Kazutaka Kodaka: desbravando a visão de mundo “psychopop” do criador de Danganronpa

Eternamente controverso entre fãs de jogos de mistério, o roteirista segue sendo um dos mais populares no gênero. Por quê?

em 13/09/2025

De uns tempos para cá, entre Battle Royale, Jogos Vorazes e Round 6, o gênero do jogo da morte — um grande elenco de personagens forçado a matar uns aos outros em um ambiente fechado — tem se tornado quase onipresente na cultura pop. No mundo dos videogames, o bambambã do formato, pelo qual a discussão sempre passa, é o diretor e roteirista japonês Kazutaka Kodaka, pai de uma certa série estrelando uma pelúcia psicopata e jovens superdotados. 

Falar do trabalho de Kodaka é, inevitavelmente, falar da reputação mista que o autor tem entre fãs de jogos de mistério em geral. Suas marcas artísticas envolvem humor de moralidade duvidosa, subversões extremas de clichês de anime, estéticas visuais berrantes e uma vontade de desafiar o jogador que, por vezes, pode até ser confundida com ódio à própria audiência. 

Mesmo os apreciadores dos trabalhos que assina são suscetíveis a uma relação complexa com estas, entre obsessão cega e duras críticas — a pergunta, então, é: o que faz tanta gente retornar a seus universos, tão hostis e espinhosos como são? Para entender, é necessário analisar o arco de sua carreira.

Primórdios e influências

Nascido e criado em Tóquio, Kodaka passou a infância deslocado de seus colegas da escola; em seu tempo livre, assistia a animes e jogava videogames, enquanto sonhava em ser popular. Na universidade, cursou Cinema, contudo, nunca chegou a seguir carreira — acabou, claro, se tornando roteirista de jogos, pois achava que teria mais liberdade criativa desta forma. 

Sua formação, porém, seguiu marcando sua trajetória artística: diretores ocidentais, especialmente os irmãos Coen e Quentin Tarantino, seu grande ídolo, nutriram sua afinidade pelo humor ácido e violência extrema. Até hoje, engajar com outras obras ainda é uma grande parte de seu processo criativo: ele diz à Archipel que, quando não consegue terminar o conceito de um jogo, vai atrás de animes e filmes. 

Algumas de suas inspirações, como David Lynch e o também roteirista de jogos Goichi “Suda51” Suda, o fascinam justamente por escreverem de maneira muito menos linear do que o que costuma fazer. Destes universos, bem como de sua paixão pela cultura punk, ele alquimizou uma estética que chama de “psychopop”: cruel e sangrenta, mas com charme visual o suficiente para não pesar o clima. 

Essa visão foi realizada relativamente cedo em sua carreira: em 2007, foi contratado pela Spike, que estava a poucos anos de se fundir com a Chunsoft. Também considerou a Atlus, lar de Shin Megami Tensei e seu spin-off colegial Persona, como local de trabalho, entretanto achou que a Spike se adequaria mais a seu perfil. 

Depois de um tempinho trabalhando nos jogos de luta de Dragon Ball Z (sério) e escrevendo para alguns mistérios de perfil pequeno, a oportunidade de apresentar a proposta para sua série mais famosa (e melhor representante de sua ética criativa) surgiu. 

Danganronpa: esperança, desespero e muito humor de anime

No ano de 2010, Kodaka, junto de seu futuro colaborador frequente Rui Komatsuzaki (artista que conheceu durante o desenvolvimento dos ditos jogos de Dragon Ball), concebeu o embrião da série que depois seria conhecida como Danganronpa, cujo nome vem do japonês “refutação com balas”. 

Chamada de “Distrust”, a demo contava com uma atmosfera muito mais opressiva do que o tal psychopop que atualmente marca a franquia: os designs de personagem eram mais sóbrios, os cenários puxavam mais para o terror e as mortes eram muito mais brutais. Outra grande diferença estava no escopo da gameplay — seria possível alterar os rumos da narrativa dependendo de quem o jogador escolhesse confiar. 

