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Análise: Fantasian (Mobile) é um JRPG obrigatório tanto para novatos quanto para os fãs da era de PS1

O mais novo jogo de Sakaguchi tem um dos mais belos audiovisuais em JRPG e um sistema de batalha único, acessível, elegante e com desafios criativos.


Desenvolvido e publicado pela Mistwalker (estúdio indie criado pelo pai da série Final Fantasy, Hironobu Sakaguchi), Fantasian é um JRPG de estilo clássico com um enredo de fantasia, tendo uma ambientação medieval misturada com fantasia científica. O jogo foi desenvolvido em duas partes sob a direção de Takuto Nakamura. Como um exclusivo do serviço Apple Arcade, o título teve sua primeira parte lançada em abril de 2021; a segunda, em agosto de 2022.

Uma fantasia carismática em estilo clássico com alguns mistérios engajantes

O eixo central do enredo e a primeira parte da trama foram escritos por Hironobu Sakaguchi (também produtor do jogo); a segunda parte foi criada  por Atsuhiro Tomioka e Masaru Hatano. Com mais de 50 horas de jogo, toda a história se passa de forma linear, sem qualquer ramificação, e com algumas poucas escolhas dadas ao jogador que possuem  impacto praticamente nulo no trajeto da jornada.

O jogador segue um jovem protagonista chamado Leo, que se encontra amnésico após acordar em um universo alternativo chamado Machine Realm. Nos momentos iniciais, o personagem descobre que utilizou um dispositivo móvel para ser teletransportado para aquele mundo. Inicialmente ele está acompanhado de dois simpáticos robôs (Prickle e Clicker) e se encontra em Traumatech Factory, uma fábrica na qual são montados robôs que o consideram um invasor.

Utilizando o mesmo dispositivo que o levou até lá, Leo deixa seus companheiros para trás e é teletransportado para o Human Realm em uma pequena cidade em uma região desértica, Frontier Town of En. A partir de então o protagonista seguirá uma jornada para recuperar suas memórias e descobrir qual foi o seu propósito nessa viagem interdimensional.

Enquanto isso, contando também com as falas  do narrador, o jogador vai descobrindo aos poucos o que se passa nos mundos em que o protagonista transita. Ainda no início da trama, descobrimos  que em algum momento ocorreu um fenômeno chamado Mecheteria.

Eventualmente abriu-se um buraco no céu, a partir do qual se espalhou uma infestação mecânica que se alimenta de energia vital. O efeito desses seres mecânicos gerou uma catástrofe natural espalhada  pelo planeta, que os humanos acreditam ter sido fruto do ato de um “Malevolent God”.

Logo se percebe que essa infestação é um grave risco para a humanidade. O protagonista vê-se incumbido de ajudar os habitantes das cidades ao mesmo tempo em que tenta entender o Mecheteria. Em sua jornada, ele contará com a ajuda de outros personagens que encontra pelo caminho e que se aliam a ele por razões diversas, mas que saem e entram no grupo dependendo das circunstâncias.

Além dos já mencionados robôs, que recebem inteligência e emoções graças a uma modificação que Leo faz em seus sistemas, também temos vários aliados humanos. A primeira que se junta a ele é Kina, uma órfã alegre e excêntrica da cidade de En que também está em busca de descobrir sua origem.

Mais à frente temos Cheryl, uma princesa herdeira do “Rainhado” de Vibra (Queendom of Vibra). Entre outros estão  o  capitão de um cruzador, Zinikr, fundamental para viajar para regiões isoladas, um outro jovem órfão, Ez, que se encontra também nos arredores de Vibra, Tan, um ex-espião do Império Falcion, e Valrika, uma cientista que vem de um mundo já consumido pelo caos.

A narrativa não tem voice acting. As falas lembram um pouco a experiência de leitura em quadrinhos; elas usam balões de diálogo com uma textura de papel como no clássico Vagrant Story, mas com um formato arredondado, além de um carismático som sintético durante o ato de fala.

Trata-se de uma história longa e diversa, na qual as coisas vão fazendo sentido aos poucos, mas sem serem muito complicadas. O texto é moderadamente econômico em diálogos, tendo  um toque infanto-juvenil de conto de fadas, que é geralmente leve e fácil de acompanhar mesmo havendo alguns temas sensíveis de fundo, assemelhando-se ao estilo de títulos de Final Fantasy escritos por Sakaguchi (como o V e o IX).

Fantasian é definitivamente algo que será apreciado pelos fãs dos jogos anteriores de Sakaguchi. Várias de suas escolhas de design principalmente remetem a Final Fantasy IX. Por outro lado, o enredo traz consigo clichês bobos — como um bem-humorado grupo de chefes, reincidente ao longo da jornada — e não possui tanta profundidade ou originalidade comparado  a tantas fantasias que conhecemos do gênero.

Os personagens também poderiam ser melhor desenvolvidos, tanto em personalidade quanto em potencial para explorar aspectos do mundo, o que é feito só esporadicamente. Ainda assim, alguns deles são carismáticos, passam por momentos dramáticos e podemos facilmente nos conectar aos seus comportamentos e emoções, como se pode notar desde a estadia da já mencionada primeira cidade do jogo.

