Maria Antonieta foi a última rainha consorte da França antes da Revolução
Francesa, famosa não apenas por seu trágico fim na guilhotina, mas também por
sua vida de excessos, escândalos e pura estética. Retratada como frívola,
vaidosa e praticamente uma celebridade — mesmo pelos padrões midiáticos do
século XVIII, que se sustentavam basicamente na imprensa escrita e em arautos
nas ruas —, brinca-se que ela poderia ser considerada a primeira socialite.
Amada e odiada com igual intensidade, ela virou símbolo da elite decadente e
desconectada do povo. Agora, imagine se, em vez de ser engolida pela
revolução, ela resolvesse liderá-la — com espada em punho, salto no pé e os
holofotes todos voltados para ela. É mais ou menos essa a premissa de
The Great Villainess: Strategy of Lily, o novo RPG tático da Alliance
Arts.
A Duquesa Rebelde
Scarlet é uma aristocrata conhecida justamente por sua postura não
convencional e que está sendo acusada de assassinar o imperador. No meio do
caos que colocou todos os holofotes do reino sobre ela, a duquesa cruza
caminhos com Lily — e ambas acabam mortas em batalha. O fim, entretanto, foi
só o começo, uma vez que as duas acordam em uma espécie de limbo, o chamado
Dead End Theater, onde descobrem que ainda não podem morrer enquanto houver a
chance de reescrever seus destinos.
A morte, então, foi só o primeiro ato e, de volta ao plano terreno, Scarlet e
Lily fogem para o sul. Por lá, elas descobrem que a aristocrata é vista como
símbolo de resistência — uma espécie de heroína de novela revolucionária.
Lily, pragmática, logo entende o valor desse carisma político: com Scarlet
como bandeira, ela vê a oportunidade de acender sua própria tocha e liderar
uma nova revolta com o objetivo nada modesto de assumir o controle do reino.
Com uma pegada bastante escrachada, The Great Villainess tem um quê da série
Disgaea, um sentimento bem acentuado não só pela estética de animezão, mas também
pelo fato de se tratar de um RPG tático. Embora siga menos a vertente de
gigantes do gênero, como a própria série da Nippon Ichi Software ou até Fire
Emblem, assemelha-se mais à
Nobunaga’s Ambition, uma terceira IP japonesa e prima esquecida das outras duas.
Assim, em vez de dispor as unidades em um grid, elas se espalham pelo mapa
segundo caminhos mais ou menos lineares, com paradas onde os combates
acontecem — formato também utilizado por
Unicorn Overlord, aliás. Tais batalhas, por sua vez, funcionam como qualquer outro RPG
clássico, mas só duram três turnos. Entra aí o fator estratégico de fazer
valer cada ação, cujas execuções necessitam ou rendem um número determinado de
pontos de movimento, o que resulta em uma dinâmica sinérgica.
Por serem conflitos tão curtos, todos os combatentes têm poucas opções de
habilidades — normalmente duas (skill ativas e selecionáveis, no caso, já que há também algumas passivas que vêm com a evolução das unidades) às, além do ataque normal e da posição de defesa
—, o que define funções combativas muito bem delimitadas para cada personagem.
Como uma forma de complicar de leve as coisas, há uma dinâmica de
pedra-papel-tesoura que aprofunda um pouco mais as batalhas.
A revolução será televisionada! Em streaming!
O sistema de batalha em turnos se integra a uma estrutura de progressão
contínua, centrada em um mapa universal que representa a expansão da
revolução. Partindo do sul, cabe às forças de Scarlet e Lily avançarem e
enfrentarem os vários generais que encontram pelo caminho, deixando para
trás uma espécie de trilha ligada à base geral e que serve como um canal de
abastecimento. Esse rastro permite a movimentação livre das unidades e é
responsável por recuperar o HP delas entre os turnos.
O jogo é bastante didático nesse aspecto, uma vez que a própria protagonista
comenta, em mais de uma ocasião, de forma quase metalinguística, que pouco
importa a perda de território, desde que a linha de provisão até ela
permaneça firme.
Taticamente, cortar as linhas de suprimento inimigas é parte fundamental de
uma estratégia mais ampla, quando entra a mecânica do dirigível. No início
de cada turno, o jogador pode movimentar o zepelim em questão com o objetivo
de exibir uma entre várias transmissões disponíveis, cada uma com um efeito
distinto, como segurar o movimento dos oponentes, cortar seu abastecimento,
ampliar o alcance de movimento das unidades no mapa, entre outros.