Esses dois aspectos seriam realizados muito mais tarde na carreira do roteirista, porém, aqui, tudo acabou se tornando o contrário. Seu famoso sangue rosa vibrante, pensado ainda no meio da fase Distrust, ditou o novo tom do universo, permitindo exageros e requintes de crueldade ainda sob uma certa leveza juvenil. Assim surgiu Danganronpa: Trigger Happy Havoc, uma visual novel sobre 15 adolescentes considerados os melhores no que fazem, feitos de refém pelo simpático e mortal ursinho Monokuma e forçados a matar uns aos outros. 

As regras são simples. A cada capítulo, um motivo novo para assassinato é apresentado. Pode ser um vídeo ameaçando a segurança das famílias dos jovens, um segredo particularmente vexatório ou apenas um saco de dinheiro: alguém sempre morde a isca e cria um novo cadáver. A missão dos sobreviventes é fazer as vezes de detetive e descobrir quem foi. Caso identificado(a), o(a) assassino(a) recebe uma execução pública, no entanto, se ninguém conseguir desvendar seu crime, todos os outros morrem.  

O ponto forte da série Danganronpa são seus personagens. Kodaka afirma que sempre tenta escrever como se todos fossem protagonistas, o que rende um elenco cheio de personalidades explosivas, a maioria inspirada em arquétipos comuns de anime — o representante de classe certinho, a patricinha de nariz empinado, o nerd que só fala em referências — e que se torna interessante pela subversão e desconstrução dos clichês (por exemplo, a menina simpática e doce pode, ao mesmo tempo, esconder um instinto de sobrevivência que a faria matar qualquer um). 

A temática pela qual os jogos mais são conhecidos, por sua vez, é “esperança versus desespero”. Ela se manifesta dos jeitos óbvios, por meio de pessoas comicamente malignas e adversários de persistência sobre-humana, mas também permeia a narrativa nas reações que esta busca obter dos jogadores. Um dos artifícios favoritos do roteirista é matar personagens que parecem importantes bem no começo, por exemplo, só para depois retornar a estes e revelar seu impacto vários assassinatos depois.

A franquia rendeu três títulos principais (Trigger Happy Havoc, Danganronpa 2: Goodbye Despair e Danganronpa V3: Killing Harmony), além de um spin-off de tiro em terceira pessoa focado na irmã do protagonista original Makoto Naegi, Komaru (Danganronpa Another Episode: Ultra Despair Girls), outro spin-off fanservice que mistura Mario Party e Dragon Quest (Danganronpa S: Ultimate Summer Camp), séries de light novels focadas em personagens individuais (Danganronpa Zero, Danganronpa Kirigiri e Danganronpa Togami), um remake estendido (Danganronpa 2x2) e um anime que continua a história do segundo jogo (Danganronpa 3: The End of Hope’s Peak High School; existe uma diferença entre o “3” e o “V3”, mas é spoiler explicar). Ufa!

Trabalho no Too Kyo Games

Em 2017, logo após o lançamento de Danganronpa V3 (por si só, um jogo controverso, cujo final espinhoso decretou definitivamente o fim da série principal), Kodaka, junto de Komatsuzaki, do melhor amigo Kotaro Uchikoshi e de seu colaborador frequente Masafumi Takada (também conhecido por seu trabalho com Suda51), deixou a Spike Chunsoft para fundar seu próprio estúdio, chamado Too Kyo Games. 

O nome é um trocadilho com a cidade de Tóquio e a palavra japonesa kyo, que quer dizer “maluco”: assim, os quatro fazem “jogos malucos demais”. Todos os títulos lançados pelo time têm o dedo de seu fundador, sem exceções — alguns mais, outros menos, entretanto sempre brincam com os conceitos dos quais Kodaka mais gosta.
 


Kazutaka Kodaka (à direita) nos bastidores de Death Come True, guiando o ator Kanata Hongo.

O mais emblemático nesse sentido é Death Come True, o primeiro de todos, que une suas ambições de diretor de cinema ao formato de game: este é seu único projeto em full-motion video (FMV). Lançado em 2020, a história segue Makoto Karaki (Kanata Hongo), um homem que acorda em um quarto de hotel completamente desmemoriado, junto de uma mulher amarrada e inconsciente, e descobre que é, na verdade, um assassino em série procurado pela polícia. 

