ali e se move, fugindo do jogador, mas não tem colisão nem pode ser capturado, enterrando-se na areia para fugir. Ainda assim, Heitor divertiu-se muito em seu objetivo de brincar de pega-pega com o caranguejo.

Um jogo que se encaixa muito bem nessa premissa lúdica é Astro’s Playroom (PS5). Cada cantinho é recheado de pequenos adereços, referências e personagens que reagem quando atingidos. Dante, o mais novo, o adora.
Astro's Playroom tem dezenas de referências e interações
Uma vez, ele ficou me chamando para mostrar que descobriu elementos de LocoRoco (PSP, PS4) no game. Dante já passara por ali várias vezes, mas foi depois de conhecer LocoRoco e voltar a Astro’s que ele reconheceu a referência, o que adicionou profundidade à sua interação afetiva com o título.

Spyro Reignited Trilogy (Multi) é outra boa opção. Os controles são simples, pois focam em apenas dois botões: um para soltar fogo, o que derrota os inimigos em um único golpe, e outro para pular. O pequeno dragão também pode planar ao apertar o botão de pulo duas vezes seguidas e mantê-lo pressionado na segunda, o que deve requerer alguma prática da criança.
Spyro Reignited Trilogy
Porém, à medida que ela consiga executar as ações com confiança, seguirá cada vez mais longe e com mais desenvoltura. Sabe aquele sentimento caloroso de admiração quando o bebê finalmente faz coisas como sentar, ficar de pé, dar um passo, falar uma palavra, falar uma frase inteira e por aí?

Os adultos ficam orgulhosos e o bebê também. A criança pequena tem consciência de sua evolução e quer ir mais longe ainda, uma vontade de independência e ousadia que muitas vezes dá dor de cabeça aos responsáveis.
Em Spyro, assar os vilões é uma fantasia de poder fácil de executar
Isso também acontece com  videogames. Cada conquista é um marco para o pai babão aqui comentar com o irmão e amigos gamers. Cada nova compreensão de Heitor e Dante a respeito do espaço, do tempo, das mecânicas e formas narrativas que os videogames produzem aquece meu coração e me faz perceber meus filhos como indivíduos em toda a beleza do desenvolvimento humano.

No próximo capítulo...

Na próxima semana, focaremos no passo seguinte, saindo do campo da experimentação de fragmentos de jogos em direção às vivências de cooperação que atravessam campanhas inteiras.

Jogando com crianças

Nintendo Blast

GameBlast

Revisão: Juliana Paiva Zapparoli


Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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