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Análise: The Legend of Heroes: Trails of Cold Steel (PS4) acerta na construção de mundo e entrega aventura envolvente

Título combina elementos de JRPG clássico com narrativa sólida e batalhas empolgantes.


The Legend of Heroes: Trails of Cold Steel é o primeiro capítulo de uma quadrilogia que dá sequência à maxisérie The Legend of Heroes — franquia bastante longeva da Nihon Falcom (da série Ys) que permaneceu por muito tempo como uma total desconhecida da maior parte do público fora do Japão.

Chegando ao Ocidente no embalo da localização da subsérie anterior, Trails in the Sky,  o game passou pelo PlayStation 3 e PS Vita antes de chegar ao PC em edição especial atualizada. Esta edição, por sua vez, é a que baseia o mais recente port do título para o PlayStation 4, preparando o terreno para a chegada do terceiro capítulo da trilogia, que deve chegar ainda este ano ao console.



Em meio a tantos relançamentos, a pergunta que pode ficar para o jogador interessado, mas que ainda não teve a oportunidade de introduzir-se na série, é: vale a pena iniciar essa jornada de centenas e mais centenas de horas pelo Império de Erebonia? Em suma: vale, sim. Acompanhe conosco os motivos!

Nobreza em guerra

Situado no mesmo mundo da trilogia Trails in the Sky, Trails of Cold Steel traz uma ambientação que mescla elementos steampunk com high-tech. Desta vez o foco da história recai sobre o Império de Erebonia, território que unifica diversos centros de poder geografica e culturalmente distintos sob o comando de uma casta nobre, chefiada por quatro grandes famílias.

Em uma sociedade milenar profundamente transformada pela chegada da tecnologia Orbal, e onde as marcas de uma guerra recente ainda se fazem presentes no cotidiano, somos apresentados à Academia Thors, escola militar onde jovens de todo o império estudam a arte do combate juntamente com as demais ciências da época.



Embora a academia seja um local de bastante prestígio indiscutível, esse prestígio todo acaba sendo distribuído de forma um tanto desigual entre seus estudantes: na própria estrutura da escola, as diferenças de classe entre nobreza e cidadãos comuns aparecem marcadas a todo tempo. Nosso protagonista é o calouro Rean Schwartzer, um jovem espadachim "sem uma gota sequer de sangue nobre nas veias", que não é de falar muito sobre seu passado e segue um estilo incomum de espada.

A trajetória de Rean, no entanto, não está destinada a ser a típica dos ingressantes na academia. Isso porque ele foi designado à recém-inaugurada Class VII, turma especial que segue um modelo experimental de formação, sob o comando da professora Sara Valestein.


Além de misturar pela primeira vez membros da nobreza com cidadãos comuns, a classe também faz parte de um programa de treinamento ligado à tecnologia ARCUS, armamentos orbais especiais que trabalham em sinergia. Com uma metodologia própria e focada em "estudos de campo", Valenstein prepara os membros da Class VII para serem um novo tipo de militares imperiais  —  qual, exatamente, nem eles ao certo saberiam dizer!

O teor político-militar do conto acaba servindo mais para garantir os contornos de uma trama focada em personagens. O enredo aborda a luta de classes e a temática da guerra sob uma tonalidade bem menos sisuda do que em um Final Fantasy Tactics (PS), por exemplo. A cota de eventos dramáticos é muito bem inserida por entre uma trama mais descontraída sobre jovens em um ambiente escolar. De quebra, uma construção de mundo muito detalhada e bem arquitetada resulta em uma narrativa bastante envolvente.



Os bastiões do cenário escolar na cultura pop nipônica estão todos os presentes: os tipos tradicionais da turma, disputas e dramas de amizade e romance, a relação com professores figurões e veteranos misteriosos. No conjunto, o enredo tem muito sucesso em apresentar uma trama crescentemente complexa e envolvente, ao mesmo tempo em que investe na imersão e construção de mundo  —  um misto muito interessante entre o JRPG clássico e as qualidades das boas visual novels.

A ambientação é utilizada de forma astuta, inserindo explicações sobre a história, tecnologia e mitologia desse mundo ao longo de aulas, sessões de estudos e diálogos. O que surpreende é que grande parte desse conteúdo é apresentado em pacotes sucintos e sem muita enrolação: excedendo os livros colecionáveis, as aulas e sessões de estudo trazem interações breves e divertem com elementos como quizzes que servem de avaliação para Rean ao longo de seu ano letivo. Sentar para fazer uma prova e se deparar com perguntas sobre assuntos que você nunca ouviu falar na vida — quer recriação mais perfeita da vida escolar?