Outros destaques no catálogo do estúdio incluem World’s End Club (2020), jogo em plataforma infantil sobre 12 crianças que descobrem que o mundo acabou; TRIBE NINE (2025), gacha game e RPG de ação em um mundo de “Beisebol Extremo”, cancelado abruptamente em maio, porém cuja história ainda será continuada de maneira não oficial; e Shuten Order (2025), que mistura cinco subgêneros/homenagens a títulos clássicos de visual novel, seguindo uma protagonista feminina que brinca com a própria performance de gênero e deve investigar o assassinato de sua antiga identidade, consumado por um de seus cinco asseclas mais próximos.

Para os verdadeiros viúvos de Danganronpa, a opção é Master Detective Archives: Rain Code, trazido ao mundo em 2023. Ambientado em uma cidade de chuva eterna controlada pela megacorporação Amaterasu, o título traz de volta as mecânicas de investigação já consagradas pelo filho mais famoso de Kodaka — além do humor sexual, presente na dinâmica entre o desesperado Yuma Kokohead e sua “serva” auto-designada, a deusa da morte Shinigami, que está mais para dominatrix. 

Akudama Drive e as veias políticas do cyberpunk

Não é só de jogos que o Too Kyo Games vive, apesar do nome. Em 2020, bem quando a estética cyberpunk vivia seu maior momento, o time, junto do estúdio de animação Pierrot (conhecido por Naruto), lançou sua própria visão do conceito: Akudama Drive, um anime de 12 episódios para o qual Kodaka concebeu a história, personagens e mundo.

Vale a pena tomar um momento para discutir a série não só pela singularidade de sua natureza, mas pelos temas políticos que apresenta, de forma muito mais clara do que em qualquer outra obra de seu criador. Akudama Drive se passa em uma versão distópica da região de Kansai, no Japão, que foi vítima de uma arma de destruição em massa lançada por Kanto, mas ainda assim trata seus antigos rivais de guerra como deuses (os paralelos históricos são fáceis de traçar). 

Os “Akudama” do título, por sua vez, são criminosos notórios, que recebem sentenças quilométricas por toda sorte de loucuras: assassinatos em massa, experimentos antiéticos, hackeamentos bilionários e por aí vai. Nossa personagem principal, a “Cidadã Comum”, é confundida com um desses depois de um mal-entendido e recebe o codinome de “Trapaceira”. A partir daí, ela vai parar no meio de uma missão para roubar uma carga misteriosa, junto de Akudama de verdade… e de um zé-ninguém da yakuza que é libertado por engano, o “Malandro”, com uma bela pena de 4 anos por chantagem. 

Ao longo da história, seguimos a Trapaceira indo de coitada inocente a alguém que honra o título forçado a ela — não por vontade própria, contudo. O Malandro, por sua vez, antes um bobo alegre escorado no melhor amigo, se vê traumatizado, cheirando cocaína e ajudando em crimes muito piores do que sequer sonhava cometer no passado. São duas pessoas tidas como podres, cuja única opção é seguir seu papel. 

Incidentalmente, no Japão real, quem um dia já fez parte do crime organizado quase nunca consegue se recuperar dessa marca: as Leis Anti-Yakuza se certificam de que ex-membros devam passar 5 anos sem conseguir abrir uma conta bancária ou alugar uma casa, entre outras coisas essenciais para se viver. Esse aspecto é adaptado em Akudama Drive quando a Trapaceira, agora marcada como criminosa, não consegue nem comprar um takoyaki com o equivalente a um Pix sem que todos os painéis luminosos ao seu redor anunciem sua presença e clamem por sua captura.

