Analógico

Como uma ideia se torna um jogo? O exemplo de BioShock

BioShock é um pesadelo dos tempos modernos da terrível junção de fanatismo religioso e ciência sem limites. O jogador deverá enfrentar o ... (por Bruno Grisci em 30/04/2013, via GameBlast)

BioShock é um pesadelo dos tempos modernos da terrível junção de fanatismo religioso e ciência sem limites. O jogador deverá enfrentar o que restou de um perigoso culto e os horrores tecnológicos e biológicos que eles criaram e seu gigante complexo submerso que reside embaixo da areia de uma aparentemente deserta ilha. – Pitch de BioShock
Não deve ser segredo para ninguém que muita coisa muda em qualquer trabalho criativo entre os esboços das primeiras ideias e o produto final. Mas você tem ideia de qual o peso dessas modificações? O que permanece, o que é descartado, o que é transformado? Para discutirmos um pouco sobre o tema, vamos a um exemplo prático, comparando a proposta inicial de BioShock, fornecida pela desenvolvedora Irrational Games para as distribuidoras na esperança de ver seu jogo lançado, e a versão final que chegou até as nossas mãos.

Para tanto, vamos utilizar o pitch de BioShock. Um pitch é um documento fornecido por estúdios de cinema ou games com um apanhado de ideias de seu novo projeto. A Irrational disponibilizou-o em seu site, e é ele que usaremos como referência e fonte das citações que você encontrará neste texto.

ALERTA: o texto abaixo contém spoilers para quem não jogou os games da série BioShock. Leia por sua conta e risco.

Bem vindo à Isla de Salvación

"Eu escolhi algo diferente. Eu escolhi o impossível. Eu escolhi...
Rapture.
Uma cidade onde o artista não temerá o censor,
onde o cientista não será limitado por moralidade insignificante,
onde o grande não será contido pelo pequeno.
E com o suor de seu rosto, Rapture pode ser sua cidade também". - Andrew Ryan, fundador de Rapture, em BioShock
É com essas palavras que você é recebido na metrópole submersa de Rapture no começo do jogo. A cidade foi construída na década de 40 como um escape para todos aqueles que se sentiam oprimidos no mundo da superfície, um local de infinitas possibilidades. Por algum tempo o plano prosperou e grandes avanços foram obtidos, especialmente na área de manipulação genética, que graças aos plasmids, desenvolvidos com o DNA de uma espécie de lesma marinha, permitiu que todos com dinheiro suficiente pudessem ter habilidades sobre-humanas. Com o tempo a situação toda fugiu do controle, a sociedade entrou em colapso e a suposta utopia desbancou para o caos. É aí que o nosso protagonista, Jack, após um acidente de avião, chega à entrada para a cidade.

Segundo o pitch, a ideia do acidente de avião já existia no projeto inicial. Só que o avião caiu porque o piloto levou um tiro na cabeça acidentalmente, que devia na verdade ter acertado Carlos Cuello quando seu disfarce foi descoberto e... Carlos quem?

Pois é, originalmente nem Jack, nem Rapture. O plano era criar um sucessor espiritual para System Shock 2 (imagem ao lado), jogo de 1999 da Irrational, com a temática de manipulação genética de humanos, daí o nome do jogo, "Shock" sendo uma referência à fonte de inspiração e "Bio" à história. Os objetivos eram bem claros: criar um FPS com gráficos de ponta, muita ação e terror.

O tal Carlos Cuello, um ex-militar demitido por instabilidade psicológica, precisa voar para a Isla de Salvación para resgatar a filha de um grande industrial. Esse lugar tropical é dominado pelos membros de um culto religioso fanático que prega o uso da manipulação genética em humanos. Aqui cabe observar que o roteiro é muito próximo da história do primeiro Far Cry, que tem mais ou menos esse mesmo plano de fundo. Continuando, o disfarce do Carlos é descoberto quando o avião se aproxima da ilha, um dos passageiros tenta acertá-lo, o piloto é morto e a aeronave despenca. Em terra firme, o personagem descobre os experimentos avançados que foram desenvolvidos e permitiram a criação de mutantes e híbridos entre espécies.
Você fica tenso e sente os químicos não familiares movendo-se com você, músculos não familiares se contorcendo, órgãos não familiares trabalhando. Seu novo corpo ganha vida sem o seu consentimento. Placas quitinosas formam-se no seu torso, na sua virilha. Bulbos abrem espaço na sua nuca como agulhas de tricô, soltando um líquido verde salgado que pinga onde uma vez estiveram seus olhos.

