Análise: The Alters se parece com muita coisa, mas ainda é único de um jeito próprio

Com narrativa ramificada e foco em relações interpessoais, o novo título do 11 bit studios propõe um novo olhar sobre o gênero de sobrevivência.



Durante a gamescom latam deste ano, eu tive a oportunidade de bater um papo com a 11 bit studios a respeito do The Alters. Durante a entrevista, quando eu pedi para que o game fosse descrito pelos entrevistados, a Gabriela Siemienkowicz, gerente de comunicação do estúdio, o detalhou como um jogo de ação de sobrevivência em que o personagem cria versões alternativas de si, mas ainda comentou que é um pouco difícil de explicar o conceito. Com o título em mãos, fico inclinado a concordar com ela nessa definição obtusa, mas, se for para tentar reduzir o dilema todo, eu ainda colocaria mais uma comparação própria e particular: trata-se de um intrigante simulador de fazendinha espacial.

É quase um Big Brother

The Alters foca nas histórias de Jan Dolski, o único remanescente de uma expedição a um planeta inóspito cujo pouso acabou dando errado e resultando em um desastre. A questão é que o uso do plural em histórias é proposital, uma vez que a única maneira que ele encontrou para tentar sobreviver naquele local hostil foi criar versões alternativas de si próprio com o uso do Rapidium, uma substância única daquele canto do universo e principal responsável pela expedição ter sido formada, para início de conversa.




O porém é que Jan não cria meros clones. Os Alters são entidades próprias com dons, personalidades e capacidades distintas e que consistem em existências determinadas por ramificações surgidas de escolhas que Jan não chegou a tomar na vida. São consequências da pergunta “e se?”, personificações palpáveis e sencientes de vários cenários que nunca se concretizaram de fato.

Parece doideira, mas tudo isso é bem explicadinho ao longo da campanha, que consiste em um jogo de sobrevivência no qual Jan precisa gerenciar a sua base enquanto tenta sobreviver até eventualmente voltar para casa. Essa sobrevivência, então, é dupla, sendo necessário lidar não apenas com a desolação hostil do planeta, mas também com todos os conflitos de personalidade que cada Alter irá proporcionar.



O simulador de fazendinha mais hardcore que você vai ver por aí

Na prática, a nível de gameplay, The Alters vai mesclar mecânicas de gerenciamento de recurso a elementos de simuladores sociais. Surge, então, a comparação ao simulador de fazendinha. Da mesma forma que um Stardew Valley ou Story of Seasons, o loop de jogabilidade vai consistir em um período determinado que corresponderá ao dia de Jan. Nele, o jogador poderá utilizar seu tempo de várias formas distintas, como se dedicar à extração de matéria-prima, ao cumprimento das metas principais de campanha ou interagindo com seus Alters, que, por sua vez, trarão missões secundárias cuja execução ou não impactará diretamente no humor deles.




Ou seja, embora seja necessário coletar recursos como minérios, Rapidium, e matéria orgânica que pode ser convertida em comida, o tempo é o principal aspecto a ser gerenciado em The Alters. Efetivamente, as fases em The Alters se dividem em atos narrativos distintos em que é preciso  mover a base para escapar da tempestade solar que parece sempre no encalço da tripulação. Cada uma dessas etapas vai representar um território novo que tem de  ser devidamente explorado, dominado e com um desafio principal superado a fim de seguir a viagem.

Daí, a graça de The Alters é como todos os sistemas menores parecem se conectar em grande escala. Tudo está interligado, sendo necessário lidar com problemas físicos — como a própria atmosfera e as anomalias gravitacionais e radioativas que dificultam a exploração — a problemas de engenharia social, que vão desde os gerentes da AllyCorp (a empresa que organizou a expedição que deixou o protagonista nessa situação) ao psicológico da recém-nascida tripulação. Tal aspecto, por si só, vai contar com conflitos particulares que podem ser solucionados, com anseios próprios a serem atendidos e com graus de humor que, mal administrados, podem resultar nos Alters comecem a questionar as decisões do Jan principal.




Há uma sinergia muito interessante na forma como o jogo consegue conectar todos os seus elementos ao longo de sua campanha. Todo o microgerenciamento parece ter efeito em ampla escala. Os materiais coletáveis podem ser revertidos em novas áreas para a base — cujas seções são configuráveis como um quebra-cabeça — e para a sobrevivência dos Alters, como decidir se a tripulação pode ou não se dar ao luxo de gastar mais recursos a fim de se alimentar com mais qualidade, o que pode elevar a moral de todos e evitar conflitos, por exemplo.

