O motivo se dá devido à herança do último título, AI: The Somnium Files - nirvanA Initiative. “AINI”, como é conhecido, é talvez um dos jogos mais divisivos que conheço, o que combina bem com seu mistério cheio de cadáveres partidos ao meio: uma voltinha de 20 minutos em um fórum debatendo a série é suficiente para encontrar alguém que adora o jogo e alguém que o odeia do fundo da alma, normalmente pelos mesmos motivos.
Pessoalmente, estou em algum lugar no meio desses extremos (meu núcleo favorito de personagens foi maltratado em várias frentes por nirvanA Initiative, o que reflete metade da minha opinião sobre o jogo). Quando me aproximei de No Sleep For Kaname Date, tanto como crítica quanto como fã, foi com um medo profundo de que o time não tivesse aprendido nada com o feedback do público, que piorou ao me deparar com uma Iris Sagan adolescente, sexualizada e surtando por teorias da conspiração de gosto duvidoso.
Com o game nas mãos, contudo, posso dizer com confiança: qualquer fã da franquia, mesmo que se ressinta de suas direções mais recentes, pode ir sem medo. Apesar de nem todos os problemas anteriores terem sido solucionados, a Spike Chunsoft, sob supervisão do criador da série Kotaro Uchikoshi, entregou um spin-off recheado de surpresas, ótima escrita de personagens e um mistério de fazer querer anotar tudo no papel. Como diria o assassino Meio-Corpo, vamos por partes.
Meu policial não dorme enquanto eu não chegar
Tudo começa quando a streamer Iris Sagan, conhecida como A-set ou Tesa, é aparentemente sequestrada por alienígenas que procuram por humanos aptos a ajudar na concretização da Nova Ordem Mundial. Ela tem direito a uma ligação e escolhe seu amigo policial Kaname Date, que a ajuda a fugir do OVNI onde está com a ajuda da IA Aiba, sua parceira de campo.
Enquanto os dois tentam solucionar o mistério do que aconteceu com Iris, uma misteriosa cápsula aparece do nada em um armazém semi-abandonado e convida Date a realizar um “Psync” com ela (usar uma máquina para ver seus sonhos). O problema é que ninguém do público geral deveria saber o que é um Psync, pois estes só se realizam com uma tecnologia secreta da polícia de Tóquio. O que acontece aqui? Será que está tudo conectado?
Para resumir, a história já começa chutando a porta com os dois pés. Se a sinopse acima parece 100% fora da casinha, seja bem-vindo(a) ao universo de AI: The Somnium Files. No Sleep For Kaname Date, chamado de “algo como um AI 2.8” pelo diretor Kazuya Yamada em entrevista à Famitsu, se passa no período entre os dois primeiros jogos e prefere trazer personagens antigos de volta a apresentar novos, com algumas exceções. Dito isso, não é dos melhores pontos de partida para quem quiser começar com a série — priorize os dois anteriores.O carinho dado ao elenco já existente se reflete com grande clareza no próprio mistério, que está intrinsecamente ligado a vários arcos muito bem escritos. Se você queria que um certo ponto dos jogos antigos fosse melhor explorado pela história em vez de ser jogado para escanteio, existe uma chance muito grande de que este spin-off atenda seu pedido. Sem spoilers, mas um ponto específico do enredo inclui um arco que várias pessoas na comunidade de fãs que frequento queriam ter visto em nirvanA Initiative, o que mostra uma conexão profunda com o feedback do fandom.
Infelizmente, nem tudo aqui reflete essa filosofia. Alguns retornos não têm peso algum no resto da história — por exemplo, uma certa amiga de Iris só aparece no primeiro capítulo e depois some, um grande contraste com a enorme participação que ela teve no segundo jogo. Outros só aparecem para fazerem as mesmas piadas insossas, a maioria envolvendo humor sexual barato, e sumirem. Até a própria Iris, tida como nova protagonista, ainda segue sendo mais um artifício do enredo do que uma personagem (e, sendo franca, piorando a escrita de vários outros).
O pior caso é, assim como em nirvanA Initiative, o do excêntrico yakuza Moma Kumakura: quem gosta dele por qualquer motivo que não seja sua obsessão por uma estudante do ensino médio recebe um belo “vá se lascar” de Yamada e Uchikoshi. Até as melhores partes do personagem foram associadas de maneira retroativa à bendita piada, que não fica mais engraçada ou menos nojenta depois da quinquagésima vez. Pelo menos ele tem alguns bons momentos — por coincidência, são quando ele para de falar da menina.Em geral, apesar de insistir nos mesmos erros de sempre às vezes (que incluem a volta do controverso spoiler toggle, a opção de ligar ou desligar spoilers do primeiro jogo, em uma narrativa tão focada nos fãs já existentes que sequer precisa dele), No Sleep For Kaname Date acerta ao trabalhar com o que já tem e integrar as poucas novidades muito bem ao universo da franquia. Mas essa não é a maior diferença:
Esse Zero Escape 4 tá diferente…
A grande novidade do título é a mudança de gameplay. Temos um terceiro modo para combinar com os três novos personagens jogáveis que devem abrir seus terceiros olhos nessa terceira aventura da série Somnium Files (não seria um jogo de Kotaro Uchikoshi sem um número que se repete): juntamente das clássicas seções de investigação e dos três novos Somnia, temos também quatro escape rooms, cada um centrado em uma lenda urbana diferente.
