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Análise: Grand Theft Auto: The Trilogy — The Definitive Edition (Multi) é um exemplo prático do que não se deve fazer com jogos clássicos

Uma das maiores decepções recentes da indústria de games é pautada pelo descaso com três dos melhores jogos da década de 2000.

Desde o seu anúncio em outubro após meses de rumores, Grand Theft Auto: The Trilogy — The Definitive Edition se tornou um dos títulos mais aguardados por mim para este fim de ano. Quem me conhece pessoalmente, sabe o quanto sou fã da franquia GTA desde adolescente, e a ideia de visitar novamente Grand Theft Auto III (Multi), Grand Theft Auto: Vice City (Multi) e Grand Theft Auto: San Andreas (Multi) em versões remasterizadas e modernizadas para a nova geração parecia o presente perfeito de natal, tendo em vista tanto a idade quanto a qualidade geral desses jogos.


Mas se no papel a proposta soava maravilhosa, na prática o que temos aqui é uma completa decepção, chegando a beirar o desrespeito com três obras clássicas que, além de influenciarem incontáveis jogos após seu lançamento original, também ajudaram a tornar a Rockstar o colosso da indústria que é hoje. Assim, sem mais delongas, vamos à nossa análise.

Os foras da lei

Talvez seja difícil para os jogadores mais jovens hoje olharem para Grand Theft Auto III ou Grand Theft Auto: San Andreas e notarem o quanto esses jogos marcaram época em sua geração. Mas, fato é que pouquíssimos games influenciaram tanto a indústria como a trilogia 3D da Rockstar. 

GTA III, por exemplo, embora não tenha sido o primeiro jogo a disponibilizar elementos de liberdade ao jogador, o fez com destacada maestria, tornando-se um dos "pais" do gênero de mundo aberto moderno. Além disso, sua controversa narrativa, inspirada em filmes de ação, teve um papel crucial no estabelecimento dos games como um meio maduro, capaz de contar tramas tão envolventes como um bom filme ou livro.

Se hoje presenciamos Grand Theft Auto V (Multi) figurando nas listas de maiores produtos culturais dos últimos anos e quebrando recordes mundiais (somente na época de seu lançamento, foram sete, segundo o Guinness World Records), não se iluda: é porque um dia GTA III estabeleceu a fundação necessária, a base para mundos virtuais vivos e complexos. 

Tinha-se aqui então a oportunidade perfeita para atualizar alguns dos jogos mais importantes dos últimos anos, agradando aos veteranos, ao mesmo tempo em que apresentava-se tais obras à nova geração. Porém, a realidade foi muito mais cruel do que o esperado.

O bom, o mau e o feio

Falando da remasterização em si, vamos começar pelos pontos positivos (sim, eles existem): Grand Theft Auto: The Trilogy — Definitive Edition traz algumas bem-vindas atualizações conduzidas pela Grove Street Games. A primeira é o ajuste de câmera e controles, que passam a funcionar como nos títulos mais modernos da saga. Se, no Vice City original você só enxergava as costas de Tommy Vercetti, por exemplo, agora você finalmente pode rotacionar a câmera ao seu redor. 

De modo similar, a jogabilidade foi repensada para os controles modernos, incluindo a presença da roda de equipamentos de Grand Theft Auto V. Embora, na teoria, essas sejam adições simples, acredite: dentro do jogo, elas fazem uma grande diferença positiva, e digo isso como alguém que recorreu a mods para jogar as versões originais no PC com um controle há alguns anos. Como é o caso de muitas modificações não-oficiais, o resultado nunca ficou natural o bastante. Por sua vez, aqui a adaptação da jogabilidade funciona bem de fato — crédito merecido para a desenvolvedora.

A modernização dos cenários e ambientes também salta aos olhos. Dos interiores das casas aos diversos veículos de cada jogo, nada ficou sem um retoque visual, e embora existam algumas inconsistências notórias (como o efeito de onda quando se cai na água ou os erros gramaticais resultados do upscaling), a verdade é que no geral, neste aspecto em específico, a GSG realizou um bom trabalho, que consegue cumprir seu papel de atualizar os jogos para uma nova geração. Em certos momentos confesso que até parei de jogar para contemplar um pouco os ambientes e reflexos, graças à nova iluminação global.

