Analógico

Quando um jogo continua após o seu fim

Nenhum jogo bom termina com o fim de sua história: sempre há algo que convida o jogador a revisitar o seu mundo, seja por nostalgia ou conteúdo extra.


Todas as vezes que tenho a oportunidade de jogar Yoshi’s Island, para o Super Nintendo, eu o faço. Seja em um emulador, na tela de um celular ou no Wii, as sensações de reviver as coloridas fases do jogo envolvem misturas de nostalgia e diversão, o que me fazem consagrá-lo como um dos melhores de todos os tempos. É claro que muito da qualidade de um jogo vem da sua conexão com ele, que é totalmente subjetiva, mas não é só isso que nos faz querer jogar tudo novamente.


Recentemente, peguei o jogo que mais traz lembranças da minha infância (e que, muito por conta disso, considero como o melhor) e tentei jogá-lo novamente em meu tablet: The Dig, um point and click feito para computador no início dos anos 1990. Lembro-me de passar diversos meses na frente de uma tela de 14 polegadas tentando resolver os seus enigmas espaciais sem qualquer ajuda de revistas e internet. Foi a primeira vez que tive contato com ele após anos, sendo que agora consigo ter uma noção muito maior de qualidade de construção de um jogo digital. E não é que, por mais que a nostalgia tenha vindo, encontrei enormes falhas? Sequer continuei jogando.
Em The Dig, a história nos leva a um planeta alienígena extinto. Apesar de ter uma história incrível, há diversas falhas em sua construção como jogo.

The Dig continua sendo um jogo clássico e que marcou a minha vida e a de tantos outros. Pode ter sido uma grande novidade para a época em que foi lançado, mas envelheceu muito mal (aliás, merece um remake) e não consegue prender o jogador atual apenas por sensações do passado: a diferença entre ele e Yoshi’s Island é que o segundo foi construído de maneira tão grandiosa que sempre haverá desafio e a diversão será sempre garantida. Entrando mais em seu desenvolvimento e no de tantos outros jogos que jogamos até hoje, é preciso pensar para entender o que nos faz gostar de viver a mesma aventura tantas vezes.

Diferentes percepções

Quando o primeiro filme de Harry Potter foi lançado, assisti fervorosamente o maior número de vezes possível. Lembro que, com 11 anos, já sabia as falas e cortes de cena em minha mente, e conseguia adiantar tudo o que aconteceria para os que estivessem ao redor. Esta foi uma rara exceção, já que nunca mais repeti tal feito com nenhum outro filme. Depois de adultos, quando criamos uma boa distinção entre o que é bom e ruim, costumamos repetir poucas vezes os conteúdos de entretenimento que gostamos, sejam eles em formatos de livros, filmes e programas de televisão. Mas não os videogames.
"Neville, eu sinto muito, muito mesmo por isso. Petrificus Totalus!"

Quando desenvolvedores se juntam para criar um videogame, diferentemente de histórias que sobrevivem com uma linha narrativa fechada, um mundo é criado de maneira que possa ser explorado e vivido em um tempo exclusivo ao jogador. Enquanto muitos devoram o conteúdo em algumas horas, outros preferem conhecer cada detalhe do que está na tela, demorando meses com o mesmo produto até que compre outro.
Este é um dos meus colossos favoritos em Shadow of the Colossus. Até hoje me impressiono com o seu tamanho.

Mas qual o motivo para que joguemos um jogo novamente? A resposta é simples (e, por sua natureza, também complexa): o nosso cérebro. Quando gostamos de algo, temos a tendência de lembrar somente dos melhores momentos que o envolvem. Isso significa que, após jogar dezenas de horas de Shadow of the Colossus (PS2/PS3), lembrarei brevemente de como matei os gigantes e de alguns quebra-cabeças pelo caminho — quase todos os trajetos e pequenos momentos que tornam a aventura gratificante são esquecidos. A partir do momento que voltamos a jogar, esses momentos voltam e, além de serem diferentes do que lembramos, trarão nostalgia, diversão e curiosidade.
Jogos que não foram tão gratificantes tendem a ficar piores ao serem revisitados. The Order: 1886 (PS4), por exemplo, faz com que lembremos somente dos péssimos momentos, que são cada vez mais enaltecidos conforme jogamos algo bom. Não há nada que nos faça querer reviver uma história ruim, certo?
A curiosidade me fez reviver muitos jogos que tanto gostava. Muitos, como quase toda a franquia Mario Bros., serão eternos, podendo ser revisitados milhares de vezes e sempre divertir. Mas há um problema que faz alguns jogos envelhecerem muito mal: os gráficos. Não cheguei a terminar Final Fantasy VII, pois o meu PlayStation quebrou enquanto jogava e acabei deixando para mais tarde, então resolvi dar outra chance para ele: uma tarefa impossível. Com jogos tão fantásticos e gráficos avançados como encontramos atualmente, é difícil conseguir encontrar em polígonos tortos o mesmo tipo de sentimento que era encontrado nos anos 1990 em uma franquia que busca por realismo para atingir o jogador.
Em Final Fantasy VII, é muito difícil de se emocionar e identificar com personagens escondidos em polígonos e formatos esquisitos sem ter vivido a época do seu auge.

