PlayStation: o que deu errado na estratégia live service da Sony?

Uma análise do colapso que custou caro à identidade da marca.

em 04/07/2025
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Durante anos, a Sony construiu o império do PlayStation com um foco nítido: experiências single player cinematográficas, bem produzidas, com histórias marcantes. God of War, The Last of Us, Ghost of Tsushima, Horizon Zero Dawn e Spider-Man não só venderam milhões, como definiram uma geração.


Em 2022, inspirada pelo sucesso de jogos como Fortnite, Apex Legends e Destiny, a Sony anunciou que investiria pesado no modelo live service: jogos pensados para durar anos, com atualizações contínuas e receitas recorrentes.

A promessa era clara: pelo menos dez jogos neste estilo até o fim de 2026. A virada foi tratada como estratégica, ambiciosa e inevitável para o futuro do setor.

Hoje, diante de cancelamentos e atrasos, a pergunta é inevitável: onde foi que tudo deu errado?

O plano: 10 jogos live service até 2026

Os custos de produção de jogos AAA explodiram na última década. Cada grande lançamento exige orçamentos equivalentes a produções de Hollywood, mas com risco ainda maior. Para uma plataforma como o PlayStation, depender apenas de grandes títulos single player já não parecia sustentável.

O modelo live service, por outro lado, prometia o paraíso financeiro: retenção, engajamento, microtransações, atualizações constantes e uma comunidade ativa. Era o famoso pote de ouro no fim do arco-íris corporativo. Como ignorar isso, diante de acionistas famintos por crescimento constante?

Em fevereiro de 2022, o então CEO da Sony Interactive Entertainment, Jim Ryan, foi direto:

“Pretendemos ampliar nossa experiência e ambição crescentes no espaço de jogos como serviço para complementar nossa força contínua nos títulos guiados por narrativa que os fãs de PlayStation conhecem e adoram.“

A promessa era de equilíbrio, os novos jogos como serviço viriam para somar aos consagrados títulos single player do PlayStation. Embora esse plano tenha se concretizado em parte, a crescente aposta no modelo online acabou por deslocar o foco criativo da marca. Estúdios tradicionalmente voltados para narrativas passaram a dividir seus esforços com projetos voltados ao multiplayer, o que reduziu o ritmo de lançamentos centrados em histórias.

O que deveria ser apenas um braço estratégico ganhou proporções maiores, e os pilares tradicionais da marca sentiram esse impacto, fazendo a confiança dos fãs, cultivada ao longo de anos de experiências memoráveis e narrativas envolventes, ser quebrada e subvertida por uma abordagem que parecia esquecer o que fazia o PlayStation único.

Bungie e a ilusão de expertise

A peça-chave dessa virada foi a aquisição da Bungie em janeiro de 2022, quando a Sony desembolsou US$ 3,6 bilhões para comprar o estúdio, tornando-se o maior investimento da história da SIE. Para efeito de comparação: a Insomniac, desenvolvedora de Spider-Man e Ratchet & Clank, foi adquirida por US$ 229 milhões. Isso diz tudo sobre o quanto a Sony apostou nesse movimento.

Embora a Bungie tivesse prestígio e uma trajetória marcante, sua reputação já apresentava fissuras. O estúdio havia encerrado parcerias de forma turbulenta com dois gigantes: a Microsoft, após Halo; e a Activision, após anos de atrito com a publicação de Destiny. Quando a Sony entrou na jogada, a Bungie já enfrentava sinais de desgaste com Destiny 2, pois o jogo perdia tração, a base de jogadores estava em declínio e a crítica especializada começava a apontar estagnação criativa.

Mesmo assim, a Sony não só trouxe a Bungie para dentro, como deu a ela poder de veto sobre outros estúdios. A Bungie virou uma espécie de curadora e um dos alvos mais notórios foi The Last of Us: Factions, projeto da Naughty Dog que estava há anos em desenvolvimento e era cercado de expectativas. Após uma análise da Bungie, o projeto foi colocado em “pausa” e acabou sendo cancelado.

Era de se imaginar que, enquanto vetava projetos dos outros, a Bungie estivesse preparando algo matador para justificar o investimento, no entanto, o que veio foi uma surpresa morna: Marathon, uma reimaginação de uma IP antiga da própria Bungie, agora transformada em um extraction shooter futurista.

Desde então, Marathon mergulhou em polêmicas, como denúncias de plágio de assets, escassez de conteúdo, insatisfação na equipe e, por fim, o adiamento indefinido de um jogo que deveria chegar em setembro de 2025. O projeto saiu dos holofotes direto para a gaveta.

