É possível separar os elementos básicos de um jogo?

Será que a linha que separa os elementos fundamentais de um jogo é tão clara que somos capazes de distingui-los perfeitamente?

em 05/03/2015

Um dia desses uma amiga, uma YouTuber com vários seguidores, postou no Facebook que tinha jogado o primeiro capítulo de The Order: 1886 (PS4) e, diferente da Internet inteira, estava adorando. Naturalmente, o pessoal foi perguntar pra ela o porquê. Dentre várias respostas, uma me chamou atenção. Ela afirmou que, em um jogo, prefere primeiramente a história, depois os gráficos e, por fim, a jogabilidade.


Muita gente grande na mídia especializada e muitos fãs de videogames costumam fazer esse tipo de afirmação, classificando seus aspectos favoritos em um jogo, sem se dar conta que esta separação é utópica e até indesejada. Ao tentar separar os aspectos desta forma, assume-se um grande risco de se perder algo interessantíssimo, a sinergia entre eles.
Não é assim que se faz um jogo

Com a palavra, os game designers

The Art of Game Design: a book of lenses (lançado no Brasil com o nome de A arte do Game Design: o livro original, publicado pela editora Singular Digital) é um livro escrito por Jesse Schell e uma das principais referências sobre o assunto. Em um dos capítulos, ele define o que chama de A tétrade elementar dos jogos, os quatro elementos fundamentais que constituem um jogo. Seriam eles, segundo as palavras do próprio: a mecânica, os procedimentos e regras do jogo; a narrativa (por vezes usada como sinônimo de história ao longo do livro), a sequência de eventos que se desdobram no jogo; a estética, a aparência, sons, cheiros, sabores e sensações do jogo; e a tecnologia, os materiais e interações que tornam o jogo possível.
Tétrade Elementar proposta por Schell

Schell é enfático ao afirmar que nenhum dos elementos é mais importante que o outro, conforme excerto a seguir, retirado do livro:

“É importante compreender que nenhum dos elementos é mais importante que os outros. A tétrade é organizada aqui na forma de um losango para mostrar a importância relativa, mas apenas para ajudar a ilustrar o ‘gradiente de visibilidade’; isto é, o fato de que os elementos tecnológicos tendem a ser menos visíveis para os jogadores, a estética é mais visível e a mecânica e narrativa estão em algum lugar no meio disso.”
Uma abordagem semelhante é feita em “Game Start, lições de Game Design para começar seu videogame”, de Thais Weiller, designer da JoyMasher, estúdio produtor de Oniken (PC) e Odallus: The Dark Call (PC). Em seu livro, Thais afirma que “a linguagem do videogame pode ser dividida em três principais grandes áreas com razoável precisão: estética (o que inclui o visual e o auditivo), gameplay e narração”. Em seguida, ela enfatiza: 

“Elas não estão presentes de forma completamente autônoma dentro do jogo; pelo contrário, seus limites são bem borrados”.
Formas de percepção em um jogo segundo Thais Weiller

Construindo imersões

Entre os elementos citados, notamos um fator-chave em comum, um objetivo que cerca e une todo jogo que se preze: o de construir uma ponte cada vez mais estreita entre o objeto e nós. A imersão de um jogo é dada pelo elo gerado entre o jogo e o jogador. Através de uma boa relação entre os quatro aspectos da tétrade citada, cada um com seu nível de visibilidade, mas carregando o mesmo nível de importância, temos jogos de sucesso, nos quais não é preciso muito para deixar qualquer jogador mais “vidrado” nele.

