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Análise: Cookie Cutter (Multi) é como um desenho animado punk com sede de sangue

Brutalize os opressores em nome do amor e da liberdade.


Agressivo, extravagante, decadente e indecoroso, Cookie Cutter apoia-se na estética punk para exibir sua personalidade furiosa e colorida. Tatuagens, pichações, sujeira, cabelos revoltos, tralhas bagunçadas, pancadaria sangrenta, alusões sexuais e atitude rebelde se unem no caos intencional da transgressão desvairada.

O mais marcante está nas animações elaboradas, feitas em 2D, segundo a tradição. Ao contrário do que poderíamos achar da descrição anterior, as linhas são limpas e claras, quase como em um desenho animado comum introjetado com um pouco da velha ultraviolência e do surrealismo dos antigos cartuns em que os personagens tiravam objetos enormes do nada para triturar seus rivais.

Nessa aventura metroidvania, você jogará com Cherry, brutalizando tudo o que surgir em seu caminho para derrubar o sistema opressor. É uma fantasia de poder libertária, mas as coisas são menos desregradas do que parecem.



Contracultura robótica

O principal tema em Cookie Cutter está em consonância com a ideologia punk: a resistência em face à opressão autoritária, especialmente a tomada de consciência contra a exploração abusiva do trabalho, que no enredo assume a forma de uma parábola hiperbólica que será combatida à altura.

A história gira em torno da misteriosa Megastructure, um lugar criado a partir da energia conhecida como Void e que foi desbravado por Vicktor Garbanzos mais de 200 anos atrás. Ele retornou de lá com a promessa de haver vencido a morte: basta transferir a consciência para autômatos chamados Denzel.



É claro que a oferta era boa demais para ser verdade. Quem foi seduzido acabou se tornando um escravo eterno na Infonet, a empresa de Garbanzos que domina a Megastructure com mão de ferro. Ao longo da campanha, encontramos vários textos sobre as condições desumanas dos trabalhadores tiranizados pela Infonet.

Shinji Fallon, a principal engenheira da companhia, sentiu o peso de sua responsabilidade e decidiu arriscar a vida para sabotar seu patrão maligno. Ela criou Cherry, uma Denzel diferente e poderosa, que inesperadamente se tornou sua amante. Salem Garbanzos, o sádico filho do presidente, encontrou Shinji e destruiu Cherry cruelmente. A moça foi descoberta por Raz, um amigo engenheiro que a reconstruiu como pôde.



Há poucas semelhanças entre a Cherry que vemos na abertura, praticamente uma personagem Disney de grandes olhos doces, e aquela com a qual jogamos, com cabelo parcialmente raspado, manequim mais largo, postura caída, roupas de caminhoneira (nas palavras de outro personagem) e um olhar que vai da indiferença à insanidade violenta.

É aqui que o jogo começa. Cherry está pronta para partir, mas não para derrotar a Infonet. Para isso, ela deverá percorrer as profundezas da Megastructure para conseguir recursos para Raz, aumentar seu poder e descobrir o paradeiro de sua amada. Ou seja: é o clássico tema de videogame sobre salvar uma mulher raptada.

Logo no início, conhecemos a NPC mais exótica da história: a vagina de Cherry, que na verdade é uma I.A. chamada Regina, tem um rosto e é muito mais educada que sua companheira, conversando com todos os personagens que surgem. A coisa é menos escrachada do que parece, estando mais para a comédia irreverente do que para a vulgaridade apelativa.




Vale mencionar que Cookie Cutter não conta com localização para português brasileiro e que a história descrita acima é narrada por Shinji na cena de introdução do jogo, mas sem qualquer tipo de legenda. Questionei o diretor, Stefano Guglielmana, da desenvolvedora italiana Subcult Joint, e ele respondeu que está nos planos de atualização suprir tanto a legenda da abertura quanto mais opções de idiomas.

Um biscoito crocante segundo a receita

O nome “cookie cutter” significa cortador de biscoito, isto é, algo que serve para moldar a massa em formatos iguais. É da ideia de uniformidade que surge o uso dessa expressão como uma gíria que indica a falta de individualidade, a mesmice de algo produzido em massa, repetido e copiado. Cherry, afinal, mesmo sendo especial, é uma Denzel.



O significado do título acaba correndo o risco involuntário de ser refletido em outros aspectos do jogo e não tenho como evitar de pensar como ele encaixa com a minha percepção de que Cookie Cutter é um metroidvania que não desvia da fórmula do gênero e parece inspirar-se diretamente em alguns primos, como Guacamelee e Hollow Knight!.

Ainda que exista um lado negativo para isso, ele se resume à falta de surpresas na estrutura e na gameplay, mas não à falta de qualidade. Temos na aventura de Cherry um espécime exemplar que se atém ao mais importante e que, apesar de toda a temática visual baseada em exageros, evita mecânicas desnecessárias que poderiam entravar a jogatina.




O combate de combos é ágil e divertido, e as cinco armas existentes são dispostas em uma roda de seleção para alternarmos entre elas sem empecilhos. Além dos pontos de vida, Cherry também tem os de Void, uma misteriosa fonte de energia que serve tanto para usar as armas e os ataques especiais como para curar.