Assim como o título desta parte da análise indica, aqui nos utilizamos bastante do legado da série Zero Escape, a filha mais velha de Uchikoshi: as clássicas frases “Seek a way out” (procure uma saída) e “You found it” (você achou), os efeitos sonoros, a música atmosférica e as piadinhas bestas (exceto no primeiro escape room, onde sempre parece que vai acontecer uma piada e ela nunca chega) estão todos presentes. Talvez soe um pouco derivativo para alguns, e talvez até como uma ofensa a quem tanto queria o quarto jogo da franquia e recebeu uma adolescente com roupa de coelhinho em troca, porém, sendo eu uma fã que gosta de “service”, não me incomodei com essas referências.Os desafios em si são excelentemente construídos e, na dificuldade padrão, não pesam demais. O gênero point and click é bastante suscetível a fazer o jogador ter de virar um ginasta mental nível Rebeca Andrade, como já discuti em outra análise, mas não é o caso em No Sleep For Kaname Date: cada quebra-cabeça respeita seu tempo e intelecto, apesar de às vezes se explicarem demais (muito disso se deve à dificuldade em localizar aizuchi, a prática na língua japonesa de repetir o que foi dito logo depois do fim da frase do interlocutor).
Também temos três Somnia para explorarmos como Aiba, tal como de costume; entretanto, desta vez, o foco é plenamente na história. Não há tanto desafio além de saber o que fazer e utilizar bem seu tempo para conseguir as recompensas extras, mas isso não significa que o jogo poderia ter ficado sem essa parte. Tentar explicar melhor é arriscar revelar a narrativa inteira; entenda-se que, como sempre, o emocional de quem está na outra cadeira de Psync dita grande parte do enredo.
Amarrando algumas pontas soltas
Por fim, gostaria de discutir alguns aspectos diversos do título, passando por pontos positivos e negativos. Vamos começar com as coisas boas.
Primeiramente, a dinâmica entre os protagonistas Date e Aiba segue primorosa. Após um tempo separados um do outro durante nirvanA Initiative, um período no qual Aiba ficou junto de Mizuki (uma excelente personagem, mas parecida demais com a IA para serem uma dupla de comédia que funcione), o grande detetive e seu olho protético voltam a brigar por qualquer coisinha e trazer sorrisos a todos do outro lado da tela. Isso é especialmente notável em um jogo que, conforme dito lá atrás, nem sempre trata bem a parte cômica e peca pelo excesso várias vezes (Deus do Céu, eu NUNCA MAIS quero ouvir falar em Atami).
Essa dita dinâmica é trazida à sua melhor forma pelo segundo ponto: a dublagem em inglês é uma coisa linda de se ver. Sempre joguei Somnium Files com o áudio dublado, apesar de preferir o Wataru Takagi interpretando o Moma, e nunca me decepcionei, mas em No Sleep For Kaname Date a qualidade realmente salta aos olhos… ou aos ouvidos. O maior expoente é Greg Chun como Date — dá para sentir o quanto o dublador gosta de viver esse personagem, porque todas as falas são ditas com 110% de energia e as cenas de comédia têm entonações hilárias.
Ainda falando da parte sonora, as poucas novas faixas compostas para o jogo, cortesia de Keisuke Ito (como sempre), são talvez algumas das melhores em toda a série. O destaque vai para os dois primeiros Somnia, embalados em um jazz delicioso que lembra o icônico PSYNCIN’ IN THE CURTaiN.Contudo, nem tudo são flores: o maior ponto negativo de No Sleep For Kaname Date é a localização para o inglês. Não é novidade que a peteca caia com frequência na série — por exemplo, metade dos itens do apêndice no primeiro jogo fazem referências a piadas que só existem na versão em japonês —, mas aqui é um verdadeiro caos. Encontrei vários trocadilhos que foram praticamente transliterados do original (como uma brincadeira com chizu, mapa, e chiizu, queijo) e não fazem sentido nenhum para quem não tem essa referência.
Além disso, certos termos dentro do texto, alguns já conhecidos da franquia, são traduzidos de forma inconsistente. Uma pequena lista dos termos que “Kumakura-gumi”, minha amada família yakuza boazinha, virou: “Kumakura gang” (usado em jogos anteriores), “Kumakura Family” (termo preferido por fãs, tradução mais comum de -gumi), “Kumakura family” (com letra minúscula) e “Kumakura group” (tradução mais literal, mas nunca antes usada). Às vezes é tudo no mesmo parágrafo. Ainda, porém, é possível que uma revisão aconteça antes do lançamento.
Quem não vai dormir são os fãs, de tanto pensar nesse jogo
No Sleep For Kaname Date - From AI: THE SOMNIUM FILES não conserta todos os erros que a franquia cometeu ao longo dos anos e segue veementemente insistindo em alguns, mas é um excelente passo para reconquistar os corações de quem se decepcionou com o último título. Vale a pena para qualquer fã de longa data da série: jogadores se depararão com várias surpresas agradáveis, embaladas em escape rooms divertidos e no clássico humor besteirol de Kotaro Uchikoshi.Prós
- Mistério estimulante e divertido de seguir;
- Elenco reduzido permite exploração melhor de personagens antigos;
- Escape rooms complexos sem serem punitivos demais;
- Dinâmica entre Date e Aiba segue divertida e afiada;
- Excelente performance vocal dos dubladores em inglês;
- Trilha sonora traz algumas das melhores faixas da série.
Contras
- Alguns personagens são pouco utilizados pela narrativa;
- Certos membros do elenco ainda sofrem por terem perdido sua caracterização para piadas sem graça e repetitivas;
- Alguns escape rooms se explicam além do necessário;
- A primeira hora tem um tom levemente discordante do resto;
- Localização inconsistente até dentro do próprio texto.
No Sleep For Kaname Date - From AI: THE SOMNIUM FILES - PC/Switch/Switch 2 - Nota: 8.0
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Thomaz Farias
Análise produzida com cópia digital cedida pela Spike Chunsoft











