Quando chegou à Fiorentina em 1984, o jogador de futebol Sócrates afirmou que estava lá para ler a obra de Antonio Gramsci em sua língua original e conhecer a história da classe trabalhadora italiana. Se o saudoso Doutor ainda estivesse conosco, Wheels of Aurelia, talvez, poderia lhe interessar.
Elaborado pelo estúdio independente Santa Ragione, baseado em Milão, o game coloca o jogador em uma viagem pela Via Aurelia — que parte de Roma e se estende por mais de 500 quilômetros pelo litoral mediterrâneo — no efervescente ano de 1978.
Gamificando o road trip
A metáfora da estrada como um elemento de transformação do protagonista se tornou um elemento marcante na literatura e, posteriormente, no cinema. De On the Road a Mad Max, os empecilhos e as pessoas com quem o viajante se encontra são fundamentais à crescente complexidade de seu caráter — unindo o nomadismo ao Bildungsroman, gênero literário em que o desenvolvimento do personagem ganha foco.Nesse sentido, a obra opta por um formato baseado em um sistema de decisões, o que lhe concede variedade e múltiplos finais. Pode-se escolher a quais passageiros ofertar uma viagem, o que afeta o percurso final. Os diálogos são igualmente regidos por um método seletivo, e adotar as diferentes falas que o jogo oferece incide numa breve luz sobre a vida dos participantes da trama.
Muito do conteúdo destas conversas acaba convergindo para temas e acontecimentos reais da sociedade italiana daquela época: greves trabalhistas, a legalização do aborto, o rapto e subsequente assassinato de Aldo Moro — ex-primeiro-ministro da Itália — pelas mãos da Brigada Vermelha. Wheels of Aurelia comenta brevemente estes fatos em detrimento de uma extensa explicação, o que evita que os diálogos caiam em uma artificialidade desnecessária. Aos mais interessados, essas citações servem a uma futura consulta para melhor compreender o que se passava na Itália de 1978.
Contanto, se o jogo se desvencilha da sensação artificial com sua pouca didática, esta recai fortemente sobre a obra devido à sua forma curta. Cada jornada que percorri em Wheels of Aurelia durou, em média, de 15 a 20 minutos — sendo que o game conta com 16 finais ao todo. Esse fato se alia ao considerável número de personagens que entram e saem do carro de Lella para criar uma sensação de apressamento no ritmo da experiência: episódios fundamentais são descritos com poucas falas e, em decorrência, o aprofundamento psicológico dos interlocutores se torna raso. Mesmo Lella, a única a permanecer o tempo todo conosco, sofre desse problema.
Cabelos curtos e roupas masculinas: o estilo de Lella representa conquistas do feminismo de sua época. |
O problema que isso traz a Wheels of Aurelia é capital. Para um game que pretende dar vida a figuras com histórias e inquietudes de ordem complexa, passar batido por estas questões quebra toda a naturalidade dos diálogos que se dão sobre as quatro rodas. No fim, uma ideia que poderia nos fazer refletir sobre as agruras inerentes a todos nós acaba se tornando uma viagem insípida. Isso poderia ser contornado ao se adotar um traçado mais longo da estrada fictícia, em conjunto com a redução do número de personagens e situações na trama.
Muitas vezes, a escolha das falas e as perguntas dos interlocutores chegam a ser incoerentes, como se o game entendesse que detalhes cruciais tivessem sido revelados anteriormente durante a viagem, sendo que não o foram. Isso se deve tanto a uma eventual falha de programação, que faz disparar um diálogo na hora errada, quanto à forma adotada pelo estúdio — que exige complexidade lógica para funcionar adequadamente.
Se minha Barchetta falasse...
Outro elemento fundamental a Wheels of Aurelia é, obviamente, o ato de dirigir. O título dá ao jogador um controle básico do veículo com um botão para acelerar e outros dois para fazer curvas. Essa mecânica é fundamental às escolhas que se faz ao longo da viagem: deve-se acelerar para não pegar um passageiro à beira da estrada e tomar as entradas das cidades depende do piloto também.Dirigir na Via Aurelia fictícia é uma experiência surreal. Há uma sensação constante de derrapagem ao manobrar o veículo e colidir com outros carros na estrada, porém, isto não afeta em quase nada o decorrer dos eventos no jogo. Não me parece, no entanto, uma alusão proposital ao mais experimental (e italiano) Fellini, o que poderia ser algo fascinante. Em realidade, nos momentos em que o jogo propõe um minigame de corrida ou perseguição, contribuiu para o meu desinteresse.
Um lado mais intrigante de meu carrinho é que ele, em si, é um ambiente do jogo. Embora não se possa enxergar seu interior, seu rádio está quase sempre ligado e seu som invade os ouvidos. As mudanças de estação ditam certa inquietação das personagens e um panorama sonoro complexo, que vai da música de época às notícias do dia.
O lado negativo da escolha por uma trilha sonora que se faz sempre presente na ficção é que esta perde seu aspecto dramático. Não há entradas musicais pré-determinadas que adicionem valor à imagem, o que acarreta em uma ideia de superfluidade do âmbito sonoro da obra. As boas composições do título acabam sendo valorizadas por seu aspecto estritamente musical, e não por sua função na obra.
Wheels of Aurelia resvala em temas fortes com uma proposta singela e se ambienta em um tempo conturbado da história italiana. No entanto, é um jogo que poderia ter seu potencial muito mais explorado com algumas escolhas fundamentais em sua organização, fator que relegou sua viagem a um lugar incerto e repleto de artificialidade. Parafraseio Italo Calvino: uma ideia exótica não é informativa por si só.
Prós
- Proposta narrativa interessante;
- Boas composições musicais.
Contra
- Pouco aprofundamento nas personagens;
- Física pouco favorável aos desafios do jogo.
Wheels of Aurelia — Win/Mac/PS4 — Nota: 6.0
Versão utilizada para a análise: Mac
Revisão: Ana Krishna Peixoto