Uma dessas transmissões, especificamente, é o chamado streaming de captura.
Quando ativo sobre as casas do mapa onde ocorre alguma batalha contra um dos
generais (os chefes do game), ele permite que esses inimigos sejam feitos
prisioneiros e, eventualmente, convertidos em aliados da causa de Scarlet —
sendo essa a principal forma de reforçar a linha de frente da força rebelde.
É dessa mecânica, inclusive, que se desenrolam as principais possibilidades
narrativas, uma vez que há dois finais principais distintos, além de outros
menores, de ordem secundária. Cada desfecho depende do grau de cooptação dos
generais: o jogador pode recrutar todos ou nenhum, avançando na campanha
apenas com Lily e Scarlet, que recebe um bônus de força a cada chefão
abatido.
Rebelião que não para
Com quase todas as mecânicas apresentadas logo no começo do jogo, o
principal defeito de The Great Villainess recai sobre sua perceptível falta
de evolução mecânica. O título se mostra simplista demais em vários aspectos
e, por mais que essa seja sua proposta, ele poderia arriscar um pouco mais
em termos de variedade. Falta diversidade no que diz respeito a mapas e
habilidades, além da mais completa ausência de classes ou itens.
Nesse aspecto, a filosofia de “fácil de aprender, difícil de dominar” se faz
bastante presente, especialmente na reta final. O número reduzido de golpes
especiais e de possibilidades de combinação entre as unidades (cada batalha
comporta, no máximo, cinco, dependendo da cada casa do grande tabuleiro que
representa o mapa) exige que o jogador seja criativo em suas ações e
movimentos. É preciso equilibrar a ousadia de avançar nos momentos certos
com a paciência de esperar no contra-ataque até que a poeira abaixe, sempre
correndo o risco de pisar em falso devido à ocasionalidade de algum erro.
Essa ausência de diversidade (em atributos, itens e classes), somada à falta
de recursos que facilitem o fortalecimento de personagens menos utilizados,
acaba exigindo algum grau de grind. Isso se torna ainda mais evidente
considerando que The Great Villainess se desenvolve em um único e extenso
mapa universal, no qual cada capítulo se inicia imediatamente após o
anterior, sem permitir reorganizar manualmente as unidades, que seguem no
estado exato em que terminaram.
Por conta desse fluxo contínuo, é sentida a ausência de alguma tela de
interlúdio que disponibilizasse algum recurso de divisão de XP (e evitasse o
problema do grind) ou que, ao menos, estimulasse o jogador a assistir
às conversas de afinidade entre as unidades.
A rigor, até uma tela puramente simbólica, permitindo o save manual, já
ajudaria, uma vez que traria um respiro no meio da progressão contínua e
ininterrupta da revolução. Ainda assim, mesmo o sistema de salvamento manual
(recurso que já existe) é pouco relevante, já que o sistema automático é
robusto, guardando o progresso no começo de cada novo ato e a cada nova
rodada de jogo. Ele até apaga os registros mais antigos, mas há tantos slots
disponíveis que é como se fossem praticamente ilimitados.
Aliás, ainda em relação aos interlúdios, nota-se como eles também poderiam
ajudar a cadenciar melhor o ritmo do jogo que, por vezes, parece
demasiadamente corrido e com muita informação sendo despejada de uma vez em
relação à história.
De certa forma, isso resulta em uma jogabilidade viciante, que mantém o
jogador engajado justamente por não oferecer digressões que quebrem sua
atenção. Paradoxalmente, The Great Villainess pode parecer um pouco
cansativo devido à simplicidade dos sistemas. Afinal, dois atos já são
suficientes para mostrar absolutamente todas as mecânicas que o título tem a
oferecer. Há pouca evolução além disso.
A reta final é a epítome dessas ideias contrastantes, mas que acabam
convivendo justamente pela sequência de reviravoltas narrativas ocorrendo em
simultâneo com uma escalada íngreme na curva de desafio. Nada, contudo, que
realmente pareça quebrar o equilíbrio do jogo, até porque basta voltarmos ao
grind ou abaixar a dificuldade no menu. Inclusive, a existência de uma
mecânica que envolve o número de seguidores (um dos atributos de Scarlet e
sua aliança rebelde, afinal, ela é uma verdadeira influencer) acaba
favorecendo essa ideia de repetição em prol da evolução das unidades.