O único spin-off positivo até agora é o estúdio teamLFG, criado a partir de talentos internos da Bungie, que ainda não anunciou no que está trabalhando. No saldo geral, o investimento bilionário da Sony ainda não se justificou, e cada mês que passa levanta uma dúvida incômoda: será que um dia vai?

Projetos que sumiram

Quando a Sony anunciou que lançaria dez jogos live service até o fim de 2026, parecia uma meta ousada, sendo que o plano era criar um complemento estratégico ao portfólio tradicional. Porém, conforme os meses passaram, o número real de projetos revelados, cancelados ou desaparecidos no ar passou dessa conta.

Ao invés de dez, o que surgiu foi uma onda caótica de tentativas simultâneas, cancelamentos silenciosos e estúdios em colapso. Não havia foco nem curadoria. E o mais grave: nenhuma comunicação clara com o público.

Abaixo, uma amostra do rastro deixado pela iniciativa:

Lançados:
  • Destruction AllStars — Lucid Games: título de lançamento do PS5, fracassou rapidamente em engajamento;
  • Gran Turismo 7 — Polyphony Digital: considerado pela Sony como live service, é antes de tudo uma franquia consolidada de corridas;
  • Helldivers 2 — Arrowhead Studios: único caso de sucesso indiscutível até agora, com engajamento sólido e aceitação da comunidade;
  • Concord — Firewalk Studios: lançado e encerrado em questão de duas semanas; o estúdio foi fechado logo depois.
Em desenvolvimento (ou em limbo):
  • Marathon — Bungie: adiado indefinidamente após controvérsias internas e externas;
  • Fairgame$ — Haven Studios: prometido para a primavera de 2026;
  • Horizon MP — Guerrilla Games: multiplayer ambientado no universo de Horizon, sem anúncio formal até agora;
  • Horizon MMO — NCSoft: parceria externa, ainda envolta em mistério e sem qualquer confirmação concreta;
  • teamLFG — estúdio derivado da Bungie, jogo sem nome, data ou gameplay revelados;
  • Dark Outlaw Games — estúdio comandado por Jason Blundell (ex-Treyarch), também sem data ou detalhes públicos.
Cancelados:
  • The Last of Us Factions — Naughty Dog: um dos mais aguardados, morto após parecer negativo da Bungie;
  • Twisted Metal — Firesprite: cancelado após reestruturação interna;
  • Spider-Man: The Great Web — Insomniac Games: spin-off online do universo do Aranha, engavetado antes de um anúncio formal;
  • God of War live service — Bluepoint Games: cancelado antes de sequer ser revelado ao público;
  • London Studio live service — cancelado junto com o fechamento do estúdio;
  • Bend Studio live service — nunca revelado oficialmente; cancelado;
  • Deviation Games — estúdio estava em parceria com a Sony; projeto cancelado junto com o fechamento do estúdio.
Essa lista evidencia um problema grave: a falta de critério e de controle interno. O que era para ser uma expansão estratégica virou uma avalanche de apostas mal calculadas. E mais preocupante ainda: muitos desses projetos estavam sendo tocados por estúdios tradicionalmente voltados ao single player, como Naughty Dog, Insomniac e até a Bluepoint. Isso contradiz diretamente a promessa feita por Jim Ryan, de que os live services seriam “complementos” à força narrativa da Sony.

Vale lembrar que o próprio Jim Ryan, arquiteto dessa virada, já deixou a empresa. Ele aprovou toda a estratégia, impulsionou aquisições como a da Bungie e apostou alto no modelo live service, mas saiu antes de enfrentar os resultados. O peso das decisões tomadas sob sua gestão ainda recai sobre a marca.

Se os pilares criativos estavam desviando o foco para tentar fazer parte de uma onda que não dominavam, então não era mais um complemento, era um reposicionamento forçado.

Nem todos podem ser Helldivers 2

No meio do colapso generalizado na estratégia da Sony, um jogo brilhou intensamente: Helldivers 2. E ironicamente, ele veio de um estúdio que a Sony não comprou.

Desenvolvido pela Arrowhead Game Studios e publicado pela PlayStation Studios, Helldivers 2 foi um sucesso absoluto. Lançado em fevereiro de 2024, o jogo rapidamente se tornou um fenômeno entre jogadores de PC e PS5, com gameplay frenético, cooperação tática, e um estilo irreverente que pegou o público de surpresa. Durante semanas, dominou o topo das paradas do Steam e bateu recordes de usuários simultâneos.

