Mega Drive 35 anos: nasce um ouriço azul e o despertar da guerra dos consoles

Vamos descobrir como, a partir de uma estratégia ousada de mercado, a batalha entre Sega e Nintendo começou pra valer.

em 24/11/2023
Seja bem-vindo ao terceiro capítulo do especial Mega Drive 35 anos! Em nosso encontro anterior, revisitamos os primeiros passos do 16-bits da Sega nos Estados Unidos para saber como foram as estratégias iniciais da gigante japonesa visando emplacar seu console em território norte-americano.


Hoje, iremos saber mais sobre o desenrolar desse plano, a partir da chegada de Tom Kalinske à Sega of America e, também, sobre o lançamento do jogo de certa mascote azul que fez a arena dos consoles de 16-bits pegar fogo nos EUA. Boa leitura!

O homem certo na hora certa

Depois de tantas tentativas de emplacar um console nos Estados Unidos, a Sega chegou a um impasse em 1990. O lançamento do Sega Genesis, no ano anterior, não havia sido um fracasso como as tentativas anteriores, mas, até o momento, ainda não tinha dado os frutos que a matriz japonesa tanto almejara.

A estratégia adotada pela equipe responsável pelo lançamento do console, envolvendo a associação da marca Sega Genesis a jogos de qualidade, endossados por grandes nomes da época, consolidou a empresa na segunda colocação do mercado, mas, ainda assim, bem atrás da indiscutível líder, a Nintendo.

Para piorar as coisas, os gastos com a estratégia vigente quase fizeram com que a filial norte-americana da Sega fechasse, devido aos prejuízos acumulados com o licenciamento e desenvolvimento de games que não venderam o suficiente, como James 'Buster' Douglas Knockout Boxing, por exemplo. 


Buscando dar o salto que faltava para ser, de fato, uma pedra no sapato da concorrência (e faturar bem com isso), Hayao Nakayama, CEO da Sega Enterprises do Japão, resolveu convidar um velho conhecido do mundo de negócios para ser o comandante da Sega of America: Tom Kalinske, antigo diretor-executivo da fabricante de brinquedos Mattel.


Kalinske nunca havia trabalhado em uma empresa de videogames até aquele momento, mas, na visão de Nakayama, tinha experiência de sobra para reverter a situação “morna” do Genesis no mercado.

Enquanto trabalhou na Mattel, entre 1972 e 1990, Kalinske e sua equipe reformularam diversas estratégias comerciais da empresa, aumentando em muito as vendas de linhas de brinquedos consideradas clássicas até hoje, como Barbie e Hot Wheels.

Em poucos anos, a receita financeira da Mattel disparou, saindo de 42 milhões de dólares por ano para 550 milhões de dólares, tornando-se a maior fabricante de brinquedos do mundo.

Nakayama teve a sorte de encontrar o homem certo na hora certa, pois, em 1990, Kalinske acabara de sair da sua antiga empregadora e estava de férias com sua família no Havaí, mas o espírito de encarar desafios acabou fazendo com que o antigo chefão da Mattel topasse a empreitada de colocar a Sega no topo do mercado dos Estados Unidos.

A estratégia da lâmina de barbear

Logo ao chegar na Sega of America e perceber a situação em que a empresa estava, Kalinske decidiu modificar o modelo de negócios vigente, visando aumentar tanto a quantidade de consoles vendidos quanto a de jogos desenvolvidos pela própria Sega e também por outras publicadoras. Para isso, uma das primeiras ações que tomou foi a redução do preço sugerido de venda do Genesis.

À primeira vista, pode parecer estranho pensar que reduzir os preços praticados pudesse ajudar de alguma forma uma empresa endividada a se recuperar, mas, ao propor isso, Kalinske mirou em uma estratégia de mercado conhecida como “estratégia da lâmina de barbear”: vender um produto a preço de custo (ou até com um leve prejuízo) para garantir lucros nas vendas de itens complementares.


Essa estratégia tem esse nome, pois, no mercado de lâminas de barbear, normalmente se vende a base do aparelho a um preço acessível, já as lâminas de metal destacáveis são vendidas a preços maiores, garantindo o lucro do fabricante. Outro mercado em que se aplica essa prática é o de impressoras domésticas, sendo os cartuchos de tinta a principal fonte de lucro das empresas fabricantes.

No mundo dos videogames, em geral, essa é a estratégia mais adotada até hoje: vender o console a preço próximo ao de custo e lucrar com a venda de jogos. Com a popularização recente de serviços de assinatura de games, como o Xbox Game Pass da Microsoft, essa tendência só aumentou.