Aventuras acadêmicas

Tendo sido minha porta de entrada para esse universo de The Legend of Heroes, Trails of Cold Steel me surpreendeu sobretudo com a qualidade e riqueza de sua construção de mundo. Camadas e mais camadas de lore vão sendo apresentadas com muita sutileza e precisão, tanto na linha principal da trama quanto ao longo de todo o conteúdo opcional.

Trata-se de um efeito raro de se ver e sempre muito bem vindo, que é o da construção de mundo sem recorrer a diálogos expositivos ou textos maçantes. Claro que há uma dose imensa de texto aqui (há, literalmente, pequenos livros para se colecionar — e ler — in-game), mas o segredo parece ser a boa distribuição das informações ao longo da narrativa. Uma grande quantidade de personagens, cenários e informações de background vai sendo inserida de forma orgânica e bem dosada, mantendo o jogador fisgado e curioso com facilidade.


Vale ressaltar: trata-se, sim, de uma narrativa bastante alongada - talvez até mais do que a média para o subgênero. No entanto, ao longo de toda a história foram bem raras as vezes em que senti estar passando pela famosa "encheção de linguiça". Mesmo os elementos mais gratuitos das sidequests atuam no sentido de garantir uma maior riqueza de ambientação ao jogo —  o quão profunda ela deve ser, fica a cargo do jogador. 

A trama principal se desenvolve através de um calendário interno que acompanha o ano escolar da Class VII. Após as devidas sequências introdutórias, a rotina estudantil vai dando os contornos do gameplay. Nos dias de folga, Rean fica encarregado de ajudar com tarefas do conselho estudantil, enquanto os outros personagens vão se envolvendo nos afazeres de clubes temáticos.


Além de receber uma listinha de afazeres optativos e obrigatórios, Rean também pode sair à caça de conteúdos extra. Toda a grande área de Thors e a cidade circundante de Trista encontram-se abertas para a exploração, com sidequests e eventos ocultos de história disponíveis para serem explorados pelo jogador que desejar se demorar um pouco mais na aventura. 

Fora disso, essas datas também comportam eventos de bonding com outros estudantes da party, interações especiais que aumentam os laços de amizade com os colegas, com efeitos na batalha e em outras mecânicas do jogo. Uma dungeon misteriosa explorável também marca presença ao longo dessas sequências, servindo como base de treinamento e garantindo um toque de ação a essa parte da aventura.



Após passar pelo dia livre, o que usualmente se segue são os Field Studies, viagens a campo preparadas pela instrutora Sara para que a Class VII entre em contato na prática a realidade das diferentes províncias e povos do império. Essas seções são os momentos mais empolgantes da história, alternando a exploração em profundidade das sequências escolares com o aspecto de viagem típico do gênero.

Cada cidade visitada traz uma lista de afazeres, dividida entre eventos da história e sidequests. Essas missões variam bastante em termos de complexidade, mas normalmente envolvem a interação com um elenco expansivo de NPCs e.a exploração de áreas abertas repletas de batalhas. Cada local traz suas características próprias tanto visualmente quanto em termos de sua história, e o roteiro se usa bem dessas mudanças de cenário para deslizar o foco entre nossos personagens centrais.


O formato episódico consegue manter uma dinâmica de constante renovação para a narrativa alongada do jogo. Ao longo das dezenas de horas da história, foram raras as vezes em que não me vi fisgado pelas subtramas sempre interessantes ou pelo planejamento das estratégias de batalha. Com a exceção de uma sequência ou outra onde a narrativa acaba deslizando um pouco, a consistência e o ritmo confiante da narrativa devem embalar com facilidade o jogador que se interessar pelo gênero e pela premissa.


A arte da guerra orbal

Pois bem, mas nem só de conversas e exploração vive um bom RPG. Felizmente, o bom equilíbrio do enredo encontra suporte também na parte da ação. O sistema de batalha de Trails of Cold Steel traz elementos que já apareceram na série anteriormente, traduzindo para um modelo tridimensional o combate por turnos em "pseudo-grade" visto em Trails in The Sky. Mesmo levando-se em conta a adição do aspecto tático da movimentação no campo, a dinâmica de batalha não foge muito das batalhas em turno tradicionais.



Controlando uma equipe de quatro personagens em campo, o jogador passará a maior parte do tempo gerenciando dois tipos de ataques especiais: Arts e Crafts.

As Arts consomem EP (pontos de magia recuperáveis apenas com itens e efeitos específicos) e representam magias geradas com o uso das armas ARCUS, podendo ser totalmente customizadas a qualquer momento através do sistema de Quartz - algo como um misto entre os sistemas de Materia e Guardian Forces de Final Fantasy.