É claro que há diferenças crassas entre os simuladores de fazendinha, normalmente tido como cozy games (termo que pode ser traduzido para “jogos de aconchego”), nos quais o progresso se dá no ritmo do próprio jogador, que pode ser mais acelerado ou calmo, e o The Alters, cuja tempestade radioativa está sempre batendo à porta. Ainda assim, esse gerenciamento de tempo, em que é fundamental  lidar com vários aspectos menores ao longo de um período pré-determinado, acaba se mostrando um ponto em comum nessa comparação ao ponto de ditar todo o mote da campanha.



Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo

Mais uma característica inerente a esses jogos de fazendinha é que uma jogatina nunca será igual à outra. Há vários fatores aleatórios envolvidos ao mesmo tempo em que os jogadores podem simplesmente tomar decisões de relacionamento e organização agrária distintas de um save anterior. The Alters, por sua vez, conta com uma estrutura narrativa propícia para esse mesmo sentimento de uma forma intrínseca à sua história.

Como cada versão alternativa de Jan tem memórias, opiniões, personalidades e vontades próprias, é natural que existam formas distintas de interagir com cada uma. Mais do que isso, é possível seguir pela campanha ao criar certas versões de Jan e, em uma segunda empreitada, criar outras completamente distintas, o que acaba acarretando situações e diálogos também variados.




Ou seja, da mesma maneira que o personagem fez escolhas na vida e aprendemos que outras escolhas acarretam em formações de si diferentes, o próprio jogador precisa fazer essas mesmas escolhas que resultam em combinações narrativas próprias e bem diversificadas. Tudo em The Alters se ramifica e leva a possibilidades múltiplas.

E tudo isso deve  ser equilibrado com o outro aspecto da jogabilidade prática, a de sair da nave, descobrir as fontes de matéria-prima e entender o que impede o progresso da base. Quando acreditamos que finalmente dominamos essa dinâmica entre os sistemas, o próprio game aparece com uma nova variável que acaba derrubando o nosso castelo de cartas.




Dito isso, o fluxo constante de informação e de gerenciamento em The Alters pode se mostrar um pouco sufocante ou irritante alguns tipos de jogadores, especialmente os aqueles com alguma compulsão por deixar tudo em ordem antes de seguir em frente. Em tal aspecto, mesmo nas dificuldades mais baixas, o título vai levar o jogador ao limite e tentar educá-lo, por bem ou por mal, que nem tudo pode ser devidamente completado. Afinal, trata-se de uma expedição potencialmente fracassada em um planeta inóspito. Sacrifícios precisam ser feitos e prioridades precisam ser estabelecidas para alcançar o sucesso no saldo final dessa balança.

Outro aspecto potencialmente  bastante frustrante é a curva de dificuldade íngreme decorrente dos layouts dos mapas de cada ato. Isto é, para extrair os recursos do solo, será necessário instalar as estações de mineração e montar uma estrutura para que essa matéria-prima seja levada à base. Daí, de maneira pontual, pode ser uma sensação excruciante ter de descobrir como acessar o local de cada uma das minas, identificar onde está o bolsão onde as máquinas extratoras devem ser posicionadas para, enfim, atribuir a algum Alter o serviço sujo de operá-las enquanto segue com a exploração.




O microgerenciamento vai se estender, então, em vários aspectos, como a importância de manter um estoque de baterias para o traje, filtros de radiação para a base, cartuchos para os perfuradores de rocha e vai. O tempo todo algum dos Jans terá de ser colocado (normalmente o técnico, que tem habilidades específicas para acelerar o processo) na função de produzir algumas dessas bugigangas utilizadas na exaustiva exploração.

Na dificuldade padrão, eu quase não consegui completar o segundo e o terceiro ato antes da chegada da radiação justamente pelo incômodo que essa exploração às vezes se mostra, mesmo depois de estabelecer certos pontos de viagem rápida atrelados às estações de mineração.



O Inferno são os outros (eus)

A peça de teatro Entre Quatro Paredes, de Jean-Paul Sartre, ilustra uma situação em que três pessoas mortas são mandadas para um inferno que consiste em uma espécie de um quarto fechado onde tais indivíduos são obrigados a conviver constantemente sob os olhares um do outro. A moral da história é que o verdadeiro julgamento final de cada um de nós está nas nossas próprias ações, estas decorrentes das nossas atitudes em relação aos outros, bem como estes terceiros irão interpretá-las.

Tal situação culminou na célebre citação “o inferno são os outros” — e The Alters parece ter bebido diretamente dessa ideia ao mesclá-la com elementos de ficção científica visando  elevar o conceito ao limite: esse inferno são outros eus. Ao criar versões alternativas de Jan, o jogador não apenas multiplica a força de trabalho da base, mas introduz  consciências com histórias próprias, frustrações mal resolvidas e expectativas conflitantes.




