Discussão

Para David Cage, cinematografia é a solução para emoções nos jogos. Será?

O francês David Cage já trabalhou como diretor, músico e roteirista. Em 1997, fundou o estúdio Quantic Dream e desde então participou da c... (por Bruno Grisci em 28/08/2013, via GameBlast)

O francês David Cage já trabalhou como diretor, músico e roteirista. Em 1997, fundou o estúdio Quantic Dream e desde então participou da criação dos jogos Omikron: The Nomad Soul (PC e Dreamcast - 1999), Fahrenheit / Indigo Prophecy (PS2 e Xbox - 2005) e Heavy Rain (PS3 - 2010). Atualmente está trabalhando em Beyond: Two Souls para PS3 e The Dark Sorcerer para PS4.


Em comum, todos os seus jogos apresentam grande foco no enredo e a busca de um estilo gráfico fotorrealístico. A primeira aparição pública de Heavy Rain, por exemplo, foi através de um protótipo exibindo diversas expressões virtuais em um ator animado, ressaltando o poder de processamento do PlayStation 3 na E3 de 2006. O mesmo ocorreu com The Dark Sorcerer, com o busto de um ancião sendo usado para mostrar como o aumento na quantidade de polígonos na construção dos personagens lhes permitiria transmitir emoções aos jogadores de forma inédita na indústria.

A importância dada às histórias dos seus jogos acabou de certa maneira criando uma espécie de subgênero de jogos próximo aos romances interativos e adventures, com os jogadores recebendo muitas vezes um papel menos ativo e mais observador dos acontecimentos, com poder para tomar decisões mas não de executá-las diretamente. Essas características renderam várias comparações do trabalho de Cage ao cinema, o que em última instância pode simplesmente levar o jogador a se perguntar por que não fazer um filme.


Essa e outras questões que David abordou em sua palestra na Game Developers Conference Europe 2013, que aconteceu na Alemanha na última semana.
“Nenhuma nova mídia foi criada ao acaso na história da humanidade. Nenhuma forma de arte jamais foi criada sem referenciar o que aconteceu antes. Fotografia foi inicialmente influenciada pela pintura, filme pelo teatro. Leva tempo para essas mídias evoluírem suas próprias identidades.

Eu estou dizendo alto e claro: nós devemos aprender com os filmes. Temos muitas diferenças, e jogabilidade e interatividade são o ponto diferente, e isso é crucial, mas ao mesmo tempo há muitas coisas que podemos aprender”.
Cage continua explicando por que acredita que a cinematografia em jogos é um caminho a se buscar. “Ajudará a deixar o jogador emocionalmente envolvido. Se você não tem envolvimento emocional, está apenas assistindo a pixels na tela". Para ele, o futuro dos jogos está em se importar, nas emoções transmitidas, e só então poderemos começar a nos perguntar se é possível criar jogos com uma mensagem, que farão o jogador pensar ou até mesmo mudar, pelo menos um pouco. Na sua visão, o público já está preparado para essa transição, mas ainda falta convencer os desenvolvedores e distribuidoras.
“Eu acredito que o futuro dos jogos será se importar. Você vai ouvir um monte de pessoas dizendo que é tecnologia, que é mais polígonos… Eu venho clamando há anos que o futuro dos jogos é emoção.

Nós precisamos decidir o que é importante — este é o maior desafio lá fora. Convencer as pessoas (nem tanto os jogadores, eles têm interesse), mas convencer as próprias equipes, distribuidoras e imprensa que isso é algo importante”.
David também mencionou como deseja ver técnicas empregadas no cinema tornarem-se algo novo na realidade dos jogos, e sobre como é necessário acabar com o ciclo de “jogo e cutscenes” e fundir a cinematografia com a jogabilidade.
“O outro desafio fundamental é fundir cinematografia com interatividade. Você tem cutscenes… e ciclos de jogabilidade baseados em ações violentas e então tudo repete. Você pode alcançar a cinematografia sem cutscenes.

Eu acho que há um equívoco sobre o que interação significa — significa apenas mudar algo no seu ambiente. Pode ser qualquer coisa que possua significado e faça sentido no contexto. Nós precisamos achar uma maneira de não termos cutscenes/ação/cutscenes/ação. Nós precisamos misturar isso e obtermos uma experiência na qual cinematografia e interatividade estão totalmente entrelaçadas e não se vê a diferença”.
Evolução na quantidade de polígonos nos personagens da Quantic Dream.
Por fim, o designer mencionou como a Quantic Dream emprega tecnologia avançada para a produção de seus jogos, algo pelo qual ela já é conhecida, utilizando-se de técnicas de captura de movimentos de atores reais para dar maior credibilidade e traços reais aos seus personagens, o que atualmente reflete-se na participação da atriz Ellen Page no desenvolvimento de Beyond: Two Souls, jogo no qual ela “interpreta” a personagem principal, Jodie Holmes. Cage encerrou com a aposta de que em um futuro próximo jogos e filmes poderão tornar-se indistinguíveis.
“Eu não sei se chegaremos ao ponto durante essa geração no qual não se consegue diferenciar um filme e um jogo, mas nós iremos chegar muito perto.

Nós estivemos pensando seriamente na Quantic Dream sobre um sistema em que pudéssemos ter um programa no qual conseguíssem filmar alguns parâmetros nele e adaptá-lo, e nós talvez tenhamos em algum ponto um algoritmo que será o primeiro passo na direção… até mesmo um algoritmo que irá filmar baseado no Stanley Kubrick, ou no Orson Welles, ou no Coppola.

