Blast from the Past

Shadows of the Damned (X360/PS3) e seu roteiro de elevador

Conheça a saga de como um jogo de inspiração Kafkiana foi reduzido a uma história sobre um latino com sua arma.



Shadows of Damned (X360/PS3) é um trabalho da Grasshopper Manufacture, de Suda51, com um dos principais nomes responsáveis pela série Resident Evil, Shinji Mikami, repetindo a dobradinha de sucesso que os dois fizeram na produção de killer7 (GC/PS2). A questão é que, enquanto a Capcom era a empresa por trás do clássico original de 2003 e deu carta branca para a produção do game protagonizado por Harman Smith, compreendendo-o dentro de um mercado de nicho e de acordo com um processo de produção e contexto completamente orientais, esta aventura de terror gótico que tem Garcia Hotspur como anti-herói foi bancada completamente pela Electronic Arts, o que ocasionou certos atritos que impactaram muito o resultado final.

A Divina Comédia de Suda51

Você certamente deve estar familiarizado com A Divina Comédia, em que o narrador-personagem Dante Alighieri desbrava o inferno atrás de sua musa Beatriz. Anterior a ela e com toa a certeza sendo uma das suas inspirações, há também o mito grego de Orfeu, aquele que faz um acordo com Hades pela alma de sua esposa, a ninfa Eurídice, após percorrer o Tártaro.

Pois bem, Shadows of the Damned bebe, essencialmente, dessa fonte estrutural. Garcia Hotspur, o latino caçador de demônios e anti-herói do nosso game, tem a sua amada, Paula, sequestrada até o submundo, conhecido aqui como a Cidade dos Condenados (City of Damned, no original) por um demônio chamado Fleming. Falhando na tentativa inicial de resgatá-la, Garcia adentra numa busca no covil do próprio inimigo no intuito de livrá-la das garras do vilão.



Para isso, ele conta com a ajuda de Johnson, um simpático demônio em forma de caveira que assume diversas formas que se tornam uma das responsáveis por oferecer variedade ao game. Ao longo dessa jornada, Garcia, junto do jogador, vai descobrindo a respeito da origem de Paula através de vários tomos de um livro antigo dos demônios ao mesmo tempo em que ele é atormentado por visões da própria sendo assassinada várias e várias vezes.

Dessa forma, Shadows of Damned se apresenta, basicamente, como um jogo de tiro em terceira pessoa — a jogabilidade lembra bastante, inclusive, os da série Resident Evil. Atire no ponto fraco dos nos inimigos para fazê-los cair. Além da forma de tocha, usada para iluminar ambientes escuros (e acredite, o jogo tem uma infinidade deles, afinal, é o inferno), Johnson é capaz de se transformar em uma pistola, uma metralhadora automática ou uma espingarda que podem ser aprimoradas com o tempo.

Outra forma que a simpática caveirinha é capaz de assumir é o Big Boner. Resultado do senso de humor distorcido de Suda, Johnson consegue se transformar em uma espingarda de cano bem comprido após utilizar certos serviços eróticos via telefone. Ela é sua principal arma contra os inimigos gigantes que aparecem ao longo da campanha, que conta também com momentos de gameplay em segunda dimensão, no melhor estilo sidescroller.


O primeiro círculo do inferno: Trevas

Shadows of Damned começou a ser desenvolvido inicialmente como Kurayami, um jogo de survival horror concebido por conta da recepção positiva de Michigan: Reporter from Hell (PS2) no Japão e na Europa. Com menos adrenalina, a ideia era que Garcia vagasse por uma vila com nada além de uma tocha e resolvesse os mais diversos puzzles espalhados pelo local.

Aos poucos, a direção do jogo foi mudando e a ação foi tomando conta do título que se propunha com uma narrativa bem mais aberta e que seguia um tom menos linear do que os jogos cuja história se mostra como o seu principal fio condutor. Alinhado com essa ideia, o título também tinha pesadas influências de Franz Kafka, cuja obra também compartilha desse sentimento de desorientação a respeito dos acontecimentos.