O jogo mostrou o que o live service poderia ser para a Sony: não um clone genérico de Fortnite, mas algo único, bem executado e com personalidade. Ele provou que há, sim, espaço para jogos como serviço no ecossistema PlayStation, quando feitos com visão, sem fórmulas recicladas e com liberdade criativa.

Embora tenha havido uma turbulência causada pela tentativa da Sony de obrigar jogadores de Steam a vincularem contas da PSN, que gerou um boicote massivo e forçou a empresa a recuar, a crise de imagem foi passageira, expondo a falta de preparo da Sony para lidar com comunidades PC. Ainda assim, Helldivers 2 sobreviveu e prosperou.

A questão é: por que ele deu certo e os outros não?

Aprovar mais de dez jogos como serviço ao mesmo tempo, vários deles no mesmo gênero saturado, era um erro de conceito. A Sony sabia que nem todos iriam vingar e apostou que um grande acerto justificaria todo o resto.

Helldivers 2 foi o acerto e sucesso que a estratégia pedia, porém, nasceu fora da casa, de um estúdio que já anunciou que vai seguir seu caminho de forma independente. Já Concord, o que deveria ser o plano A interno, virou símbolo do colapso. A virada da Sony teve glória em fevereiro e morreu em agosto.

Concord: o futuro da Sony após o fracasso

Nenhum jogo expõe melhor a fragilidade da estratégia da Sony do que Concord. O caso é tão surreal que parece montagem: a empresa iniciou uma parceria com a Firewalk Studios e, antes mesmo de o estúdio lançar qualquer jogo, resolveu comprá-lo. Foi um ato de fé cega, e essa fé custou caro.

Concord foi vendido como um shooter competitivo de primeira linha, com visual caprichado e pedigree técnico de um AAA. Em termos de gráficos, animações e performance, o jogo estava polido, porém, o que faltava era tudo o que não se compra com orçamento: visão criativa, identidade, personalidade.

Desde o trailer de revelação, o jogo foi recebido com ceticismo e piadas. Personagens genéricos, estética reciclada, nenhuma proposta clara. O lançamento só confirmou o que todo mundo já suspeitava: Concord não tinha nada a dizer.

O problema é que um jogo single player, mesmo fracassando em vendas, pode sobreviver, virar cult, achar nichos, ser redescoberto anos depois. Um jogo live service, não, pois ele precisa de uma comunidade ativa, todos os dias.

O jogo foi lançado e não atraiu jogadores, os servidores esvaziaram rapidamente, e pouco depois a Sony fechou o estúdio inteiro. O ciclo foi brutal: da compra ao fechamento em tempo recorde. Isso num título que carregava um investimento pesado e era tratado como vitrine da nova fase online da empresa.

O mais irônico é que enquanto Concord afundava com visuais realistas e produção milionária, jogos que vingaram no mercado, como Fortnite, Apex Legends ou até o início de Among Us, apostaram em estética leve, tempo de desenvolvimento mais curto e custo inicial reduzido, provando que gráfico não garante vida útil. Comunidade, sim.

O fracasso virou meme, virou manchete, virou estigma. Todo lançamento online da Sony daqui para a frente vai carregar o selo “vai ser o novo Concord?”, e a Sony sabe disso.

Concord foi uma lição violenta de que o modelo exige muito mais do que só dinheiro e vontade. E agora, com o público em alerta e a reputação arranhada, a Sony precisa provar que aprendeu, porque o próximo passo, qualquer que seja, vai ser julgado com lupa.

O público não veio, e a cultura também não

A verdade é simples: o público tradicional do PlayStation nunca pediu por jogos como serviço. Durante décadas, a marca construiu sua base em cima de narrativas fortes, campanhas cinematográficas e experiências fechadas. Quando a Sony decidiu virar a chave, ela ignorou isso e esperou que a audiência simplesmente a acompanhasse.

Os jogadores olharam para títulos como Fairgame$, Marathon e Concord com desconfiança. Nada ali parecia ter nascido de uma demanda real. Pareciam projetos montados em cima de planilhas de engajamento, não de criatividade.

O live service precisa de comunidade orgânica, de boca a boca, de confiança, e a Sony tentou plantar isso artificialmente.

O fracasso da iniciativa teve um custo visível. Estúdios foram fechados; equipes inteiras, demitidas. Firewalk, London Studio e Deviation Games foram engolidos pela reestruturação. Até a Bungie, que foi comprada como pilar da nova fase, enfrentou cortes internos e perdeu autonomia.