Você agarra o rifle que modificou através de nanorobôs. A arma está sintonizada com a massa gelatinosa escorrendo pelo corredor, sua munição projetada para penetrar na estrutura molecular da criatura e queimá-la de dentro para fora. Você está orgulhoso de ter diminuído a umidade da superfície pela metade na última vez que usou o sistema de hackeamento do ambiente... isso deve atrasar o “Man o' War”.
Os seus inimigos:
Humanos cultistas fanáticos;
Mamíferos geneticamente projetados/híbridos aquáticos;
Ciborgues assassinos;
Robôs.
        Também em seu site oficial, a Irrational exibe as artes de alguns dos monstros que não foram para a versão final do jogo. Confira as artes conceituais abaixo.




        O quanto disso passou para a versão que conhecemos? A ideia de um culto religioso não combina muito com Rapture. “Nenhum deus ou rei, apenas o homem”, como diria Ryan. O cenário de uma ilha tropical também difere bastante da metrópole em Art Déco, apesar da ideia de um complexo submarino já estar presente. Em algum ponto devem ter percebido que o visual de uma cidade embaixo da água seria o tipo de design que vale a pena ser explorado. Mas e os inimigos? À medida que a ideia passou de resgate numa ilha para um conto sobre a formação de uma distopia, os personagens precisaram ser adaptados. Os robôs sentinelas de segurança foram mantidos, mas os monstros e aberrações genéticas precisavam condizer com o novo ambiente.


        A solução foi a criação dos splicers, cidadãos de Rapture que se viciaram nos plasmids e acabaram enlouquecendo ao mesmo tempo que seus corpos eram desconfigurados. Vítimas de experiências genéticas? Sim, mas de uma forma muito mais sutil e elegante que monstros gigantes. Por falar neles, aliás, a adição das Little Sisters e dos Big Daddy completou a população do jogo sem remover o significado do título do mesmo.

        Venda seu peixe

        O objetivo de um pitch não é apenas falar do seu jogo, é mostrar que ele tem viabilidade comercial e vale a pena investir nele.
        BioShock irá: Redefinir o gênero de tiro em primeira pessoa nos consoles e PC através da imersão do jogador em um mundo reativo e modificável;
        Ser o jogo Unreal com os mais incríveis visuais já feito;
        Suportar física sem paralelo através da engine Karma;
        Estabelecer uma nova franquia com forte potencial para cinema e televisão (o jogo mais recente da Irrational, The Lost, acaba de ser vendido como um filme para a BBC);
        Fornecer uma interface transparente e acessível.Contar uma história madura e assustadora;
        Assustar muito as pessoas;
        Contar uma história madura e assustadora;
        Assustar muito as pessoas.
        Será que a 2K recebeu tudo isso quando resolveu distribuir o jogo? BioShock realmente foi um grande impacto para os FPSs quando foi lançado e, juntamente com outros títulos como Portal, mostrou que jogos de tiro não precisam ser apenas guerras e multiplayer. A ambientação e história também se destacaram, provavelmente mais do que se o plano inicial de ilha de mutantes tivesse sido levado adiante sem modificações. Mas e o “mundo reativo e modificável”? Voltaremos a esse ponto em breve.

        Já sobre os gráficos, são muito bonitos. Não sei se são os melhores já feitos em Unreal, mas a equipe de design ficou de parabéns pelos cenários. A promessa da nova franquia também se concretizou. A série já recebeu três jogos, adaptações literárias e quase virou um filme nas mãos da Universal, mas a iniciativa foi cancelada devido a desacordos quanto ao investimento disponível. Enfim, o que podemos ver bem é que a preocupação com a viabilidade comercial do jogo existe desde o começo, e os desenvolvedores querem mostrá-la para as distribuidoras.


        A descrição original dá a entender que BioShock teria uma atmosfera de jogo de terror e ação, algo semelhante talvez a Dead Space, com as aberrações genéticas fornecendo o gore. O que tivemos como resultado foi diferente, o jogo manteve alguns elementos de terror, mas não dá para dizer que é assustador. O que temos é um pouco de suspense e horror psicológico, principalmente graças a detalhes de ambientação, como a cena em que há corpos pregados na parede do hall da cidade ou as estátuas vivas do artista Sander Cohen.
        Multiplayer
        Os aspectos multiplayer de BioShock trazem algo novo para o gênero.
        Deathmatch baseado na história. O que é isso? Imagine jogar o game singleplayer. Mas você não é o protagonista. Você é um cara jogando do lado dos monstros na campanha singleplayer. Em vez de uma IA previsível, um segundo jogador (ou terceiro, ou quarto talvez) pode entrar na pele de vários monstros no mundo que esteja perto do jogador. Esses monstros são jogados em visão de primeira pessoa pelo segundo jogador (o jogador monstro). Sob controle do jogador que controla os monstros, essa relativamente fraca mas numerosa IA pode formar emboscadas, realizar padrões de ataque para quebrar as defesas do jogador ou até mesmo fingir-se de morta para reviver quando o jogador virar a esquina.
        Curioso ver como o modo multiplayer foi totalmente removido da versão final (para reaparecer em BioShock 2). No resto da seção, é explicado que essa ideia enfrentaria problemas de design por causa da possível quebra de personagens fixos, como monstros que aparecem em cutscenes. Talvez os problemas tenham se mostrado inviáveis, ou talvez a ideia não se encaixasse mais na nova história do jogo, muito mais intimista. Observem, contudo, que algumas das opções do segundo jogador parecem ter sido ensinadas para a IA. Splicers conseguem se fingir de mortos para ataques surpresa ou se organizar em gangues para aumentar sua força.