É claro que a paixão por um jogo pode aumentar ainda mais a curiosidade em torno dele, independentemente de gráficos, tornando-se uma experiência extremamente subjetiva. Shadow of the Colossus sobrevive até hoje por conta disso, enquanto uma enorme comunidade se empenha em descobrir áreas inacessíveis e conteúdos escondidos pelos desenvolvedores. Já há tanta coisa encontrada que é assustador pensar no tamanho do trabalho e empenho que os fãs têm. O fanatismo é uma arma poderosa para qualquer mídia, e nos videogames é o suficiente para mantê-los vivos por muitos anos além. Confira, abaixo, um vídeo com várias teorias e descobrimentos dentro do jogo:

Um é pouco, dois é pouco, três é pouco…

Há um estilo de jogo que consegue sobreviver décadas com milhões de jogadores ativos: o jogo online. MMOs trazem a possibilidade de uma vida extra, com personagens totalmente construídos e vividos pelo jogador, sem um final específico. A ideia é justamente conceder conteúdos extras de tempos em tempos que justifiquem a sua existência e dê novos objetivos, transformando a experiência em algo que é quase infinito. Cada vez mais, os consoles parecem absorver um pouco desta ideia.

GTA V é um dos jogos que traz um enorme universo com diversas missões extras e opções de diversão após o fim do modo história. Além da liberdade para fazer “o que der vontade” em uma metrópole, há atividades que vão desde o paraquedismo até se transformar em taxista. E tudo isso deixando de lado as funcionalidades online, que cada vez mais acrescentam história e modos de jogo em equipe — é um jogo feito para durar até o próximo grande lançamento, o que justificaria a sua presença na geração atual além da anterior.
Andar pelo mundo de The Witcher 3 nos faz encontrar situações como essa por todos os lados. É possível participar da briga ou ignorá-la completamente.

The Witcher 3 (Multi) elevou ainda mais o patamar. Sem qualquer opção de modo online, o seu universo tem um tamanho absurdamente enorme, e as missões extras estão em quantidade exorbitante. Neste exato momento, estou no nível 3 com minha personagem, e há 104 opções de atividade no mapa, fora da história principal. Chego a me perguntar se terei tempo para explorar tudo o que for possível, mas já acredito viver em uma geração na qual a ideia de viver 100% de um jogo se tornou impossível — e isso é ótimo, já que sempre teremos motivos para jogar novamente.
Em Resident Evil: Revelations 2, o número de DLCs chega a ser assustador (assim como o preço final).

Ao mesmo tempo, isso trouxe um problema: os DLCs, que são conteúdos extras liberados por download e, normalmente, pagos. Considerando que há desde roupas e acessórios para os que se importam com o visual de seus personagens até fases e mundos novos, os desenvolvedores enxergaram ali a possibilidade de fazer ainda mais dinheiro com um jogo lançado há tempos. Seria algo interessante, se não fossem muitos preços abusivos e conteúdos que não os justificam. No final, um jogo que custou originalmente 250 reais (preço atual de muitos), pode acabar quase dobrando esse valor.
The Witcher 3 merece méritos por outros motivos, também: diversos DLCs foram lançados gratuitamente, trazendo melhorias gráficas, correções de bugs e novas missões. Apesar de não receberem qualquer retorno financeiro por isso, mais jogadores sentem-se compelidos a comprá-lo. 
Cada vez mais, a comunidade de jogadores prefere jogos com grande quantidade de missões e mundos maiores. Isso envolve diversos quesitos, como os preços dos produtos, o pouco tempo livre e a vontade de encontrar na nova geração algo que justifique a sua existência. Conforme progredimos, a tendência é que encontremos cada vez um mercado exatamente assim — resta saber o valor financeiro que teremos que desembolsar para acompanhá-lo.

Um futuro infinito

O ano de 2016 poderá mudar a maneira como jogamos, e os jogos que chegarão a partir de então. Com a chegada dos óculos de realidade virtual ao mercado, saberemos enfim a aceitação do público e como será feita a sua inclusão aos jogos digitais. A união entre as tecnologias poderá resultar em universos ainda mais imersivos e interativos, transformando os videogames em máquinas de um universo paralelo — muitos encontrarão ali uma vida melhor do que a real.
O Project Morpheus, óculos de realidade virtual da Sony, chegará no começo de 2016 ao mercado. Mais novidades devem ser trazidas na E3, que terá cobertura completa feita pelo GameBlast.

Caso enxerguemos o futuro como algo em que viveremos com telas em nossos olhos, 24 horas por dia, parece-me óbvio que os jogos serão feitos de maneira que os jogadores não precisem revisitá-los, pois sequer os deixarão. A possibilidade de viver dentro de um GTA, sem o risco de ser preso na vida real, parece tentadora até a mim. The Witcher 3 já parece estar se enquadrando neste cenário, podendo até mesmo aparecer como um dos jogos a surgir em realidade virtual.

Caso contrário, teremos mais um periférico em nossas salas, utilizado somente de tempos em tempos. Os jogos deverão continuar se expandindo e nos fazendo continuar jogando após o seu fim, desde que tenham qualidade e não abusem financeiramente do jogador. Seja como for, o que importa é que sempre tenhamos algo para jogar. Aproveitemos enquanto ainda é possível conseguir ganhar troféus de platina sem precisar de anos para isso — mas sonhemos com a possibilidade de viver em um jogo que tanto amamos. O futuro está logo ali.

Revisão: Vitor Tibério
Capa: Ana Carolina

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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