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Análise: Civilization: the Board Game é a essência do gênero 4X nos tabuleiros

O jogo conseguiu levar uma mecânica complexa para uma tecnologia mais simples que a utilizada pela franquia nos videogames.




Na data de hoje, aniversário de Sid Meier, designer da franquia Civilization, trazemos para vocês algo inédito. Vocês já estão acostumados com nossas análises de videogames. Desta vez trazemos a análise de um jogo de tabuleiro. Esperamos fazer mais matérias deste grupo de jogos ainda pouco conhecidos por aqui.


Desde o lançamento de Civilization (PC), em 1991, a franquia é o principal expoente do “4X” — um subgênero de jogos de estratégia baseado nos conceitos de eXplore (explorar o mundo do jogo em busca de novos territórios), eXpand (expandir o subconjunto do mundo do jogo correspondente ao seu território), eXploit (explorar no sentido de tirar proveito, gozar, desfrutar de recursos de um território) e eXterminate (eliminar donos de outros territórios que não sejam seus).

Por se tratar de uma franquia de jogos com regras complexas, abrir mão da tecnologia computadorizada é difícil, mesmo se tratando de um jogo baseado em turnos. Por dois momentos, 2002 e 2010, houve tentativas de levar aos tabuleiros um jogo que causasse a mesma experiência dos títulos de videogame. Aqui, falaremos do segundo, reconhecidamente o mais bem sucedido.
Cenário completo
Em nome da valorização histórica, é importante destacar que existe um jogo de tabuleiro chamado Civilization, datado de 1981. Segundo Sid Meier, designer da série, não houve inspiração neste jogo, embora os direitos do nome tenham sido adquiridos da Avalon Hill, então detentora do jogo.

“É o mesmo jogo, só que de papel”

Assim como nos videogames, o tema do jogo é “construir uma civilização e torná-la a mais poderosa do mundo” e aqui existem quatro maneiras de se alcançar isso. São elas:
  • Vitória cultural: obtida ao chegar a um total de cultura investida, algo possível com uma ação de suas cidades denominada “dedicar às artes”. O investimento em cultura garante ao jogador uma pessoa excepcional (uma peça que dá a sua cidade um conjunto de recursos ao se instalar nela) e cartões culturais, que geram efeitos nos jogadores; 
  • Vitória militar, conquistada quando um jogador consegue derrubar a capital de um adversário;
  • Vitória tecnológica: obtida ao chegar ao nível 5 da pirâmide tecnológica, conforme ilustrado a seguir. Uma tecnologia só pode ser posta na pirâmide se sua “base” já estiver pronta; e
  • Vitória econômica, obtida ao conquistar 15 moedas de ouro, sendo que elas só são compráveis como bônus de certas tecnologias descobertas, cartões culturais ou pessoas excepcionais.
Pela enumeração acima, é fácil notar que, em uma partida, todos os jogadores podem estar ganhando de pelo menos uma das quatro formas. Sendo assim, não é uma boa ideia um jogador se especializar em uma única forma de obter a vitória (este inclusive é um erro típico em iniciantes), até porque uma das formas de evolução fatalmente contribuirá para as demais formas. Exemplo: um jogador que está caminhando para uma vitória militar obtém unidades de combate mais poderosas ao desenvolver novas tecnologias e consegue cartas boas para inutilizar inimigos ao investir em cultura. Então, um jogador que desenvolveu cultura e tecnologia pode ser mais poderoso do que um jogador que focou exclusivamente no militarismo.

Exemplo de Árvore que garante vitória tecnológica
Os modos de vitória em conjunto com as mecânicas de evolução do jogo também deixam claro que é importante um jogador estar sintonizado com os quatro aspectos do 4X, independente de qual modo ele tenha optado priorizar. A expansão de mapas (explore) e criação de novas cidades (expand — limitadas a três por civilização) garantem mais recursos para se explorar (exploit) e maior capacidade de produção (exterminate), ou seja, tudo que garante o andamento no jogo está relacionado ao bom uso de uma das quatro características do jogo.

Baseado em tudo que foi comentado até agora — nem metade das regras do jogo —, é fácil concluir que Civilization: the Board Game é um jogo complexo. De fato, uma partida de Civlization leva algo entre 5 e 8 horas para terminar, de modo que marcar qualquer outra coisa no dia é inviável.