Não é novidade que Kodaka se utilize de meios chamativos (e clichês, à primeira vista) para passar uma mensagem política: Akudama Drive se vende como um anime despretensioso sobre um grupo de foras-da-lei antes de atacar com força total, assim como Danganronpa se faz de série tresloucada e boca-suja, diversão boba, enquanto esconde as próprias teses sobre talento e esperança como armas bem à vista. Isso tudo nos leva ao ponto mais alto da carreira do autor:

The Hundred Line -Last Defense Academy-: culminação temática e estética

Talvez a razão de ser do Too Kyo Games, pela maneira com a qual todos os envolvidos nesta obra falaram durante seu ciclo midiático, seja The Hundred Line -Last Defense Academy-. Depois de quase uma década preso em um ciclo de desenvolvimento que quase faliu o estúdio, o game finalmente “nasceu” em 2025 — e, como o título desta seção indica, faz valer o hype e a ideia central de “Desespero Extremo”, combinação dos tópicos favoritos dos diretores Kodaka e Uchikoshi.

A história segue Takumi Sumino, um rapaz normal que tem amigos normais e segue uma vida normal… até ser convocado para uma guerra contra alienígenas que buscam destruir a Terra. Separado da melhor amiga e crush de infância, ele adquire poderes especiais e vai parar na titular Last Defense Academy, junto de vários colegas excêntricos de diferentes disposições. 

Após um “prólogo” de cerca de 30 horas de jogo, a narrativa se divide em um flowchart que rende mais de 100 finais (ou seja, “hundred [time]line[s]”), partidos das decisões do protagonista (aqui retorna o conceito de “confiança” de Distrust). Divididos em 21 rotas, estes são de todos os tipos: mistério, romance, terror, drama político, slice of life, shounen clichê, comédia e até eroge. A intenção é homenagear todos os subgêneros mais importantes de visual novels.

O que mais impressiona em Hundred Line é a coerência das histórias variadas que conta. Nem todas são 100% boas, mas sempre existe algum elemento que valida a grande tese política por trás da construção de mundo e caracterização de seus personagens. Esta diz respeito, em linhas gerais, a uma dura crítica ao complexo industrial militar, bem como à maneira com a qual este dilui o valor da vida humana e normaliza a tragédia. 

É uma filosofia comum nas obras de Kodaka, que com frequência se vê brincando com vilões impossivelmente malignos e heróis resolutos na face da morte, agora colocada em termos mais realistas — e sob o prisma de um herói sem qualquer bússola moral. Takumi Sumino é indeciso, egoísta e quer sempre fazer a “coisa certa”, algo que nem sempre envolve o verdadeiro bem maior; em certas rotas, ele ativamente prefere a ilusão de ter tudo em seu devido lugar à cruel realidade, em detrimento do bem-estar de todos. Esse é o exato protagonista que Hundred Line merece.

Por que, afinal, gostamos tanto de Kodaka?

A pergunta acima, para mim, teve sua resposta definitiva quando entreguei minha análise de Hundred Line para o Blast (com 80 horas e menos de 25% do jogo completo, devido à sua natureza). Esse autor tão complicado, tão ofensivo e intrusivo de propósito, ainda segue capaz de angariar tantos admiradores e não ser lido como apenas alguém que busca choque barato porque, no cerne de sua escrita, mora uma preocupação genuína com os temas que retrata.

Para a produção desta retrospectiva, li o mangá Guren Five, roteirizado pelo autor em 2014; não é das melhores coisas que ele já fez — diria, inclusive, que é péssimo, pois a história se move rápido demais e nenhum dos personagens tem tempo de se estabelecer no coração do leitor —, o que não significa que não seja um ótimo exemplo desta ética. É uma narrativa sobretudo centrada no amor e respeito pelo gênero de mangá yankii (delinquente japonês), que busca tirar sua força da independência e determinação que essas obras representam.

Kazutaka Kodaka é uma pessoa com muito a dizer, e que não tem vergonha de chamar a atenção usando quaisquer meios necessários. Como fã, apesar de nem sempre concordar com tais métodos — a sexualização adolescente que ele emprega é sempre um pouco demais —, é inegável que funcionam; em sua melhor forma, amplificam o enredo ao redor e geram discussões produtivas. 

Revisão: Thomaz Farias

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Hiero de Lima
Jornalista formada pela PUC-SP e eterna apaixonada por videogames, especialmente aqueles japoneses de mistério. Sempre tem alguma redação gigante para escrever depois que zera um Yakuza.
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