Isso engendra uma dinâmica funcional que nos incentiva a cair no meio da porrada: bater, apanhar, curar; bater, apanhar, curar; sem grandes punições a quem joga, mas mantendo o desafio de enfrentar muitos inimigos ao mesmo tempo.

Finalizar um adversário com um ataque brutal também recupera Void. Isso acontece o tempo todo, então Cherry sempre tem combustível para continuar seu ciclo de violência e recuperação.



Já o design de mundo é eficiente e, devo dizer, um alívio de praticidade. Eu amo metroidvanias, mas não é raro que eles pequem no backtracking. Não é o caso de Cookie Cutter, que tem pontos de viagem rápida bem localizados e um mapa não linear que enreda os caminhos, sem a intenção de criar obstáculos nem de obrigar a longas voltas quando retornamos a um local.

Além disso, o mapa é muito bem sinalizado, então os já esperados itens inacessíveis que poderão ser alcançados mais tarde após obtermos novas habilidades, ficam devidamente cartografados.




Só não espere uma fúria revolucionária entre os metroidvanias. O caminho aqui é um velho conhecido na abertura do mundo cadenciada por meio das habilidades adquiridas, os pontos de experiência para comprar melhorias com os lojistas, os segredos e tesouros para incitar a exploração e os segmentos opcionais mais difíceis para desafiar aqueles que buscam recompensas. Familiar, mas bem-executado.

Punk comportado ou apenas consciente?

Em um jogo de diversão extravagante como Cookie Cutter, é estranho que as músicas mereçam um adjetivo oposto: discretas e modestas, quase despercebidas. Um tom de mistério aqui, riffs de guitarras nas lutas ali; ao contrário das animações, a música não foi feita para chamar a atenção.




Entendo que nem sempre as melodias ganham destaque nos games, mas este é um título que, ao se moldar pela estética punk, deixou de lado justamente um dos aspectos marcantes da expressão desse movimento transgressor: o poder da música. Como resultado, deixou adormecido um elemento latente que poderia envolver mais a pessoa que joga e elevar a revolta implacável de Cherry.

O visual do mundo também não está no mesmo nível da proposta. Não há nada de errado com ele, mas também não há nada marcante, em contraste com o pungente exagero dos designs de personagem e das animações. Com muitos corredores industriais e paredes metálicas ou cavernosas, olhando superficialmente, os cenários de fundo tendem a ser tão genéricos quanto o nome do lugar em que a aventura ocorre, a Megastructure.




Felizmente, há algumas exceções e uma miríade de detalhes interessantes para atrair o olhar, especialmente os pôsteres, cartazes e pichações, incluindo diversos easter eggs em referência a outros metroidvanias, bandas e HQs.

Na verdade, eu acho que o próprio tom subversivo em geral é um tanto comedido. Sim, tem alguns objetos fálicos aqui, uns trocadilhos ali, uma privada entupida acolá, vislumbres de tripas frequentes e coisas do tipo. Acho que é justamente o jeito grosseiro, debochado e caricato que dispersa parte do peso que a narrativa carregaria se fosse mais séria.



De certa maneira, sinto que este é um terreno seguro já trilhado antes em outros jogos, nada que exija a classificação indicativa máxima, uma vez que Cookie Cutter ficou na faixa dos 16 anos para os parâmetros brasileiros (apenas no Steam o jogo aparece com classificação de 18 anos com descrição de "sexo explícito", enquanto nas outras plataformas consta apenas "conteúdo sexual", o que é mais preciso).

Não que eu vá reclamar, até prefiro que o jogo não tenha tentado testar limites do repulsivo, mas fiquei com a impressão de que Cookie Cutter se considera mais transgressivo e agitador do que realmente está disposto a ser — exceto por Gina, é claro; essa me pegou de surpresa logo no começo.

Entre a subversão e a familiaridade

Cumprindo a promessa de animações tradicionais elaboradas, Cookie Cutter mira no alvo da fórmula metroidvania sem a intenção de inova-la. É um acerto preciso, debochado e sangrento, sem dúvidas, mas ainda deixa a sensação de que a aventura e as músicas não estão no mesmo tom rebelde da personalidade vigorosa ostentada pela protagonista em seus movimentos fluidos e brutais.



Prós

  • As animações tradicionais em 2D são muito bem elaboradas, fluidas e criativas;
  • O combate ultraviolento é divertidamente caricato;
  • O mapa registra com clareza tudo o que é pertinente e o backtracking é recompensador;
  • Campanha ágil e sem excessos.

Contras

  • As músicas inexpressivas são uma oportunidade perdida de aprofundar o conjunto da estética intensa;
  • Os cenários pintados com relativa simplicidade destoam das animações detalhadas;
  • Os aspectos de metroidvania funcionam bem, mas não trazem novidades;
  • Não tem legendas em português brasileiro e, na cena de introdução, não tem qualquer tipo de legenda para a narração em inglês.
Cookie Cutter — PC/PS5/XSX — Nota: 8.0
Versão utilizada para análise: PS5
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital cedida pela Rogue Games

Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
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