O DNA PlayStation e a ruptura com a própria identidade

Se a Sony liderou com folga na geração PlayStation 4, foi porque entregou volume e qualidade em seus exclusivos single player. O período foi marcado por um ritmo impressionante de lançamentos, como Bloodborne, Uncharted 4, Horizon Zero Dawn, God of War (2018), Spider-Man e The Last of Us Part II, todos aclamados, relevantes e sucessos de venda. A identidade do PlayStation foi construída ali: narrativa forte, produção de alto nível e uma cadência que poucas publishers conseguiram acompanhar.

Naquela geração, ela praticamente abdicou do multiplayer competitivo. O único FPS interno lançado foi Killzone: Shadow Fall, logo no início da vida do console. Depois disso, o foco foi total em experiências solo, cinematográficas, com altíssima qualidade de produção.

A liderança de mercado veio como consequência direta dessa visão. A Sony sabia seu lugar e entregava exatamente o que seu público esperava. Com a chegada do PlayStation 5, esse alinhamento começou a ruir.

A guinada para o live service pareceu uma tentativa desesperada de ocupar um espaço que ela mesma deixou vago por escolha. Em vez de investir em reviver franquias com potencial multiplayer real, como Killzone, Resistance ou Warhawk, a empresa preferiu criar novas IPs genéricas para competir com gigantes como Fortnite e Call of Duty.

É verdade que a COVID-19 afetou os cronogramas, porém, não justifica o quão tímido tem sido o output dos PlayStation Studios na geração atual. Muito tempo, dinheiro e talento foram desviados para projetos que não têm a ver com o que o público espera da marca. E isso enfraqueceu até o que a Sony sempre fez bem.

E agora? O futuro da Sony pós-live service

Depois de uma sequência de fiascos, cancelamentos e demissões, a Sony se viu forçada a desacelerar. Os planos de dez jogos como serviço até 2026 desapareceram sem cerimônia. Muitos dos projetos mais ambiciosos foram engavetados antes mesmo de chegarem ao público. Hoje, restam poucos títulos confirmados, e uma postura visivelmente mais cautelosa.

A Sony ainda tem cartas na manga: Fairgame$, Marathon e os projetos do universo Horizon. Todos carregando um peso extra: o estigma de Concord, o medo de novo flop e a dúvida se vale insistir num público que nunca demonstrou real apetite por esse tipo de produto.

Ao mesmo tempo, a pressão por entregas single player cresce. A expectativa por novos God of War, Spider-Man e The Last of Us não diminuiu, pelo contrário, aumentou com a escassez. O público quer aquilo que sempre definiu o PlayStation, e talvez esteja mais impaciente do que nunca.

A Sony pode insistir em manter um pé no live service, mas se não entender o próprio público, vai continuar correndo atrás do que não consegue alcançar.

Entre a ambição e a identidade

A estratégia da Sony falhou porque confundiu expansão com ruptura. Quis crescer em direções que não dominava, apostando alto em modelos de negócio e gêneros que nunca fizeram parte do seu core criativo. E nessa tentativa, acabou afastando sua base e colocando em xeque a própria identidade da marca.

Basta um acerto, um jogo com apelo e retenção e comunidade para movimentar centenas de milhões de dólares por anos. É um modelo com potencial real e, se a Sony conseguir acertar esse alvo, talvez todo esse caminho turbulento até aqui venha a ser justificado com o tempo.

O problema é o custo dessa jornada para quem está do outro lado: o consumidor apaixonado pelo PlayStation.

Nos últimos anos, a base viu os exclusivos da marca migrarem para o PC. A exclusividade, que por tanto tempo foi um dos pilares do ecossistema PlayStation, virou uma janela temporária, mesmo que compreensivelmente, pois os valores de produção estão nas alturas, e buscar novas fontes de receita faz sentido financeiro.

Isso só aumenta a necessidade de preservar o que ainda diferencia a marca: os jogos single player de excelência, feitos por alguns dos melhores estúdios do planeta. Santa Monica, Naughty Dog, Insomniac, Sucker Punch. Essa é a herança criativa que o público reconhece, consome e valoriza.

A Sony precisa encontrar equilíbrio. Seguir explorando o live service e deixar claro que essa busca não vai engolir o restante. Que Concord foi um tropeço, não um novo padrão. Que os jogos narrativos de alto impacto seguem vivos, em produção, no centro da estratégia.

Porque se perder isso, perde mais do que mercado, perde a si mesma.

Revisão: Vitor Tibério
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Matheus Oliveira
Entusiasta de games e cinema, sempre explorando novos gêneros e estilos enquanto acumula um backlog infinito. X e Instagram
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