O próprio conceito da sombra, que até chegou a aparecer na versão final de Shadows of Damned, era muito mais intenso em Kurayami. Tendo as trevas como o foco central do game, a ideia era trazer justamente um protagonista com um único foco de luz que representaria sua coragem contra a escuridão e os temores naturais oriundos de dentro desse desconhecido.


Considerando outros projetos da Grasshopper Manufacture à época — mais notoriamente, No More Heroes (Wii) —, Kurayami entrou num development hell até ser resgatado pela Electronic Arts. Foi quando o projeto conheceu seu segundo inferno.


O segundo círculo do inferno: Elevador

No instante em que a Electronic Arts, uma produtora ocidental assumiu as rédeas da produção, Kurayami fez uma curva de cento e oitenta graus e foi se tornando Shadows of the Damned. O conceito original que chegou a ser apresentado pela empresa contava com Garcia iniciando o jogo completamente nu, sendo que ele iria adquirir vestimentas e equipamentos ao longo da campanha. Garcia também teria a companhia constante não de Johnson, mas de Paula, originalmente apresentada como uma espécie de fada que viveria dentro de sua pistola.

Ao todo, até que fosse finalmente aprovado, o roteiro do então game que se tornou Shadows of Damned passou por cinco tratamentos — que nada mais é do que um eufemismo do mercado audiovisual para “jogue fora e comece de novo”. Diante da dificuldade de Suda em produzir uma versão que agradasse os executivos da empresa, ele recebeu a instrução de que uma narrativa comercial para público ocidental precisava passar pelo chamado teste do elevador. Ele consiste na ideia de que uma sinopse narrativa precisava ser concisa e clara ao ponto de ser contada em sua plenitude durante uma viagem de elevador. Caso contrário, o mercado não iria aceita-la.


Além disso, outra imposição da EA, decorrente do contexto da indústria de games na época, quando a série Call of Duty estava em seu auge, foi que o protagonista tivesse uma arma, pois era coisa de ocidental. Dessa forma, em uma veia similar à que a Clover Studios fez com o Dante de Devil May Cry e que sua sucessora espiritual, PlatinumGames, fez ao produzir Vanquish (X360/PS3), Garcia se tornou uma espécie de sátira ao protagonismo maneiro ocidental, feito para agradar as massas.

O terceiro círculo do inferno: Preso num eterno purgatório

No fim das contas, Shadows of the Damned foi reduzido a uma simples história arquetípica da princesa que precisava ser salva por seu herói. Apesar de ser um jogo interessante e competente, é notável ainda como as ideias de Suda acabaram sendo relegadas para escanteio e se tornou mais um capítulo recorrente dos atritos da Grasshopper com as produtoras do ocidente, como aconteceu também com Lollipop Chainsaw (X360/PS3). Isso se torna evidente ainda com uma declaração de Mikami em 2012 para a PSX Extreme, quando implicou que Suda teria ficado “de coração partido” por não conseguir desenvolver o cenário como havia sido concebido originalmente — o que inclusive sugere-se que foi o motivo para ele ter se afastado por um momento da produção direta de novos games.



Entretanto, nem tudo é um caso perdido. Kurayami Dance é um mangá roteirizado pelo próprio Suda e que teoricamente é a ideia original de Kurayami colocada em prática. Mais recentemente, Travis Strikes Again: No More Heroes (Switch) resgatou a propriedade intelectual ao inserir Travis Touchdown em uma espécie de sequência fictícia chamada Damned: Dark Knight.

Isso, no fim, acabou sendo suficiente para abrir uma série de especulações a respeito do futuro da propriedade intelectual. Afinal, por que teria ela sido resgatada agora apenas no intuito de fazer uma piada e de remoer o passado? Precedente há — Metroid Prime: Federation Force (3DS) é um jogo que ninguém pediu, mas serviu justamente como uma espécie de reativação da franquia Metroid Prime, que logo teve seu quarto título anunciado. Ficaremos de olho no desenrolar dessa história — se houver.

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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