Nós iremos ver novos tipos de emprego aparecendo nos jogos. Estou pensando em um diretor de fotografia, por exemplo… nós vamos precisar deles. Nós já começamos a trabalhar com eles para aprender a como melhorar o que fazemos.

Diretores também são algo que será bem importante nos anos que virão. Em filmes, é a pessoa que lida com tudo e possui a visão criativa. Nos próximos anos nós iremos precisar de diretores que tenham a visão”.

Uma breve análise

Para entender melhor a proposta de Cage, é bom sabermos antes o que se entende por “cinematografia”. Simplificando, seria o conjunto de técnicas empregadas para a captura de imagens em movimento. Diretores diferentes adotaram técnicas diferentes ao longo da história do cinema, o que, é claro, resultou nos diferentes estilos de filmagem que vemos por aí. Assim sendo, para o desenvolvedor, o próximo passo na evolução dos jogos como mídia não está na tecnologia, mas na aplicação de métodos utilizados no cinema para a construção de jogos com maior “apelo e significado”.

A comparação da indústria cinematográfica com a dos games é bastante comum, já que são gigantes do entretenimento e compartilham diversas características há anos. É importante lembrar, contudo, que jogos e filmes são mídias diferentes com peculiaridades que não podem ser ignoradas. O que faz um game, antes de tudo, é a interação com o jogador, algo que não existe em livros ou filmes. Por isso mesmo, tentar aproximar um jogo de um filme utilizando-se apenas de técnicas do segundo, como é o caso de cutscenes, além de inferiorizar um pouco os games como se eles precisassem tentar imitar o cinema para serem algo mais pode resultar na quebra da jogabilidade.


Podemos notar a preocupação de Cage nesse aspecto, já que ele reconhece que as duas mídias possuem suas diferenças mas aponta que uma pode aprender com a outra, o que na verdade é um processo que ocorre naturalmente. A ideia de remover as cenas pré-renderizadas mesclando a história na jogabilidade, na exploração e na manipulação do cenário é um exemplo de como elementos do cinema podem ser trazidos para um jogo sem que se perca a interatividade. Pelo contrário, o jogador pode inclusive ganhar mais liberdade e poder sendo incentivado a interagir com o jogo para conhecer a sua história, sem que ela seja despejada na tela através de textos ou cenas prontas.

Mas o interessante na visão de Cage é que, ao mesmo tempo que busca utilizar essa mistura com técnicas do cinema para tornar os jogos mais interessantes, parece crer que isso será alcançado graças a tramas complexas e gráficos que consigam reproduzir fielmente a realidade. Em diversas apresentações públicas ele falou como capturar expressões de atores e renderizar animações com mais gráficos permitiria que o público se “importasse” com o que está vendo na tela. Durante a primeira apresentação do que viria a ser The Dark Sorcerer, foi dada ênfase ao olhar do rosto animado exibido no telão e como ele passava emoções para o jogador sem a necessidade de palavras.

Bom, apesar do Uncanny Valley estar aí para assombrar personagens que tentam se assemelhar a humanos de carne e osso, esta é uma abordagem totalmente válida. Mas já que os jogos são tão diversos em gêneros e estilos, não é pretensão acreditar que seja esse o caminho que levará os jogadores a se ligarem emocionalmente ao que veem na tela? Os dois queridinhos desse ano para o título de Game of Year, BioShock Infinite e The Last of Us, de certa forma seguem esse caminho. As mecânicas de jogo ainda são tradicionais, mas o enredo, os personagens e a ambientação fazem a diferença. Pergunto, Booker DeWitt e Elizabeth, Joel e Ellie importaram para você? Se respondeu sim então o futuro de Cage já está entre nós, talvez há bem mais tempo do que ele nos faz acreditar.

BioShock Infinite e The Last of Us são dois dos principais lançamentos do ano. Arte por Vitor Nascimento.
The Walking Dead, o adventure que conseguiu a façanha de Game of Year em 2012, não contava com um desenvolvimento milionário como os concorrentes nem com gráficos fotorrealísticos. Foi aclamado por suas decisões morais. Já a essência de Journey é a cooperação entre pessoas que nunca se viram. Não são essas experiências com alta carga emocional? Voltemos mais ainda no tempo. Será que quando The Legend of Zelda surgiu os jogadores não se importavam com o que estavam jogando e ficavam sentados na frente da televisão por inércia?

Talvez a capacidade dos jogos em nos fazer se importar não esteja nos gráficos, na história, no olhar dos personagens… mas sim na interação que eles proporcionam. Quem pode dizer que a ligação emocional de alguém que chorou com Heavy Rain é maior que aquela do torcedor fanático que comemora por ter ganho um campeonato do rival em FIFA 13? E por que não se emocionar tocando aquela música daquela ocasião especial em Rock Band? A satisfação de dar uma peixeirada nos amigos em Team Fortress 2, ouvir o narrador de Bastion contar a história de sua cidade, ver as mensagens nas paredes de Portal, apenas apreciar a linda estética de Okami, relembrar a infância com Duck Tales Remastered, levar um susto em Amnesia: The Dark Descent, derrotar os colossi em Shadow of the Colossus

A proposta de David Cage para o futuro é ótima e pode render obras maravilhosas nos anos que virão, que só contribuirão para a diversificação e evolução do desenvolvimento de jogos. Ou pode simplesmente não dar em nada. O que não se pode dizer é que os jogadores se importarem ou se emocionarem é novidade, porque isso eles vêm fazendo desde o começo.

As falas de Cage foram traduzidas do site Gamasutra.
Revisão: Vitor Tibério
Capa: Felipe Araujo

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
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