Cada encarnação enxerga o mundo a partir de decisões que Jan deixou de tomar, e que agora se manifestam em forma de personalidades distintas, às vezes colaborativas, às vezes completamente conflitantes à liderança do Jan original. Conduzir esse grupo exige muito mais do que estratégia — exige empatia, tato e, em diversos momentos, um tipo de diplomacia emocional que se traduz em uma jornada esquisita de autoconhecimento na qual as alegorias se tornam literais.

Os elementos narrativos de The Alters certamente exigirão bastante da empatia e das habilidades de engenharia social do jogador. Lidar com várias versões de Jan o tempo todo certamente não é fácil — e o 11 Bit Studios fez um trabalho bem sólido em tornar todas as possibilidades de interação, bem como diálogos, bem críveis.




A cada nova variante criada, o jogador tem acesso a um novo fragmento de uma extensa linha do tempo que descreve em detalhes cada um dos momentos-chave que eventualmente culminam na existência de cada um dos Jans. Assim, embora os Alters desbloqueiem habilidades distintas que colaboram com a sobrevivência de toda a tripulação, com eles também vem toda a bagagem emocional que os moldou daquela forma, seja para o bem, seja para o mal.

Nesse sentido, The Alters é um teste constante de engenharia social. É necessário lidar com os olhares e julgamentos de você próprio antes que virem ações que podem colocar em risco todo o progresso que vinha sendo feito ao longo da campanha. Embora essa abordagem não seja exatamente nova, tanto a nível artístico, quanto a nível filosófico, a aplicação interativa da ideia foi executada de maneira ímpar.



Cinquenta tons de cinza

Graficamente, The Alters não faz nada de especial ou que não tenha sido executado antes na indústria. Entretanto, o verdadeiro mérito do games está na direção artística e como ela é usada para construir toda a atmosfera do game. Uma vez que o jogador para de se preocupar tanto com o extrativismo do cotidiano e começa a prestar atenção nos seus arredores, ele vai encontrar uma solidão quase poética em um ambiente inóspito estranhamente contemplativo.




A superfície grisalha do planeta com certeza gera certo estranhamento, mas é estranhamente confortável quando não se está sendo perseguido pelas nuvens de radiação. Além disso, os locais com matéria-prima assumem certas tonalidades e aparências distintas que fazem com que a exploração pareça valer a pena pelos próprios lugares que acabamos por descobrir durante essa empreitada pela sobrevivência.

Junto do pacote, é bacana como o 11 bit studios se preocupou em trazer alguma diversidade pontual ao espalhar certos colecionáveis pelos territórios, como filmes que podem ser recolhidos e reproduzidos para melhorar o humor da tripulação e plenamente assistíveis pelo jogador como curiosos curta-metragens que conversam com a temática do game como um todo.



Plantando decisões e colhendo consequências

Depois de horas investidas em The Alters, fica nítido o quão complicado é descrever e, por consequência, analisar um game com tantas facetas e possibilidades como esse. Por isso que o tempo todo surge a necessidade de compará-lo com outras obras ou estilos, seja pelas referências trazidas pelo próprio time de desenvolvimento, seja quando nós mesmos fazemos essas assimilações de acordo com o que conhecemos, a partir das nossas vivências — tal como os próprios Alters são criados a partir da análise de memória do Jan original e começam a desmembrá-la a fim de criar várias visões distintas acerca de um mesmo aspecto.

A proposta de mesclar gerenciamento estratégico com drama existencial e ficção científica resulta um jogo que vai exigir tanto as habilidades técnicas quanto sociais do jogador. E, novamente, a minha percepção sobre ser uma subversão esquisita de um simulador de fazendinha se faz presente. Só que, ao invés de plantar nabo, ordenhar vacas e tentar cortejar alguma das solteironas (ou solteirões) da vila, temos que minerar um planeta inóspito, manter uma base móvel funcional e evitar que versões alternativas de si mesmo matem uns aos outros. Enfim, The Alters pode ser tão acolhedor quanto irritante — mas também é único à sua forma.

Prós

  • Variedade robusta de sistemas e mecânicas que parecem naturalmente interligados sob o mote do game;
  • Alto fator replay devido às possibilidades de cada campanha;
  • Interessante demanda conjunta tanto do raciocínio tático quanto do tato social do jogador;
  • Proposta complexa cuja exposição didática a torna fácil de entender e aproveitar

Contras

  • Exploração potencialmente frustrante devido ao layout dos estágios, especialmente na primeira jogatina
  • Curva de dificuldade íngreme e que pode afastar um público mais casual mesmo nas dificuldades mais baixas
  • O microgerenciamento pode ser por vezes exaustivo
 The Alters — PC/PS5/XSX — Nota: 7.5
 Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Thomaz Farias
Análise produzida com cópia digital cedida pela 11 bit studios
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João Pedro Boaventura
É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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