Simplicidade em meio a complexidade

Se o tempo médio de jogo pareceu longo, ele é pequeno se comparado com os tempos médios da franquia em geral (para efeito de comparação, Civilization II (PC) possui um tempo médio de 16,5 horas. Recomendo o ótimo HowLongToBeat para obter estas informações). Importante reforçar que esta queda foi alcançada sem usar nenhum recurso computadorizado em sua tecnologia, sinal de que os designers foram capazes de dar soluções simples às mecânicas complexas do jogo. Antes de explicar como isto foi feito, é valido enumerar os passos de cada turno:

  1. Início de turno: neste passo o jogador pode construir uma cidade nova, trocar sua forma de governo (novas formas de governo são adquiridas ao desenvolver tecnologias novas) e usar vantagens conquistadas por tecnologias ou maravilhas. Maravilhas são construções especiais que garantem vantagens e são únicas no jogo todo. Um exemplo são os jardins suspensos, que garantem uma unidade em todo início de turno. É neste passo que o jogador pode colocar uma pessoa excepcional para habitar sua cidade ou tirá-la de uma. Ainda aqui, o jogador informa para qual de suas cidades o tipo de unidade denominada scout irá produzir (contando como quadrado adjacente para efeitos de extração).
  2. Comércio: neste passo, o jogador coleta os pontos de troca das adjacências de suas cidades. Pontos de troca podem ser trocados por pontos extras de produção, por recursos ou por tecnologias novas no passo adequado. É neste turno também que jogadores podem trocar seus recursos (trigo, ferro, especiarias, etc.).
  3. Gerenciamento da cidade: neste passo, para cada cidade (em um máximo de 3 por civilização), o jogador decide se quer construir uma unidade, exército (unidades são as peças que se movem no tabuleiro, exércitos são as cartas utilizadas em combate) ou construção, limitado pelos pontos de produção das adjacências da cidade, extrair algum recurso adjacente ou dedicar a cidade às artes — processo já explicado anteriormente. O total de construções é limitado pelas adjacências da cidade (no máximo 8), sendo que existem regras de terreno e unicidade para cada tipo de construção. Uma pessoa excepcional ocupa uma adjacência e é móvel no começo do turno. Cada cidade pode possuir uma única maravilha de modo que, para construir outra, a cidade deve abrir mão da atual.
  4. Movimento: neste passo as unidades do jogador se movem. É aqui que o mapa será expandido, novos recursos podem ser encontrados e combates com bárbaros e outros jogadores são realizados. Vitórias em combate garantem ao vencedor o direito de roubar pontos de troca, de cultura e moedas do perdedor, caso as possua. O total de passos é definido pelas tecnologias adquiridas, assim como a capacidade de se mover ou parar na água.
  5. Pesquisa: neste passo o jogador pode comprar uma nova tecnologia com seus pontos de troca, sendo o nível máximo desta tecnologia limitado pelo total de pontos de troca adquiridos e pela regra da pirâmide (uma tecnologia de nível 2 deve necessariamente estar sustentada por duas tecnologias de nível 1, sendo este processo recursivo para os demais níveis). Há 5 níveis de tecnologia, sendo Vôo Espacial a única tecnologia presente no nível 5 e garantidora da vitória tecnológica. Ao comprar uma nova tecnologia, independente do nível, os pontos de troca serão reduzidos ao número de moedas que o jogador possui.
Regra de inserção de tecnologias na árvore
A primeira simplificação do jogo reside nas cidades. Com um máximo de três cidades por civilização e uma quantidade de oito de adjacências para construções, sendo a maioria delas apenas um aumento de pontos de produção e troca, o total de ações da cidade reduz consideravelmente se comparada às versões de PC. A limitação de ter de escolher apenas um entre três tipos de ação também agiliza o jogo, por mais que force o jogador a atuar com mais sabedoria em suas decisões. Seguindo o princípio do expand, é natural que uma civilização com mais cidades receba mais benefícios por esse esforço, embora isso não signifique parar com a diversificação da produção.

O modelo de combate também precisou ser simplificado. Acima, já descrevemos a diferença entre uma unidade e um exército. Quando unidades se encontram, os jogadores colocam seus exércitos para combater. Com a finalidade a evitar contas maiores, o jogo criou um processo de pedra, papel e tesoura, de modo que cavalaria tem vantagem sobre artilharia, que tem vantagem sobre infantaria que, por fim, tem vantagem sobre cavalaria. Ao inserir o seu cartão (no modelo War de “defesa primeiro”), o jogador tem o poder de decidir entre um confronto direto entre seus exércitos e colocar em uma posição adjacente, inserindo estratégia no jogo. A vitória entre exércitos é definida pelos pontos de poder na carta e a descoberta de novas tecnologias as aprimora. Não entrei em muitos detalhes, mas não é difícil notar que o modelo não é tão simplificado quanto poderia ser.

