Início da jornada: KID e a série Infinity
Nascido em Tóquio, em 17 de novembro de 1973, Uchikoshi quase foi engenheiro de gestão, entretanto, largou a faculdade para estudar produção de videogames em uma escola vocacional. Sua paixão por jogos narrativos surgiu durante o 9º ano do ensino fundamental, quando conheceu os livros “escolha sua própria aventura” do autor britânico Steve Jackson.
Sua carreira começou no extinto estúdio KID; seu primeiro crédito em um videogame apareceu não em uma visual novel esotérica, mas em Pepsiman, de 1999, o imortal jogo-meme do mascote bombado de refrigerantes. Alguns fãs, em tom de brincadeira, incluem o título no cânone do autor, porém, na verdade, ele foi responsável apenas por criar alguns modelos 3D para o cenário.
No mesmo ano, contudo, também foi capaz de fazer sua estreia como roteirista ao trabalhar em duas rotas da aventura romântica Memories Off, a primeira em uma série de VNs que só chegou a sair do Japão em 2024. Visto que sua contribuição a Memories Off (e à sequência, de 2004) não o permitiu muitas liberdades criativas, o “verdadeiro” início da carreira de Kotaro Uchikoshi é atribuído ao próximo passo: a trilogia Infinity, a qual teve início em 2000, com Never 7 - The End of Infinity.
Lançado oficialmente em inglês em março de 2025, Never 7 está inserido no mesmo modelo de aventura romântica (são cinco rotas para cinco garotas, com alguns extras), mas a paixão de Uchikoshi pelo sobrenatural já pode claramente ser vista. O enredo gira em torno de Makoto Ishihara, um rapaz que sonha com um cenário previsto para acontecer em 5 dias: uma menina de quem ele gosta muito morrerá com um sino na mão. A partir daí, as coisas degringolam cada vez mais.A continuação (nem tão direta) Ever 17 - The Out of Infinity (2002), por sua vez, é uma das VNs de ficção científica mais influentes no Japão, creditada por vários autores do país como o melhor trabalho do escritor até hoje; ele disse ao Noisy Pixel que a experiência de escrita partiu de uma certa inquietação que sentia desde a juventude. Dois protagonistas se veem trancados em um parque de diversões subaquático junto de cinco outras moças, e agora todos devem encontrar algum jeito de sair dali antes que tudo desabe. No caminho, toda sorte de mistérios sobre o passado de cada um e a corporação responsável pelo parque são expostos um a um.
A trilogia Infinity se encerra em 2004, com Remember 11 - The Age of Infinity (apesar de ter recebido o spin-off 12Riven - The Psi-Climinal of Integral em 2008; ambos ainda são exclusivos do Japão). Em oposição aos dois primeiros jogos, Remember 11 abandona o ângulo de romance e tem foco completo na parte esotérica e misteriosa: os protagonistas são Kokoro Fuyukawa e Satoru Yukidoh, uma envolvida em um acidente de avião e outro preso em um hospital psiquiátrico, que descobrem estar trocando de corpo durante certos intervalos. Por motivos desconhecidos, Uchikoshi preferiu assinar o título sob o pseudônimo Hagane Tsukishio.
Cena de tradução feita por fãs de Remember 11, fornecida pelo grupo Rokumei City.
Infinity estabelece as bases para todos os elementos pelos quais Uchikoshi é famoso: ficção especulativa, tecnologia futurista, sexualidade entre o sutil e o explícito, crimes passionais, família, trauma, brincadeiras com linhas temporais e, claro, plot twists de fazer o cérebro dar nó. Tudo isso seguirá sendo visto — e aprimorado — por todo o resto de sua carreira.
Zero Escape e a consolidação da fanbase internacional
Após algum tempo trabalhando junto da KID e como freelancer (inclusive ajudando na escrita de um jogo erótico, cuja identidade ainda é desconhecida), recebeu uma oferta de emprego da Chunsoft, que se fundiria à Spike em alguns anos; a empresa acreditava que ele poderia revolucionar o gênero visual novel. Para poder sustentar a esposa e filha, ele aceitou.
A proposta apresentada pelo roteirista se tornou Nine Hours, Nine Persons, Nine Doors (2009), ou 999, atualmente considerado um clássico cult do Nintendo DS e uma das VNs essenciais para fãs de mistério. Primeira entrada da série Zero Escape, 999 mistura suspense e terror a escape rooms; nove coitados presos dentro de uma réplica do navio-irmão do Titanic têm nove horas para escapar com vida, obedecendo às regras de um tal “Jogo Nonário” impostas por uma figura mascarada chamada Zero.
Apesar de render um fandom ocidental forte, sobretudo por ter sido muito bem localizado, não fez tanto sucesso no Japão. Sua sequência, Virtue’s Last Reward (2012), que apresenta o Jogo Nonário em um novo formato “dilema do prisioneiro” dentro de uma instalação de natureza misteriosa, fez um esforço maior para cativar os conterrâneos de Uchikoshi, incluindo um personagem-mascote nos moldes de Monokuma, da série Danganronpa; ainda assim, não deu muito certo, mas “VLR” foi mais um muito bem recebido por fãs internacionais. A atmosfera também se tornou menos pesada: uma pesquisa no Japão indicou que muitos não compraram 999 por conta de sua estética “assustadora”.