Tom Kalinske sabia que, para atrair o consumidor para o lado azul da força, somente baixar o preço do console não adiantaria. Por isso, dentro de sua estratégia, decidiu adotar também os seguintes pontos:
  • Criação de uma equipe local de desenvolvimento de jogos, especialmente voltados aos gostos do consumidor norte-americano;
  • Investimento maciço em marketing agressivo, posicionando de vez o Genesis no mercado como o videogame “descolado”, dos jovens, em comparação aos consoles da Nintendo, com jogos mais voltados às crianças; e
  • Substituição do jogo que, à época, era vendido em conjunto com o console, Altered Beast, por outro game que refletisse melhor o posicionamento de mercado da Sega.
Nada contra Altered Beast, mas, com uma Nintendo pela frente, se transformar em lobisomem não bastaria: somente com um rival à altura do encanador bigodudo a Sega teria uma chance de vencer essa batalha.

Do outro lado do muro

Enquanto rivais como a Sega e a NEC corriam atrás da concorrência, por meio do desenvolvimento de novos consoles, a Nintendo, com seu Famicom, permanecia líder com bastante folga, sem ter tanta pressa para atualizar seu principal produto nas prateleiras.

Mesmo em situação confortável no mercado, a diferença de cinco anos entre o lançamento de seu console e o do Mega Drive, por exemplo, já fazia com que, inevitavelmente, a idade avançada de seu produto começasse a ficar aparente para os consumidores.

Embora jogos como Super Mario Bros. 3 fossem sucesso instantâneo junto ao público, esse e outros títulos do final da década de 1980, de fato, já extraíam praticamente o máximo do que o console poderia oferecer tecnicamente.

Dessa forma, era apenas questão de tempo para que a Big N começasse a desenvolver um novo console que, teoricamente, apresentasse mais potencial técnico do que a concorrência e pudesse durar um longo tempo em mercado, assim como foi com o Famicom.

Com uma primeira demonstração de protótipo à imprensa japonesa ainda em 1988, a Nintendo já dava o que falar com sua nova máquina: gráficos mais coloridos que a concorrência; som digital de alta qualidade; novos controles, com o triplo de botões de ação que o Famicom; um incrível modo de escalonamento e rotação de sprites; dentre outras maravilhas.

Dessa forma, em 21 de novembro de 1990, surgiria no Japão aquele que seria, de fato, o rival a ser batido pela Sega: o Super Famicom, que seria lançado nos Estados Unidos no ano seguinte, rebatizado como Super Nintendo Entertainment System.

Para não dar brecha à concorrência, já para o lançamento do console, a Nintendo disponibilizou à venda um jogo que demonstrasse todo o poder de rotação e escalonamento que o hardware oferecia, F-Zero, e a continuação direta do hit mundial lançado dois anos antes: Super Mario World: Super Mario Bros. 4.

Parecia que, dessa vez, seria a “Sega que não faria o que a Nintendo faz”, e medidas importantes tiveram de ser tomadas pela gigante dos arcades para não pôr tudo a perder.

Um ouriço diferente

Diante do sucesso da franquia Super Mario Bros., ficou claro para a alta cúpula da Sega no Japão que, para fazer do Mega Drive um sucesso, uma das ações necessárias seria o desenvolvimento de um ótimo jogo com personagens cativantes que pudesse bater de frente, em jogabilidade e carisma, com o best-seller da concorrência. Particularmente, Nakayama buscava para a Sega uma mascote que pudesse se tornar mais famosa até do que o Mickey Mouse.


Assim, foi promovido um concurso interno entre os funcionários da sede japonesa para que propusessem ideias, protótipos e projetos sobre o que seria o novo jogo flagship da Sega. Os gestores buscavam um título com atitude, que apresentasse apelo ao gamer norte-americano e, também, que mostrasse os diferenciais de seu console. 

Um dos protótipos apresentados foi desenvolvido por uma dupla composta pelo artista Naoto Ohshima pelo programador Yuji Naka. O protótipo consistia em um platformer 2D no qual o personagem principal partia em alta velocidade e saía rolando por sinuosos tubos. A ideia por trás do protótipo surgiu após Naka desenvolver um algoritmo que permitia a realização de movimentos suaves em curvas por sprites na tela.

O senso de velocidade e a qualidade da movimentação do personagem no protótipo pesaram a favor de Naka e Ohshima, que receberam sinal verde para prosseguir com o desenvolvimento, contando com o auxílio de uma equipe liderada pelo designer Hirokazu Yasuhara. Da direita para a esquerda, na imagem a seguir, estão Naka, Oshima e Yasuhara, respectivamente.

Durante o processo, diversos personagens foram propostos para encarnar o papel principal da aventura, dentre eles um simpático coelho que poderia agarrar itens com suas longas orelhas, mas que acabou sendo vetado pela complexidade de se implementar essa mecânica no game.


Ao final, o personagem que se tornou sinônimo de velocidade e atitude foi o famoso ouriço azul Sonic. Doctor Ivo "Eggman" Robotnik, seu grande rival, é baseado em outro design feito por Ohshima para o concurso.

Pela ênfase em agradar o público norte-americano, por diversas vezes durante o desenvolvimento a equipe criadora do game obteve feedbacks dos colegas da Sega of America, que orientaram algumas modificações no enredo e nas características dos personagens.