O game conta com uma bem-vinda configuração de ajuste de velocidade, o que
até ajuda a acelerar as conversas, animações e ações do oponente, mas ela é
pouco versátil. A agilidade normal (1x) é um tanto lenta, enquanto a única
alternativa disponível, a quádrupla (4x), é rápida demais para acompanhar
enquanto se sustenta alguma noção do que está acontecendo em tela.
Inclusive, esse modo acelerado também exige demais do processamento nessa reta
final da campanha, quando começam surgir alguns problemas de desempenho, com
a taxa de quadros caindo em situações de muitas unidades em tela.
Quase um RPG em point and click
Apesar de alguns tropeços pontuais, o conjunto de The Great Villainess é bem
redondinho. A apresentação visual é um charme que só e faz um trabalho muito
agradável ao mesclar os sprites 2D com os ambientes 3D em estilo voxel. As
ilustrações também são belíssimas e casam muito bem com a parte gráfica em
si, resultando em uma identidade visual harmoniosa, carismática e agradável.
A própria ambientação é sublime, criando uma atmosfera europeia clássica,
mas, ainda assim, aplicando nela alguns elementos modernos com naturalidade,
como a própria ideia de transformar Lily em uma influencer e brincar com a
noção de que os simpatizantes da revolução também funcionam como seguidores
de rede social.
A única ressalva fica por conta dos menus que, embora funcionais, poderiam
ser um pouco mais convidativos ou didáticos. Um problema recorrente durante
a campanha foi a ausência dos nomes dos personagens abaixo dos minirretratos
em batalha. Trata-se de algo que facilitaria bastante na hora de garantir
que o assist seja lançado na unidade correta, principalmente quando se trata
de um aliado recém-adicionado cujo nome ainda não está decorado.
Outro pensamento que surgiu é que a animação de vários ataques especiais
poderia ser um pouquinho mais espalhafatosa, o que ajudaria ainda mais na
caracterização de cada unidade. Contudo, essa indagação perde relevância e
pode ser minimizada quando se considera o carisma natural que o jogo já
ostenta por si só.
Por fim, começar Strategy of Lily pela primeira vez pode causar um certo
choque devido ao aviso de que o game não é compatível com controle via
Steam. Isso pode ser um problema para algumas pessoas — e normalmente seria
para mim, que costumo preferir esse estilo como padrão. De fato, trata-se de
uma carência, mas a jogabilidade logo se mostrou tão funcional sem um
controlador que essa incompatibilidade nem foi sentida.
Aliás, nem o teclado eu precisei usar. Deu para terminar a campanha — que
durou por volta de umas vinte horas no objetivo de transformar todos os
generais em aliados — 100% no mouse.
Ou você morre vilã, ou vive o suficiente para se tornar a heroína
The Great Villainess: Strategy of Lily pode não ter o peso histórico
ou a complexidade dos clássicos do gênero, mas tem algo que poucos jogos
conseguem exibir com tanta naturalidade: presença. Tal como sua carismática
protagonista, o título não pede licença, chegando de salto alto e com muito
brilho nos olhos, destacando-se por sua solidez, jogabilidade viciante e
apresentação carismática. É uma estreia que, se não vai mandar a nobreza
para a guilhotina, pelo menos garante que ninguém se distraia enquanto
desfila em campo de batalha de uma maneira deliciosamente subversiva.
Prós
- Sistema de batalha enxuto e dinâmico, fácil de entender;
- Campanha viciante e com ritmo acelerado;
- Mecânicas táticas criativas, como a linha de suprimento e o uso estratégico do dirigível;
- Estilo visual charmoso que mescla bem o 2D e o voxel em 3D;
- Narrativa envolvente, bem escrita e divertida, com diálogos naturais, possibilidades de escolha e personagens interessantes;
- Boa integração entre história, mecânicas e progressão geral do game;
- Dois níveis bem distintos de dificuldade que podem agradar tanto os jogadores atrás de desafio quanto aqueles que só querem acompanhar uma boa história.
Contras
- Pouca variedade de mapas e habilidades no decorrer da campanha;
- Grau de personalização um pouco baixo, cuja ausência de classes ou itens é sentida devido à carência de diversidade do jogo em alguns momentos;
- Interface e menus poderiam ser um pouquinho mais acessíveis e didáticos em alguns aspectos;
- Desempenho instável na reta final;
- Falta de suporte a controles através do Steam.
The Great Villainess: Strategy of Lily — PC — Nota: 8.5
Revisão: Mariana Marçal
Análise produzida com cópia digital cedida pela Alliance Arts


