Como curiosidade, Virtue’s Last Reward foi inspirado em Banshee’s Last Cry (conhecido como Kamaitachi no Yoru no Japão). Em 2008, Uchikoshi trabalhou em uma versão deste título que era jogável por e-mail.
Os fracassos domésticos sucessivos de Zero Escape quase fizeram a série ser cancelada, porém a audiência do exterior, sobretudo dos Estados Unidos, realizou uma campanha estrondosa pelo terceiro jogo. Chegado finalmente em 2016, Zero Time Dilemma passou por uma reestruturação profunda durante o desenvolvimento, algo que fez com que muitas das coisas que Uchikoshi havia prometido incluir em uma continuação de Virtue’s Last Reward fossem cortadas. Como resultado, muitos fãs se ressentem do produto final até hoje, mas o consenso crítico o avaliou positivamente pelos bons escape rooms e retorno de personagens queridos.
Um dos motivos pelos quais Zero Escape é mais famoso no Ocidente do que no Oriente diz respeito às suas inspirações: em particular, 999 tem uma forte base na obra do escritor estadunidense Kurt Vonnegut. Os três jogos também constantemente citam teorias científicas relativamente mais conhecidas por aqui, como o gato de Schrödinger e o problema de Monty Hall, além de pseudociência, a exemplo do eneagrama de personalidades e do campo morfogenético.
Zero Escape foi a franquia que consagrou Uchikoshi internacionalmente como um escritor único, que, assim como já o fazia em Infinity, usa seus trabalhos para comunicar certos conceitos e ideias que o interessam, não importa o quão nichados — por conta disso, existe uma piada comum entre fãs que afirma que ele usa a Wikipédia para encontrar teorias malucas e incluí-las em suas histórias. A partir daqui, seus próximos passos foram seguidos com interesse por um pelotão de fãs devotados.
AI: The Somnium Files: entre drama policial e comédia besteirol
Em 2017, houve a apresentação do chamado “Project Psync” ao mundo; um ano depois, este foi revelado como AI: The Somnium Files, entrada original dentro do gênero mistério de assassinato. O agente especial Kaname Date é convocado a investigar a morte de Shoko Nadami, mãe de uma menina que é praticamente filha dele. Para tanto, ele tem acesso a um olho protético (“AI-Ball”) habitado pela IA Aiba, sua parceira de campo, e a uma máquina capaz de acessar os sonhos de testemunhas relevantes, por meio dos chamados Psyncs.
Lançado em 2019, o jogo se divide entre fases de investigação no modelo visual novel e na exploração de fases de Somnium, mundos criados pela máquina de Psync, a fim de conseguir mais pistas sobre o caso. A estrutura narrativa é inspirada por games de aventura ocidentais, como Life is Strange e Detroit: Become Human. Já a história segue todos os temas pelos quais Uchikoshi é conhecido: tudo se resume no título “AI”, que faz referência às IAs, à palavra japonesa ai (amor) e ao pronome em inglês I (eu).
Apesar de constantemente lidar com narrativas pesadas (talvez por causa disso), AI: The Somnium Files segue um tom muito mais leve. A franquia já é notória pelo humor sexual sem filtro, principalmente vindo de seu protagonista; também abundam trocadilhos e piadas recorrentes. Esses elementos se tornam cada vez mais centrais a cada novo título.
Sua sequência, AI: The Somnium Files - nirvanA Initiative (2022), traz a dupla de novos protagonistas Mizuki Date e Kuruto Ryuki, cada qual com sua própria AI-Ball, em uma investigação a respeito da morte do CEO Jin Furue, cujo cadáver foi encontrado em duas metades ao longo de seis anos. O curioso é que não há qualquer sinal de decomposição. A narrativa ao redor do caso se desenrola entre cultos crentes que o mundo é um “Matrix”, experimentos científicos profundamente antiéticos e, mais uma vez, os limites do amor em todas as suas formas.Em 2025, foi lançado um spin-off entre os dois primeiros jogos: No Sleep For Kaname Date - From AI: THE SOMNIUM FILES traz o titular Date de volta à cadeira de personagem principal, além de contar com o retorno dos escape rooms como vistos em Zero Escape. Desta vez, o agente pervertido favorito de todos deve resgatar a streamer Iris Sagan de uma aparente abdução por alienígenas. Como curiosidade, nirvanA Initiative já contava com uma fase bônus que recria o primeiro nível de 999, agora com Aiba em vez do protagonista original Junpei.
Somnium Files em geral é especialmente popular pela vasta gama de personagens que fazem parte da comunidade LGBTQ+, uma relativa raridade em VNs japonesas (no país, o casamento homoafetivo sequer é legalizado). A escrita ainda possui diversas marcas de humor LGBTfóbico — por exemplo, a atração que a personagem transgênero sente por Date é tida como indesejada —, mas não deixa de representar um grande passo dentro do nicho. Em 2022, Uchikoshi também defendeu pessoas não binárias com fervor no então Twitter, algo que igualmente atraiu a atenção de vários fãs de visual novels.
