Jogamos

Análise: o remake Story of Seasons: A Wonderful Life (Multi) nos lembra que a passagem do tempo é implacável

Após perder espaço para simuladores mais robustos, a clássica série de fazendinha enfim sai do ostracismo ao revisitar um de seus títulos mais únicos.



A série hoje conhecida como Story of Seasons passou por alguns trancos e barrancos nos últimos anos. Inicialmente chamada de Harvest Moon, a marca, que era lançada no Ocidente pela Natsume, teve que passar por uma mudança de identidade quando a Marvelous, sua produtora original japonesa, decidiu assumir a responsabilidade por sua publicação nesta parte do mundo por meio de sua subsidiária, a XSEED Games.

Além disso, é notável também a dificuldade que a série teve em acompanhar a evolução das principais tendências em design de jogos em voga no mercado, uma vez que ela acabou perdendo espaço principalmente para Stardew Valley, um simulador de fazendinha muito mais expansivo do que qualquer título que Harvest Moon ou Story of Seasons já tenha produzido anteriormente.

Tendo isso em vista, uma solução para lidar com a forte concorrência foi apostar no elemento da nostalgia ao investir na produção de remakes de algumas de suas iterações consagradas, especialmente com o objetivo de reconquistar seu público-alvo nas plataformas da Nintendo. Story of Seasons: Friends of Mineral Town (Multi) foi o primeiro desses remakes. Após uma recepção morna com o inédito Story of Seasons: Pioneers of Olive Town (Multi), Story of Seasons: A Wonderful Life (Multi) surge como uma nova oportunidade de revisitar outro clássico do passado — que, por sua vez, é um dos mais distintos e ousados da história da franquia.



Uma questão de tempo

O início não é nem um pouco diferente do que já estamos acostumados para o estilo: o personagem principal herda uma fazenda e, movido pelas memórias de infância, decide se mudar para lá e fazê-la prosperar mais uma vez. O objetivo principal do jogo é administrar e cultivar a fazenda, cuidar dos animais e interagir com os moradores da cidade.

A característica que teoricamente diferencia A Wonderful Life de outros similares é o sistema de passagem do tempo. Enquanto o título segue o tradicional ciclo de estações, com eventos e atividades diferentes disponíveis, ele também apresenta um sistema de envelhecimento, em que o personagem principal envelhece gradualmente ao longo do tempo, dividido em capítulos. Essa progressão única acrescenta uma camada adicional de profundidade à experiência de jogo.




Cada capítulo corresponde a uma fase específica da vida do personagem, da solteirice de um jovem adulto à velhice, acompanhado de entes queridos. Como sugere o próprio nome do jogo, o objetivo central é viver uma vida maravilhosa, e o título em si serve como uma metáfora da passagem do tempo. Por meio dessa abordagem, o game busca transmitir uma experiência significativa e reflexiva sobre as diferentes etapas da vida.

Isso significa que não apenas o personagem principal, mas também outros NPCs, passam por mudanças, envelhecem e partem para outra com a progressão do jogo como um todo. No entanto, em meio a tudo isso, as atividades do dia a dia, como cuidar das plantações e dos animais, enquanto se relaciona com os moradores da vila e busca fazer sua fazenda prosperar, permanecem como os elementos básicos da jogabilidade de Harvest Moon: A Wonderful Life. Embora tenha passado por algumas mudanças para se adaptar à nova estrutura por capítulos, ainda é o querido e clássico simulador de fazenda que conhecemos, algo que também se estende ao remake.



Com a idade, procedimentos estéticos às vezes são úteis para a autoestima

A primeira impressão de qualquer jogo é visual, e Story of Seasons: A Wonderful Life chama a atenção pela forma como se diferencia do original em termos de atmosfera. Enquanto o tom do original de 2003 era mais sombrio e até melancólico, a nova edição retrata um Forgotten Valley mais leve e colorido. Além disso, é notável que toda a fazenda e o vilarejo estão disponíveis para exploração sem a necessidade de serem separados por diferentes mapas e, consequentemente, sem telas de carregamento.

É perceptível que a identidade visual de A Wonderful Life está mais refinada em comparação aos seus antecessores diretos, incluindo o remake de Friends of Mineral Town e Pioneers of Olive Town. Nesse aspecto, o estilo gráfico se assemelha mais ao que a série Rune Factory alcançou em seu jogo mais recente. No entanto, chegar perto não significa que chegou lá: ainda há alguns ajustes a serem feitos no intuito de acertar a relação de escala do mundo explorável pelo personagem.




Além da mudança visual, há algumas adições mecânicas interessantes que visam trazer mais variedade à jogabilidade. Um exemplo disso é a inclusão da criação e personalização do personagem principal, que não pré-determina um gênero a ser escolhido. Isso significa que todos os habitantes elegíveis para romances estão disponíveis para o cortejo sem qualquer tipo de amarra do sistema de jogo.

Desse modo, ao contrário do original, que tinha apenas três possíveis pretendentes femininas (ou três pretendentes masculinos em Another Wonderful Life, na versão com protagonista feminina), agora todos os seis pretendentes estão disponíveis simultaneamente, além de dois adicionais exclusivos do remake, como Lumina e Gordy. 

É notável o investimento feito pela equipe de desenvolvimento no aspecto narrativo como um todo. Afinal, grande parte da nossa imersão em Forgotten Valley ocorre por meio das relações interpessoais, e a inclusão de mais de 50 novos eventos de interação é facilmente percebida, mesmo por aqueles que jogaram o original. Esses novos eventos adicionam camadas de profundidade aos personagens e enriquecem a experiência de jogo, proporcionando aos jogadores mais oportunidades de se envolverem com a história e os habitantes do vale.