Por muito pouco, por exemplo, Sonic não nasceu astro de banda de rock, não teve dentes de vampiro e nem uma namorada humana chamada Madonna. Haja criatividade da equipe japonesa!

A equipe americana da Sega anterior à chegada de Tom Kalinske, incluindo o antigo CEO, Michael Katz, não acreditava muito no game. Questionava-se, por exemplo, o fato de os japoneses terem escolhido um animal tão desconhecido pelas crianças dos Estados Unidos como o ouriço para protagonizar o jogo.

Além disso, as notícias que vinham do Japão eram desanimadoras: filas e mais filas de consumidores esgotando as lojas para garantir seus Super Famicom. Só que Kalinske tinha um plano...

Roubando a cena

Em uma época pré-Internet, a divulgação de novidades sobre o mundo dos games era bem mais escassa, majoritariamente realizada por meio de revistas de jogos, alguns programas de televisão e em feiras temáticas, como a Consumer Electronics Show (CES), muito aguardadas pelos entusiastas, pela chance de ver de perto o que de mais novo e moderno chegaria às lojas e, quem sabe, aos lares dos gamers.


Com o Super Famicom indo muito bem no Japão, era grande o hype para sua chegada aos Estados Unidos; consequentemente, havia uma expectativa grande de que ela mostrasse, em janeiro de 1991, um pouco mais das novidades na CES. Porém, a Big N decidiu aproveitar a oportunidade para capitalizar em outro front de batalha: decidiu dar destaque a seu portátil Game Boy e a diversos lançamentos agendados para ele.

A Sega também apresentou um promissor portátil na feira, o Game Gear, mas ela iria aproveitar essa oportunidade para mostrar ao mundo, pela primeira vez, um jogo que ninguém esperava ver, muito menos fora dos muros da Nintendo. Um platformer veloz, colorido, com um personagem cheio de atitude e carisma.

Dessa forma, não tinha outro jeito: eleito o jogo mais impressionante da feira, Sonic the Hedgehog roubou a cena e começou a criar uma expectativa que há tempos não se via para um console que não fosse da Big N.

A estratégia estava armada: Sonic the Hedgehog seria lançado nos Estados Unidos em 23 de junho de 1991, antes mesmo do lançamento no Japão e na Europa e, principalmente, antes da chegada do Super NES ao mercado norte-americano, o que aconteceria exatamente dois meses após a estreia do ouriço.

Mas Kalinske não parou por aí: a partir daquele ano, o tal jogo que viria junto aos novos Sega Genesis vendidos, em substituição ao Altered Beast, seria nada menos do que o principal lançamento do ano!


Os diretores-executivos da sede japonesa reprovaram o plano de Kalinske em sua totalidade (corte de preços, marketing agressivo, criação do time de desenvolvimento local e inclusão de Sonic junto ao console), mas Nakayama resolveu “dobrar a aposta” e deu sinal verde ao norte-americano.

Esforço que valeu a pena

A partir da implementação do plano de Tom Kalinske pela Sega of America, a sinergia dentro da empresa melhorou muito, e os resultados práticos, idem.

As vendas do Genesis começaram a decolar na América do Norte, pois, dada a qualidade e repercussão de Sonic the Hedgehog e a quantidade crescente de bons jogos chegando à plataforma, os consumidores resolveram comprar o console da Sega em vez de esperar a chegada do Super Nintendo às lojas do país.

Com um console mais barato do que o da concorrência, desenvolvendo jogos voltados aos gostos locais e investindo pesado em marketing, não deu outra: no Natal de 1991, para cada Super Nintendo vendido, dois Genesis saíram das prateleiras rumo às residências dos consumidores; e a Sega chegaria a janeiro de 1992 abocanhando expressivos 65% do mercado de consoles de 16-bit dos Estados Unidos.

A estratégia começou a render frutos, mas seria óbvio pensar que a concorrência não ficaria de braços cruzados vendo seu reinado de mais de meia década em território norte-americano indo embora nos braços de um ouriço…

Próximos capítulos

Nos próximo textos, conheceremos mais sobre as táticas de Nintendo e Sega para conquistar o consumidor nessa guerra que chegou até ao Congresso dos Estados Unidos; além de saber mais sobre os periféricos do Mega Drive, a passagem de bastão para a nova geração e a performance do console ao redor do globo.

Então, nos veremos novamente no dia primeiro de dezembro; fique sempre ligado nas novidades do GameBlast!
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Fonte ilustrações: keytarin (presente de Natal), Nintendo Memo (fila lançamento Super Famicom), BMI (lâmina de barbear)

Entendo videogames como sendo uma expressão de arte e lazer e, também, como uma impactante ferramenta de educação. No momento, doutorando em Sistemas da Informação pela EACH-USP, desenvolvendo jogos e sistemas desde 2020. Se quiser bater um papo comigo, nas redes sociais procure por @RodrigoGPontes.
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