Também existe a adição de um mini mapa funcional com GPS nos três títulos (vale lembrar que GTA III não contava originalmente com um recurso de mapa no menu), e o bem-vindo suporte a português brasileiro na forma de legendas. 

Ok, temos aqui um início animador, não? Infelizmente, passados os primeiros dez minutos de empolgação inicial, começam a aparecer os muitos problemas que residem por baixo desta nova apresentação, fazendo com que seja praticamente impossível recomendar o jogo em seu estado atual.

Legado maltratado

Feitos os necessários elogios acima, é uma pena que, para cada passo para frente que tenha sido dado nesta coletânea, tenham sido dados dois para trás, e que estes sejam significativos a ponto de comprometer a experiência como um todo. O primeiro (e talvez o maior) problema reside nos personagens e animações. Como pode ser visto nas capturas de tela do jogo, nesta remasterização os personagens seguem um estilo meio “plastificado”, assemelhando-se muito a bonecos infantis banhados em óleo de cozinha.

Tendo em vista o tom adulto das obras, esse é um estilo que, na minha opinião, funciona bem em pouquíssimos momentos dos três jogos. Para piorar a situação, ainda há uma discrepância no sentido de que alguns modelos são mais bem trabalhados do que outros. É até estranho olhar Tommy e Mercedes juntos em uma das primeiras cutscenes de Vice City, por exemplo, justamente porque esse contraste visual entre o protagonista e a personagem secundária fica bem aparente.

Mas não deveria ser assim. Como veteranos da franquia bem saberão, mesmo os coadjuvantes aqui possuem traços marcantes, geralmente cartunescos e caricatos. Infelizmente, como resultado da transição entre estilos, muitas dessas características se perderam durante o processo de remasterização. Denise e Old Reece, ambos de San Andreas, são alguns dos exemplos que circularam na internet em diversos memes, mas o estrago final é muito maior, com alguns personagens aparecendo bem distantes de suas rendições originais.

Somam-se a isso as animações desengonçadas, que parecem ter sido importadas diretamente do PlayStation 2 sem nenhum tipo de cuidado ou adaptação, e a profusão de bugs e glitches de toda espécie. Sinto relatar que não precisei de mais do que dez minutos de jogo em Vice City — meu preferido da trilogia 3D — para presenciar carros travados, personagens andando em círculos e clippings bizarros de objetos e texturas. Parece muito? Policiais flutuando, paredes invisíveis e uma física praticamente quebrada também estão no pacote. Por sorte, não presenciei crashes ou erros que me impediram de terminar missões principais, mas estaria mentindo se não dissesse que o estado atual do jogo é muito propício a isso.

A sensação predominante é que temos um produto incompleto, talvez lançado antes do prazo para aproveitar as vendas de fim de ano. Mas mesmo desconsiderando os bugs e problemas de otimização — que podem vir a ser corrigidos no futuro —, há múltiplas decisões criativas que levantam questionamentos, como a ausência do filtro alaranjado em San Andreas e os bizarros efeitos visuais implementados na tela de wasted (como esses últimos foram aprovados eu honestamente não sei dizer).

Uma pena, pois aqui estão três obras capazes de render ótimos momentos, apesar de muito tempo após seus lançamentos originais. O fato de que mesmo com todos os problemas da remasterização ainda é possível se divertir com os três títulos atesta a qualidade geral do material base. Mas, a verdade nua e crua é que esses clássicos mereciam muito, mas muito mais respeito e carinho nesta adaptação.

Um fio de esperança

O lançamento desastroso da trilogia não passou despercebido pelos fãs e pela crítica especializada, o que fez com que a Rockstar rapidamente se pronunciasse, pedindo desculpas pelos vários problemas das versões ditas “definitivas”. Paralelamente, uma série de medidas paliativas foi anunciada, como o retorno da trilogia original à loja da Rockstar no PC (de graça para todos aqueles que adquirirem a nova coletânea até julho de 2022), e, mais importante, a promessa de subsequentes patches e atualizações que trariam os jogos ao “padrão de qualidade que merecem”.