Memento mori

Story of Seasons: A Wonderful Life é menos desafiador e mais acessível em comparação à sua contraparte original. Neste jogo, o sistema de passagem de tempo é menos rigoroso e requer menos atenção por parte do jogador, pois os animais parecem imunes ao envelhecimento e a doenças, desde que sejam minimamente cuidados.

Essa abordagem pode ser vista como um problema, uma vez que um dos principais temas do jogo é o entendimento de que nada é eterno. A ideia por trás dessa alegoria é proporcionar uma espécie de oportunidade de aprendizado para jogadores mais jovens que, talvez, ainda não tenham vivenciado essa experiência na vida real. Ao suavizar o sistema de passagem de tempo e a possibilidade de envelhecimento e doenças dos animais, perde-se parte desse impacto temático e simbólico, limitando a oportunidade de reflexão sobre a transitoriedade da vida e as consequências de nossas ações.




Em outras palavras, uma simples mudança na mecânica com o objetivo de tornar a experiência mais fácil para novos jogadores acaba tendo o efeito contrário ao enfraquecer a mensagem original. Concordo que a cutscene dos animais doentes morrendo na frente do personagem, presente na versão original, é um tanto brutal e até desnecessária, no entanto, isso não implica que o sistema como um todo, tão característico desse tipo de RPG-simulador, precise ser removido.

Ao eliminar essa responsabilidade do jogador, também se retira as consequências de suas ações. Isso acaba afetando diretamente a temática central do original, que envolve a valorização da vida em sua natureza transitória e a aceitação da passagem do tempo até a morte inevitável. Infelizmente, esses elementos essenciais parecem se perder na produção do remake, resultando em uma experiência que não consegue justificar sua própria existência sem a mesma essência e alma do original de 2003.




Em contrapartida, a modernização de certos sistemas mais antiquados é uma mudança muito positiva. Um exemplo disso são as tarefas da fazenda que, com os upgrades, otimizam demais o tempo do nosso dia a dia bucólico. O mesmo acontece com outros aspectos do cotidiano, como a mecânica de fome, em que o indicador leva mais tempo para se esvaziar, e cozinhar, que se tornou mais fácil no remake. Além disso, o painel de estatísticas foi adicionado, facilitando bastante o acompanhamento de nosso próprio progresso. 

A inclusão do Bulletin Board, que já estava presente em Pioneers of Olive Town, foi uma adição acertada. Trata-se de um mural em que os habitantes de Forgotten Valley fazem solicitações de diversos itens, sejam eles de produção complexa ou não. Caso aceitemos a tarefa, nosso dever é entregá-los dentro do prazo estabelecido. Essa mecânica cria micro-objetivos para nos preocuparmos enquanto avançamos em direção ao fim de cada capítulo, deixando o jogador engajado.




No entanto, é crucial destacar que a progressão geral da campanha é lenta. Mesmo aprimorando vários sistemas a fim de torná-los mais ágeis e práticos, o desenvolvimento geral da história acaba sendo, por vezes, entediante. A Wonderful Life não é um título cunhado para que o jogador se sinta constantemente ocupado a ponto querer que um dia dentro do jogo tenha mais do que 24 horas, embora ele faça com que queiramos isso na própria vida real para, assim, ganharmos mais tempo de jogatina.

Por fim, como um fã, uma das minhas maiores preocupações em relação a esse remake durante o período de pré-lançamento era se eles incluiriam um modo sandbox para aqueles que não desejam se preocupar tanto com a passagem de tempo na estrutura dos capítulos, permitindo com que simplesmente desfrutemos do jogo de forma livre. Essa ideia vem porque Harvest Moon DS também tinha o Forgotten Valley (que na época se chamava Forget-Me-Not Valley) e seguia essa estrutura mais tradicional para a série.

Por sorte, ele está disponível! Embora precise ser desbloqueado depois de umas boas horas de campanha, o recurso está lá como um apêndice do modo história para quem quiser simplesmente curtir e passar um tempo na própria fazendinha sem compromisso.



(Mais uma) vida maravilhosa! 

Story of Seasons: A Wonderful Life se mostrou um acerto da Marvelous tanto a nível técnico (ao menos na edição testada do PC) quanto conceitual. A progressão por capítulos do original, que já era muito à frente de seu tempo quando foi lançado no começo dos anos 2000, até hoje segue um diferencial bacana que destaca o produto em relação aos outros simuladores de fazenda mais robustos. Apesar de uma ou outra decisão questionável que faz com que o conceito do original perca um pouco de sua força, o remake ainda é uma revitalização sólida o suficiente e finalmente digna do nome que carrega.

Prós

  • Revitalização competente da maior parte dos sistemas mais arcaicos;
  • Inclusões competentes no que diz respeito ao aspecto narrativo da campanha;
  • Tecnicamente muito bem otimizado (ao menos no PC);
  • Novos arranjos da trilha clássica trazem um sentimento de aconchego.

Contras

  • Animais que não adoecem ou envelhecem enfraquecem o mote do jogo;
  • Progressão perceptivelmente lenta, o que pode afastar quem está atrás de um simulador mais atarefado;
  • Embora visualmente agradável, ainda poderia estar mais próximo ao que foi feito em Rune Factory 5.
Story of Seasons: A Wonderful Life — PC/PS5/XSX/Switch — Nota: 7.5
Versão utilizada para análise: PC

Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela XSEED Games


É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


Disqus
Facebook
Google