        Would you kindly?

        Lembram quando disse que voltaríamos ao tópico do “mundo reativo e modificável”? Chegamos agora na transformação mais significativa de BioShock, que inverteu a mensagem do jogo.
        BioShock oferece um nívei de customização e interação sem precedentes durante o jogo. Essa customização é acessada através de três diferentes eixos – Armas, Manipulação de ambiente e Modificações genéticas.

        Jogadores conseguirão usar seus recursos para conceber e construir suas próprias armas, alterar os arredores e até mesmo mutar a natureza da sua estrutura celular!
        Pare, por gentileza? "Por gentileza"... frase poderosa. Frase Familiar? Sente-se, por gentileza? Levante-se, por gentileza? Corra! Pare! Vire! Um homem escolhe, um escravo obedece. Mate! Um homem escolhe! Um escravo obedece! OBEDECE! - Andrew Ryan
        Discussões éticas sobre genética, política e cidades submarinas à parte, o grande mérito de BioShock é ser uma fábula poderosa sobre as escolhas do jogador. A proposta inicial do jogo indicava a possibilidade de alterar o mundo a sua volta e você mesmo. Através de engenharia genética, seria possível montar o próprio corpo da maneira que melhor atendesse a situação. O ambiente poderia ser modificado, uma das opções, por exemplo, era aumentar o nível de gás oxigênio para tornar uma sala mais inflamável. Armas poderiam ser criadas pelo próprio jogador.

        No título final, as coisas estavam diferentes. Os plasmids alteravam o corpo do jogador dando diferentes poderes, mas isso está no mesmo nível de customização de escolher um tipo de revólver diferente. Uma das poucas decisões era salvar ou não as Little Sisters, o que resulta em dois finais diferentes. As próprias armas só seguiam um esquema comum de evolução. Alguém pode então imaginar que nesses pontos a jogabilidade decaiu. Mas não é bem assim.


        Em algum momento, alguém deve ter percebido que a liberdade do jogador é tão real quanto o dinheiro de um jogo. E então resolveram fazer um jogo sobre isso. Jack, o personagem principal, nunca pode escolher seu próprio caminho. Ao contrário de Carlos Cuello, não era ele quem decidia alterar o próprio corpo. Na verdade, ainda bebê ele foi submetido a um experimento que o condicionou a obedecer qualquer ordem seguida por “Would you kindly?” (“Por gentileza?”) e durante praticamente todo o jogo é isso que ele faz, segue ordens cegamente. Assim como um jogador que, apesar das tentativas de encobrir isso, na realidade apenas segue as ordens passadas pelos designers dos games. É uma mensagem poderosa que a Irrational colocou em seu jogo.

        Nada se perde, tudo se transforma

        Depois de ver todas essas modificações, fica a dúvida: as ideias não aproveitadas simplesmente são jogadas fora? Não é bem assim que a coisa funciona, muitas vezes elas ficam guardadas para serem usadas em outro projeto.

        Há pouco tempo, foi lançado BioShock Infinite, terceiro capítulo da série. O jogo ainda guarda elementos dos seus antecessores. Os vigors, por exemplo, são os plasmids de 1912 (ano dos acontecimentos no game). Mas trouxe mudanças também. A ambientação agora é Columbia, uma cidade voadora com uma sociedade fechada, nacionalista e fanaticamente religiosa. Na história, o personagem principal, Booker DeWitt, é um ex-membro da agência nacional de detetives americana que foi demitido por conta de alcoolismo e vício em jogos de azar devido a problemas psicológicos. Ele recebeu a missão de ir até Columbia resgatar a jovem Elizabeth.


        Não é difícil encontrar na ficção obras nas quais os céus são retratados como oceanos. The Legend of Zelda: Skyward Sword e Skies of Arcadia são dois exemplos. E nesse caso, o que seria uma cidade voadora construída para proteger e vigiar um país, se não uma ilha? Uma ilha da salvação.

        Revisão: Vitor Tibério
        Capa: Vitor Nascimento

        Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
        Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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