Séries originais em anime e surgimento do Too Kyo Games
Além das três grandes franquias pelas quais Uchikoshi é conhecido, existe também uma gama de outros trabalhos assinados por ele ao longo dos anos. Passemos agora pelas obras mais relevantes, a começar pelos dois animes com os quais se envolveu.
O primeiro é Punch Line (2015), posteriormente adaptado como mangá e jogo. A ideia é simples e segue o amor do autor, que roteirizou o anime, por comédia sexual: o protagonista Yuta Iridatsu morre e vira um fantasma, agora com a incumbência de proteger suas antigas colegas de quarto, mas, se ele vir a calcinha de uma delas duas vezes seguidas em pouco tempo, será o fim da humanidade. O título é uma brincadeira com “punchline” (conclusão de uma piada, em inglês) e “panchira” (ver a calcinha de uma menina, em japonês).
Em seguida, temos The Girl in Twilight (2018), início de uma franquia de vida curta; contudo, aqui, Uchikoshi apenas contribuiu com o conceito geral, sem se envolver nos rumos da história. Esta gira em torno do clube de rádio de uma escola de ensino médio, liderado pela alegre Asuka Tsuchimiya; um dia, as cinco integrantes encontram uma frequência que as permite viajar para um outro mundo. A partir daí, cada uma começa a despertar poderes de garota mágica ao entrar em dimensões diferentes e confrontar os próprios medos.
Ainda nesse período entre Zero Escape e AI: The Somnium Files, Uchikoshi deixou a Spike Chunsoft em 2017 junto do melhor amigo e criador da série Danganronpa, Kazutaka Kodaka. Na companhia de mais alguns colegas de profissão, os dois fundaram o próprio estúdio independente, o Too Kyo Games (o nome é um trocadilho com Tóquio, onde nasceram, e “kyo”, maluco em japonês, assim se referindo a “jogos malucos demais”).Dentro do Too Kyo Games, duas produções incluem Uchikoshi em um papel de diretor/roteirista principal, ambas desenvolvidas juntamente de Kodaka. O primeiro, lançado em 2020, é World’s End Club, uma aventura em plataforma 2D na qual doze crianças de 12 anos de idade (segundo Uchikoshi, o número foi escolhido em homenagem à idade de sua própria filha durante o desenvolvimento) descobrem que o mundo acabou enquanto um mascote misterioso as obrigava a jogar um “Jogo do Destino”. Este é o único trabalho do autor a ter uma versão oficial em português do Brasil.
O segundo, de 2025, é The Hundred Line -Last Defense Academy-, uma visual novel/RPG tático com mais de 100 finais que segue a perspectiva de adolescentes do ensino médio recrutados para lutar uma guerra pelo futuro da humanidade. As decisões do jogador, contudo, podem transformar a história em vários outros gêneros: romance, comédia, terror, drama político, shounen clichê e por aí vai. Uchikoshi teve duas tarefas: manter a consistência das várias narrativas e escrever as rotas de mistério e ficção científica. Como já é de praxe em suas obras, essas duas só podem ser desbloqueadas depois de boa parte do resto do enredo ter sido vista.
Um autor e fandom igualmente dedicados
Certa vez perguntei a Alex Flagg, produtor de localização na Spike Chunsoft, por um possível motivo pelo qual os fãs de Kotaro Uchikoshi são tão fervorosos. A resposta dele foi simples: “acho que muito disso se deve à paixão que o próprio Uchikoshi tem pelo que faz”. Da minha própria posição de fã, toda vez que jogo um de seus títulos, mesmo que acabe não gostando muito da história, sempre consigo sentir essa tal “paixão”, abstrata como é.
Durante o ciclo midiático de AI: The Somnium Files - nirvanA Initiative, Uchikoshi disse em entrevista à Dengeki Online que costuma se projetar nos próprios personagens, citando principalmente Gen Ishiyagane, o chef que se esconde do mundo, e Andes Komeji, o comediante e pai incapaz de se dar bem com a família. É essa disposição de colocar uma parte de si, mesmo que não seja algo positivo, que, acredito, dá a suas produções essa qualidade emocional tão forte e faz com que se conecte com tantas pessoas.Um conjunto de outros fatores já mencionados — brincadeiras com conceitos (pseudo)científicos, narrativas que desafiam o tempo e o espaço, apelo erótico, piadas ruins — também são marcas do trabalho de Uchikoshi, mas a humanidade em seu centro é o que faz tudo fazer sentido. Em seu comentário final no artbook de Hundred Line, ele se gaba de que esta provavelmente será a última vez em que uma narrativa de tanta magnitude em um jogo foi feita sem o uso de IA (apesar de, sim, escrever sobre IAs em uma de suas séries mais famosas). Uchikoshi se utiliza de discussões tecnológicas para revelar muito mais sobre seres humanos do que qualquer coisa, e é isso o que o torna um escritor notável.
Revisão: Thomaz Farias









