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Análise: Twofold (PC): laços de afeto em um mundo efêmero

Em meio aos conflitos de dois clubes, Olive terá que escolher um lado e aos poucos mergulhar na dor de suas potenciais parceiras.

Em 2020, a parceria entre a Salty Salty Studios e o Studio Élan levou à publicação da visual novel First Snow. Porém, a obra era uma introdução ao mundo que viria depois no grande projeto do estúdio, Twofold, que está agora disponível no PC. A nova obra expande a ambientação sob a ótica de um novo personagem, apresentando uma tensa situação de conflito entre amigas de longa data.

Clubes em conflito

Twofold conta a história de Olive Penn, um estudante não-binário que está passando por uma situação complexa: seu rendimento na faculdade está tão baixo que há um sério risco de jubilamento. Para evitar essa situação, Olive terá que adicionar pelo menos uma matéria fora da sua zona de conforto.

De um lado, temos uma classe de escrita criativa; do outro, uma opção relacionada às artes plásticas. Ambas as matérias são bem distantes de Olive, que tende a desconsiderar sua capacidade inventiva e só quer acabar a faculdade por um forte senso de responsabilidade para com sua mãe.
Enquanto tenta encontrar um jeito de lidar com a situação, Olive conhece duas garotas que lhe prometem ajuda. O problema é que cada uma delas faz parte de um dos clubes e elas estão em pé de guerra. No meio do fogo cruzado entre o clube de arte e o de literatura, Olive terá que escolher uma delas como parceira para o próximo semestre.

Curiosamente, a situação é bem mais complicada do que pode parecer pela descrição. Na verdade, mesmo para quem não jogou First Snow, é fácil notar que Caprice (a menina artista) e Millie (a escritora) são amigas muito íntimas e a inimizade entre elas é recente. Conforme avançamos na história do lado de uma delas, temos a oportunidade de entender as origens do problema e Olive acaba desenvolvendo um romance com a garota selecionada.

Uma história sobre afetos

O que chama a atenção em especial em Twofold é o desenvolvimento sensível de seus personagens. Mais do que peças no tabuleiro da narrativa, temos dramas bastante humanos e convincentes. Nesse sentido, as escolhas que podemos fazer na história são justamente portas para vermos mais a fundo esses indivíduos.

Em particular, destaco o belo trabalho com a psiquê dos personagens principais, a começar por Olive, um personagem que costuma usar bastante sarcasmo em suas falas, mas que possui uma autocrítica muito pesada em seu interior devido a seu forte senso de responsabilidade.
Curiosamente, embora demonstre várias inseguranças e fragilidades, o fato de Olive ser um indivíduo não-binário não é uma delas. De forma geral, a obra não aborda nem o processo de descoberta nem toda a questão de se apresentar para pessoas que ainda não lhe conhecem. Porém, apesar de ser pouco crível, é bastante agradável ver o tópico ser apresentado de forma totalmente natural.

Já Caprice é uma garota cheia de energia e que consegue conquistar as pessoas com seu sorriso. Cheia de caprichos, ela é o tipo de personagem que mobiliza todos ao seu redor em prol do que quer. Porém, ela também guarda algumas inseguranças que vêm à tona ao longo da história.
Millie é uma jovem esforçada que ama o tópico de escrita. Ela tem uma relação complicada com os membros do seu clube, mas quer estimular a criatividade deles com exercícios. A sua personalidade é geralmente bem gentil e pacífica, mas há um nítido esforço nas suas atitudes, evidenciando que seus sorrisos não costumam ser sinceros.

Se tentarmos simplificar a narrativa toda em torno de um tema, é fácil dizer que ela gira ao redor dos laços de afetos que as pessoas formam ao longo da vida. Nisto, incluímos amizades, vínculos familiares e até o romance de Olive com as garotas.
Há um trabalho bem genuíno de desenvolvimento dos personagens que demonstra com clareza o impacto desses laços na vida deles. Por exemplo, na rota da Caprice, Olive se torna uma pessoa muito mais otimista e radiante ao longo do tempo.