De fato, do lançamento até o momento de publicação desta análise, duas atualizações significativas foram disponibilizadas para a maioria das plataformas (1.02 e 1.03, respectivamente). A atualização 1.03, especificamente, corrigiu diversos problemas consideráveis, como a chuva nos três títulos, e a ausência de neblina em San Andreas através de uma configuração opcional no menu. 

A partir do último patch, também é possível desabilitar ou habilitar os horrendos contornos brancos que apareciam sobre os alvos toda vez que você puxava uma arma nos três títulos, e a malfadada ponte invisível que circulou pela internet em diversos memes já não existe mais, bem como alguns erros gramaticais gritantes. 

Após um breve tempo de teste, também posso citar que a performance do título como um todo (um problema crônico desta remasterização) parece melhor, embora ainda não esteja “lisa”, nem dentro do esperado — para referência, estou usando um Ryzen 5 3600xt e uma GTX 1080 Ti. Mesmo jogando em 1080p e com os jogos instalados em um SSD, ainda noto algumas quedas na taxa de quadros, algo que, honestamente, julgo surpreendente considerando o que é apresentado na tela.

Porém, é preciso citar que, de modo geral, esses dois últimos updates e suas correções certeiras da chuva e neblina constituem um pequeno, mas expressivo, fio de esperança para o futuro. Deixando meu lado de fã falar mais alto, confio na capacidade da Rockstar de “arrumar a casa” e entregar, com o tempo, um produto coeso e digno da franquia e do legado que representa. 

Talvez esta Definitive Edition nunca se recupere de sua má impressão inicial — o que não seria injusto, diga-se de passagem —, mas como redator torço para que, dado o devido tempo, eu possa escrever sobre a história de sua redenção. Seria ótimo termos de fato uma versão definitiva desses jogos disponível e acessível para a nova geração. Mas, neste caso, tudo dependerá do suporte que veremos daqui pra frente, após a publicação desta matéria.

A grande decepção

Como dito no início desta análise, Grand Theft Auto: The Trilogy — The Definitive Edition tinha tudo para ser um dos maiores e mais celebrados lançamentos deste ano. Infelizmente, devido a múltiplas decisões questionáveis dos envolvidos no projeto, o que recebemos foi uma coletânea que pouco fez por merecer a alcunha de “definitiva” registrada em seu nome.

Como fã de longa data da franquia, torço do fundo do meu coração para que a chegada de mais patches de correção, além dos dois já disponibilizados, coloque essas novas versões à altura das obras originais. Se um dia isso acontecer, esta será uma fácil recomendação. No estado atual, porém, (ainda) não é o caso. Uma pena.

Prós

  • Legendas em português brasileiro;
  • Controles seguem o intuitivo layout estabelecido por GTA V;
  • Modernização dos ambientes e cenários em geral possui mais acertos do que erros;
  • Últimos patches trouxeram mudanças significativas;
  • Três jogos clássicos capazes de render horas de diversão, apesar de tudo.

Contras

  • Personagens apresentam múltiplas inconsistências em sua apresentação, minando a proposta de remasterização e prejudicando a imersão;
  • Bugs e glitches ainda são frequentes, mesmo após dois patches;
  • Ausência de parte considerável da trilha sonora original e da rádio MP3 na versão de PC;
  • Performance ainda inconsistente;
  • A todo momento passa a impressão de ser um trabalho inacabado.
Grand Theft Auto: The Trilogy — The Definitive Edition — PC/PS5/PS4/XSX/XBO/Switch — Nota: 5.5
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Felipe Fina Franco
Análise produzida com cópia digital cedida pela Rockstar Games

é bacharel em Produção Cultural pela UFF e estudante de Comunicação Social pela FSMA. Na infância, ganhou um Super Nintendo dos pais e, desde então, nunca mais deixou o mundo dos games. Ainda sonha em ser um Mestre Pokémon.
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