Entre alguns exemplos que causam estas sensações, reunimos alguns de famosas franquias, para se ter uma noção mais exemplificada de como funcionam estes elementos em um contexto de imersão do jogo:
  • Jogabilidade adaptável ao ambiente: em The Legend of Zelda: Ocarina of Time (N64), o controle de um instrumento e novas mecânicas, como a utilização de Epona, surgem para imergir o jogador ainda mais na narrativa. Aspectos como dormir além da hora e se sentir sozinho nos colocam em sintonia com o personagem, através de seus medos, defeitos e motivações. Já em Majora’s Mask (N64), são utilizados conceitos de tempo limitado, histórias paralelas e clima sombrio para reforçar sua atmosfera e por tornar a experiência a mais próxima da real;
  • Aproveitamento estético nas mecânicas: a série Professor Layton consegue nos prender pela história intrigante, casos nos moldes de Sherlock Holmes e muitos puzzles, que são construídos em cima dos cenários e situações contadas. Além disso, momentos misteriosos e resolução de problemas atraem ainda mais a atenção, principalmente com a tela de toque, que torna a experiência ainda mais palpável;
  • A mecânica a serviço da narrativa: os jogos iniciais da série Sonic the Hedgehog (2, podemos citar aqui) inseriam um alto momentum ao jogo de uma forma espontânea. Só o fato de pular e manter o gás inicial até o final da fase, obtidos pela agilidade do personagem e facilitados pelo level design, inseriam a característica descrita do ouriço na narrativa presente da série.
"Ele é/veloz/Sonic Ouriço"

Mario, qual elemento você mais gosta?

A informação obtida através desta pergunta pode nos mostrar dados interessantes, e até muito críticos. Fato é que, se pensarmos bem, a ausência de um elemento inabilita o sucesso do outro. Vemos muitos jogos fazendo sucesso sem sabermos ao certo como isso se deu e por isso fazemos aquela pergunta clássica: “o que aquele jogo tem que esse outro não tem?”.

Uma vez, ouvi dizer que a mecânica do pulo de Super Mario Bros. era o motivo principal para tanto sucesso no jogo, por serem uma combinação legal de ser sentida pelo jogador, e que o “viciava” a continuar saltitando, ao mesmo tempo em que completava um estágio (aliás, de curiosidade, note como o jogo Captain Toad: Treasure Tracker (Wii U) é nada menos que "e se o Mario não pulasse?).


Contudo, se fôssemos pensar bem, somente um pulo não faria tanto sucesso se não estivessem envolvidos os outros elementos. Explicando melhor: o pulo do Mario, regulado pelas leis da física do jogo (tecnologia) é um movimento fundamental (mecânica), reforçado pela arte do personagem (estética) para dar a sensação de esforço (narrativa). Este fato nos mostra que a separação de elementos, mesmo que desejada por sentimentos utópicos e idealistas, não possui um fator sensato no resultado final.

A magia de Tearaway

Lançado em 2013, Tearaway (PS Vita) foi o motivo para eu comprar um Vita e rapidamente se tornou um de meus jogos favoritos de todos os tempos. O principal motivo para tal é a maneira como o jogo utiliza todos os recursos disponíveis de forma magistral para fazer o próprio jogador ser parte do jogo.

O objetivo em Tearaway é que o personagem principal, uma mensagem, precisa entregar uma mensagem (no caso o prórpio personagem) até um Você (que tem a sua cara, então é você mesmo). Já de cara observamos como a história do jogo se reforça pelo bom uso da tecnologia de uma forma que é impossível descrever o jogo como ele merece separando seus elementos.

Nas fases The Orchards e The Barn, há uma progressão interessante da trilha sonora (estética) com o andamento da fase (narrativa) e os obstáculos nelas inseridos (mecânica). Não é uma exclusividade destes estágios. A trilha sonora caminha com o ritmo do jogo em toda sua progressão, as fases citadas são dois exemplos fáceis de observar.

Mas uma das coisas mais lindas de Tearaway é a aplicação dedo na tela traseira. Observe: o dedo é utilizado através da tecnologia traseira sensível a toque do Vita, e a imersão desta ação é reforçada pelo dedo da cor de pele escolhida pelo jogador aparecer no jogo e pelas regiões onde é possível esse tipo de interação possuírem a mesma estética da tela traseira. Esta interação é fundamental para combater os inimigos e passar por obstáculos e está no coração da narrativa de Tearaway, uma vez que você está ajudando a mensagem a se entregar para Você, sempre ao lado dela. Isso tudo é lindo e unido cautelosamente. Não devíamos nos esforçar tanto para separar elementos em nome de uma praticidade.

Colaboração: Jaime Ninice
Revisão: José Carlos Alves
Capa: Felipe Araujo
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