Porém, em vez de simplesmente focar nisso de forma mais ingênua, Twofold tem um contexto bem específico que adiciona peso aos eventos: uma discussão sobre a efemeridade da nossa existência enquanto seres humanos. Lidar com as idas e vindas da vida é complicado, levando a perdas, situações injustas e uma desoladora tendência ao esquecimento. Com isso, a trama acaba se tornando mais pesada, especialmente na rota da Millie e em algumas das cenas das histórias adicionais, chamadas “Perfect Circle”.

A beleza do cotidiano

Assim como First Snow, Twofold tem um estilo artístico bastante peculiar. Os sprites dos personagens são como recortes de papéis usados em stop motion, com nítidos contornos brancos. A expressividade deles em seus rostos e na disposição corporal é palpável, com pequenas animações que destacam quem está falando e também reforçam a transição entre as poses.

De forma geral, pode-se dizer que o jogo se esforça para trazer uma direção de simplicidade para um cotidiano com o qual é fácil se sentir imerso e traçar paralelos com a vida real. É para reforçar esse aspecto geral de empatia com a beleza do mundano que temos a escolha artística dos recortes de papel e ao mesmo tempo as músicas profundamente confortáveis e singelas compostas por James J.

A qualidade gráfica é bastante consistente, com cenas especiais ilustradas de uma forma diferente, mas que mantém todos os personagens bem reconhecíveis. Em vez dos recortes de papel, essas imagens tiram as fronteiras entre eles e os ambientes e reforçam os traçados, com resultados bem diferentes, mas todos de alta qualidade.
Apesar disso, gostaria de destacar que o pai de Millie acaba destoando um pouco do resto do elenco. De acordo com a história, ele deveria ter um porte mais avantajado (mesmo sendo apenas um pouco maior que Caprice), mas isso não transparece em sua arte. Pelo contrário, as garotas acabam sendo mais largas de forma geral para enfatizar os seus traços, o que faz com que as proporções dele acabem parecendo estranhas junto dos outros personagens.

Também encontrei um bug visual na cena Workspace na rota da Millie. Quando Olive vai se sentar em uma mesa, o canto esquerdo da tela fica todo escuro de forma não-intencional, provavelmente por um pequeno erro de programação no posicionamento da imagem de fundo. Imagino que isso deve ser corrigido futuramente em uma atualização.
Após terminar a história pelo menos uma vez, desbloqueamos vários extras. A galeria inclui não apenas as ilustrações e a trilha sonora (com direito a músicas de First Snow), mas também um sistema de seleção de cenas para que o jogador reveja os eventos da história da rota comum e das histórias dos lados de Caprice e Millie.

Por fim, gostaria de destacar que “End of a Chapter”, o epílogo em vídeo após concluirmos Perfect Circle, não inclui legendas. Considerando que o resto do jogo todo possui texto, é uma pena que justamente o final emocionante da obra tenha ficado sem esse elemento, o que pode ser um empecilho especialmente para pessoas com deficiência auditiva.

O desabrochar de uma bela rosa

Twofold
é uma visual novel profundamente humana e comovente sobre os prazeres e dores das relações interpessoais em nossa breve passagem pela vida. Trata-se de uma bela forma de relembrar a sutil beleza daquilo que nos é essencial e invisível aos olhos.

Prós

  • Uma história bem conduzida sobre afetos, perdas e o peso da efemeridade da vida;
  • O estilo artístico suave e a trilha sonora confortável reforçam o contexto de cotidiano mundano da obra;
  • Bela representação naturalizadora de protagonista não-binário;
  • Galeria rica em conteúdo com seleção de cenas, galeria e jukebox.

Contras

  • O vídeo de epílogo não conta com legendas;
  • O pai de Millie acaba destoando do resto dos personagens e de sua descrição como alguém de porte mais avantajado;
  • Uma das cenas na Bellhouse tem um bug visual.
Twofold — PC — Nota: 9.0
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital cedida pelo Studio Élan

é formado em Comunicação Social pela UFMG e costumava trabalhar numa equipe de desenvolvimento de jogos. Obcecado por jogos japoneses, é raro que ele não tenha em mãos um videogame portátil, sua principal paixão desde a infância.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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