Já as Crafts são técnicas poderosas que consomem CP (pontos de magia acumulados, dentre outras formas, quando se apanha na batalha), e são fruto das habilidades próprias de cada personagem, sendo portanto sempre exclusivos a cada um. Novas Crafts são aprendidas automaticamente com a progressão de níveis, e os S-Crafts, especiais ao estilo Limit Break de cada personagem, vão sendo destravados em ao longo da história.



As áreas de ataque e a movimentação no campo têm um papel central na estratégia de luta, assim como o uso eficiente do sistema de Links, a partir do qual os personagens previamente "linkados" emendam combos de diferentes tipos sobre ataques super efetivos. O sistema traz uma grande quantidade de técnicas de ataque e cura, além de buffs e debuffs.

Tudo isso é bastante customizável, o que tornou minha experiência de explorar as diferentes combinações possíveis especialmente divertida e recompensadora. Trata-se de um jogo bem equilibrado que abre diversas possibilidades táticas diferentes, sem perder a objetividade.



O Orbment representa um sistema de progressão que é complexo sem deixar de ser intuitivo. Os Master Quartz determinam um conjunto de habilidades central e podem ser aprimorados subindo-se de nível, enquanto os Quartz regulares habilitam Arts ou concedem habilidades passivas diversas enquanto equipados. O aprimoramento dos Orbments não exige grandes quantidades de grinding, e consegue se manter interessante ao longo de todo o game.

O desafio bem dosado das batalhas tira bom proveito disso tudo: os inimigos regulares apresentam um desafio na medida, enquanto os chefes impõem respeito: jogando descontraidamente, não foram raras as batalhas de chefe em que eu passei "na risca"  —  ou então me vi forçado a refazer a batalha desde o começo e com mais atenção aos detalhes.



Apesar de não introduzir grandes inovações propriamente ditas, o game trabalha muito bem elementos tradicionais do gênero, ordenando-os de forma precisa e sem excessos. Nada me pareceu inserido de forma gratuita, e os detalhes do sistema de batalha vão sendo inseridos organicamente na progressão do jogo. 

Por exemplo: além de quinze tipos de status e seis variações de dano elemental, temos também quatro tipos de dano físico diferentes (Slash, Thrust, Pierce e Blunt) que são determinantes para a realização de ataques em Link. A introdução desse elemento é feita de forma bastante intuitiva, com técnicas e batalhas específicas exemplificando para o jogador seu funcionamento. A interface de usuário torna a visualização desses detalhes algo fácil e sempre ao alcance de poucos toques de botão, o que também é uma bela mão na roda.

Outra mecânica simples que ajuda nesse sentido é o Note. O cadernão, acessível a qualquer momento ao toque de um botão, reúne diversas informações úteis sobre questssidequests, personagens (principais e NPCs), monstros e colecionáveis diversos.  As anotações nos ajudam a se localizar em meio à enxurrada de nomes, e ao contrário de compêndios de verbetes do tipo vistos em outros jogos, são breves e objetivos o suficiente para organizar a ação do jogador mais desmemoriado.

Assim como ocorreu com a ambientação, em pouco tempo eu já estava habituado com os detalhes do sistema de batalha, o que possibilitou curtir grande parte da experiência já com um bom senso de familiaridade. Jogadores em busca de um sistema de batalha por turnos interessante e sem exageros encontrarão aqui boas horas de jogabilidade do gênero.


De estação em estação

Comecei Trails of Cold Steel um tanto "no escuro" a respeito das premissas do game, imaginando uma narrativa sobre guerra e conflito entre classes. O foco no desenvolvimento de personagens, assim como a tonalidade mais descontraída de grande parte da história, me pegaram de surpresa positivamente. 

O formato episódico da história ajudou tanto na divisão da jogatina em sessões quanto na assimilação dos diversos elementos da narrativa com facilidade. Eu, que sou uma absoluta negação para guardar nomes de personagens e às vezes encerro animes de mais de 24 episódios sem saber o nome do protagonista, já sabia o nome de todos os membros da Class VII — e, pasme, até de alguns NPCs menores — ao final do segundo capítulo.


O custo dessa narrativa tão precisa é que a estrutura de livro da trama denuncia, desde o início, uma inegável linearidade em seu desenvolvimento. O jogador interfere principalmente na profundidade de imersão e em pequenas mudanças relativas às relações pessoais entre os personagens. De resto, a coisa segue em trilhos bem fixos (com o perdão do trocadilho), mas sempre com desenvolvimentos interessantes e pequenas (e grandes) surpresas a cada virada da história.