Exemplos de cartões de exércitos
Por fim, a mais importante e bem-sucedida das simplificações foi a pesquisa de tecnologias. Nas versões de PC, o jogador escolhe a tecnologia e ela é desenvolvida em um número de turnos baseado em quanto de seus recursos são dedicados a isto. Aqui, conforme as capacidades da civilização, em todos os turnos, o jogador pode descobrir novas tecnologias no passo de pesquisa, isso sem contar nos recursos que garantem trocas ou cópias de tecnologias com adversários. Como tecnologias aprimoram tudo que pode ser feito no jogo, sua simplificação garante que o jogo como um todo seja mais prático.

O mindgame se fortalece


É certo que perdemos praticidade ao sair do escopo computadorizado, mas isso fortalece um dos conceitos mais interessantes em jogos na minha opinião: o blefe. Não importa o quão evoluída sua civilização seja, é passo fundamental convencer os jogadores que você pode fazer mais ou menos do que realmente consegue. É normal jogos se definirem em um turno porque um jogador convenceu o outro no papo que ele jamais se sairia vitorioso em um combate ou porque um jogador se enganou achando que fazia um bom negócio, quando na verdade estava dando o necessário para a vitória do adversário. Em uma das partidas mais memoráveis que tenho em mente, joguei com os americanos e comecei a oferecer ferro (recurso que dá vantagens em combate) a um preço infame para todos os três jogadores começarem a blefar entre eles em uma guerra. Como eles precisavam do meu recurso, defenderiam-me, então investia pouco em militarismo. Quando eles se tocaram da besteira que eles estavam fazendo, estava com 13 das 15 moedas necessárias para ganhar o jogo com o turno na minha mão.
Agora que acabou tá todo mundo rindo, mas no jogo ninguém vale nada
A flexibilidade de jogos não-eletrônicos nos permite jogar com alianças, promessas, mindgames e outros recursos de interações humanas de uma forma que os videogames ainda não foram capazes de fazer. São experiências bem diferentes, ambas agradáveis e divertidas a seu modo e recomendáveis para todas as pessoas que gostam da atividade de jogar.

Faltou um pouco de tecnologia


Apesar da grande característica dos jogos de tabuleiro ser sua falta de tecnologia eletrônica, em Civlization: the Board Game, achei que eles exageraram nessa transição. Só de ver a foto abaixo, de uma das partidas que joguei, é fácil notar que não precisa de muito trabalho para ficar perdido no jogo. Alguns recursos poderiam usar mão de tecnologias eletrônicas mais rústicas, como um contador de pontos de cultura ou um facilitador de simulação de combate. Até mesmo um app para smartphones facilitaria. O núcleo da experiência do jogo de tabuleiro não se perderia com isso e menos tempo seria perdido, tornando o processo de jogo mais dinâmico. Embora não seja incômodo ou difícil, é fácil para um iniciante se perder em meio a tanta informação. Não seria uma novidade no cenário: até jogos mainstream como Banco Imobiliário já utilizam destes recursos sem perder muito da experiência geral do jogo. É claro que é preciso entender que inserir estes itens assim encarece o produto final.
Na hora de arrumar isso aí é loco
Civilization: the Board Game é um jogo que, embora passe a mesma experiência rica de evolução dos jogos eletrônicos da franquia, adiciona elementos que tornam o prazer de jogá-lo diferente. É uma adaptação que consegue unir o universo de Civilization aos jogos de tabuleiro de forma competente.

Prós

  • Competência ao simplificar conceitos das versões eletrônicas para o tabuleiro;
  • Várias formas de se ganhar o jogo, de modo que qualquer um pode, ao mesmo tempo, estar apto a ganhar;
  • Fortalecimento do mindgame.

Contras

  • Poderiam usar tecnologias em alguns aspectos do jogo para torná-lo mais dinâmico.
Civilization: the Board Game — Tabuleiro — Nota: 8.5
Revisão: Alberto Canen
Capa: Felipe Araujo

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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