A trama forma a todo tempo pequenos "núcleos" de personagens, explorando-os de forma mais detida antes de retornar à tapeçaria mais ampla do enredo. Personagens que de início parecem desinteressantes ou mesmo desimportantes foram ganhando meu interesse, de forma que uma nova jogatina no modo New Game+ parece cada vez mais inesperadamente irresistível. 

Porém, se é verdade que a história me fisgou desde o início, também vale frisar novamente que se trata de uma narrativa ao estilo slow burn — no bom português, "o começo é meio lentão". Isso pode causar alguma estranheza ao jogador mais ávido por batalhas homéricas e plot twists dramáticos. Felizmente, a construção da trama feita aqui consegue valer a pena, e recompensa o jogador que tiver ao menos a curiosidade despertada na sequência introdutória.

O título dispõe de diversas opções de customização para tentar atender aos diferentes perfis de jogador: desde uma utilíssima função "Turbo" (que acelera qualquer evento, de cutscenes a batalhas) até um modo customizado de New Game+, a ideia é dar ao jogador bastante liberdade sobre como jogar. Em comum, toda e qualquer jogatina girará em torno de curtir a narrativa — trata-se de um JRPG admiravelmente repleto de texto, e seu apelo deve ser maior para quem aprecia essa abordagem.



Já a apresentação visual, mesmo com as melhorias gráficas das versões mais atualizadas, dificilmente consegue negar os ares de "geração anterior" do título. Ou seja, ele se parece exatamente com aquilo que ele na verdade é: um título de PS3/PSVita, atualizado com texturas e filtros para garantir aquela turbinada de leve no visual. 

Merecem elogios os modelos de personagem e monstros. Ainda que animados de forma bem básica, as texturas e a paleta de tons dessaturados garantem uma visual muito conciso e cheio de charme, que dá vida aos belos artworks mesmo em condições menos do que ideais. Os cenários, por sua vez, carecem do mesmo capricho — embora cumpram competentemente seu objetivo de renderizar as localidades fantásticas do game, um maior nível de detalhamento (especialmente de texturas e sombras) poderia provavelmente elevar a coisa a outro nível, e evitar uma certa disparidade entre os personagens e cenários.


A trilha sonora traz excelentes composições que mesclam batidas de ambientação típicas do gênero com instrumentais acústicas épicas, garantindo os ares cinematográficos (bem, anime-cinematográficos) da jornada. Para mim, foi um daqueles games que em pouco tempo já havia me habituado com as músicas — e logo já estava procurando na internet sobre os compositores. Ninguém merece passar mais de 65 horas ouvindo canções repetitivas (ou tendo que apelar para uma trilha sonora externa que quebra a imersão), e felizmente a parte musical aqui parece entender isso e embala a jornada de forma bastante agradável.

Apostando em uma narrativa construída meticulosamente e com bastante segurança, The Legend of Heroes: Trails of Cold Steel é mais uma adição de peso para a biblioteca de JRPGs do PlayStation 4, e um título imperdível para os fãs do gênero. Combinando mecânicas clássicas e construção narrativa complexa e intrincada, a aventura traz personagens carismáticos em ação empolgante explorando um mundo com camadas e mais camadas de lore. Minha introdução para a série dificilmente poderia ter sido melhor!

Prós

  • Construção de mundo detalhada e envolvente: um prato cheio para os amantes de um lore com várias camadas;
  • Elenco vasto de personagens carismáticos e interessantes, explorado de forma bem compassada;
  • Sistema de batalha balanceia bem complexidade com intuição: opções interessantes de customização e desafio na medida;
  • Enredo envolvente e que consegue se manter interessante através de uma estrutura de capítulos bem desenhada;
  • Trilha sonora excelente.

Contras

  • Início devagar e ritmo lento da narrativa pode incomodar o jogador mais ávido pela ação.
The Legend of Heroes: Trails of Cold Steel — PSVita/PS3/PS4/PC — Nota: 9.0
Versão utilizada para análise: PS4
Análise produzida com cópia digital cedida pela XSEED

é gamer pra todo jogo, mas tem predileção por títulos retrô e um bom e velho JRPG. Sonic, Donkey Kong Country, Ratchet & Clank, Final Fantasy e Disgaea são algumas das séries que formaram a paixão pelos games, desde que ganhou seu Mega Drive, muitos (nem tantos!) anos atrás. Além de escrever para o Nintendo Blast e Game Blast, pode ser encontrado tagarelando no Plano Crítico.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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