Uma gameplay ao mesmo tempo tradicional e única com ótimas lutas contra chefes

O level design de Fantasian é bastante simples e tradicional em JRPG. Não há exploração em mundo aberto. Às vezes, é possível escolher para onde se dirigir no mapa-múndi em áreas que podem ser cidades com NPCs ou regiões com inimigos. Algumas vezes esses adversários aparecem via encontro visual, por meio de armadilha ou alarme, mas quase sempre surgem via encontro aleatório.

Felizmente, o jogo conta com um sistema bastante interessante e útil de “acúmulo de encontros aleatórios”, o Dimengeon System. Esse sistema permite que o jogador leve os inimigos para o “Dimengeon”, os deixando lá para enfrentá-los mais tarde. Porém, essa “dimensão paralela" possui uma capacidade máxima de guardar inimigos. Excedido seu limite, os encontros aleatórios iniciam batalhas instantâneas.

O Dimengeon mostra-se um sistema coerente com o enredo, criativo e muito eficaz em  lidar com o velho problema dos encontros aleatórios de quebra de imersão durante a exploração. Vale salientar que esse é um recurso que deve ser usado com cautela, já que  mais tarde pode ser difícil de enfrentar muitos inimigos ao mesmo tempo. Contudo, há também aprimoramentos disponíveis que facilitam as batalhas no Dimengeon, como aumento do poder de ataque e até a possibilidade de “roubar turnos” do inimigo.

Falando em turnos, sim, o combate não acontece em tempo real e alterna turnos entre personagens aliados e inimigos conforme seus atributos. Salvo quando há algum efeito especial vigente, funciona da seguinte maneira: você escolhe as ações de seu personagem e então passa a vez para o próximo indicado na timeline no extremo inferior direito da tela. Seu grupo costuma ter três personagens, mas o grupo adversário pode ser muito mais numeroso, chegando por volta de até 10 unidades. A razão dessa desproporção se deve a uma peculiaridade no design de batalha desse jogo.

Os sistemas de batalha de Fantasian foram dirigidos por Masahito Inoue, que elaborou algo único que é ao mesmo tempo complexo o suficiente para dar ao jogo uma camada de desafio tático e também minimalista o suficiente para ser acessível, fácil de aprender e confortável para utilizar via toque de tela. O que há de mais brilhante no design de batalha de Fantasian está no sistema de formação do grupo inimigo.

Um sistema de formação (Formation System) nada mais é que uma forma de organizar unidades em diferentes linhas, como linha de frente, de trás e intermediária. Esse conceito é usado de diferentes formas em alguns JRPGs, como nos vários títulos de Final Fantasy e SaGa. Já em Fantasian, somente os inimigos possuem formação. Os personagens no grupo do jogador ficam apenas ao lado um do outro em uma frente única.

Há várias consequências desse sistema, e uma das mais importantes é o bloqueio. Se um inimigo está na frente de outro dentro de uma formação, ele pode proteger  outro que esteja atrás dele caso esteja em defesa no seu turno. Nesse caso, um ataque perfurante que deveria atingir ambos atingirá apenas o inimigo que está em defesa na frente.

Entretanto, nem sempre é preciso quebrar um bloqueio na força bruta. É possível atacar um grupo de inimigos de diferentes formas. Dependendo de quem esteja em seu time você pode usar magias em área, habilidades que ricocheteiam entre os inimigos ou mesmo um bumerangue que atinge  os oponentes da linha de trás sem ter que passar pela de frente.

Esse sistema é muito interessante e funciona especialmente no iPad, com tela maior e uma caneta para estabelecer com praticidade e precisão a trajetória de seus ataques. No mais, também é possível usar itens consumíveis e habilidades diversas. Existem efeitos especiais (como envenenamento e atordoamento) e fraquezas. Por exemplo: fraqueza de gelo quando um inimigo for do elemento fogo.

O design de batalha de Fantasian é ao mesmo tempo simples e brilhante, mas não só isso. Ele também é mais desafiador do que parece durante a Parte II do jogo. Essas mecânicas brilham particularmente nas lutas contra chefes, já que você precisa achar suas fraquezas elementais e vulnerabilidades táticas. Por exemplo: atacá-lo por trás, em sua cauda, ou eliminar seus minions sem atacá-lo também. Cada boss battle é um caso a ser estudado.

Por fim, temos a customização. Aqui não há nada de muito especial. Cada personagem tem  uma progressão automática de suas habilidades e atributos conforme seu nível e possui apenas um slot para arma, um para vestimenta e um para um acessório com efeito especial. De cidade em cidade é possível comprar equipamentos progressivamente melhores, além de encontrá-los em baús durante sua aventura.

Uma direção de arte elegante e única com uma trilha sonora altamente rica, variada e inventiva

Ao lado das lutas contra chefes, outro ponto alto de Fantasian está em seu audiovisual, a começar por sua cenografia de dioramas. Sob a direção de arte de Jun Ikeda, todos os cenários do jogo são baseados em mais de uma centena de maquetes bastante detalhadas que podem ser exploradas com diferentes ângulos de câmera fixa, tal qual os clássicos Final Fantasy de PlayStation. Também conta com uma direção de som mais simples.

Essa estratégia de design de exploração sofre do mesmo problema dos clássicos JRPGs com gráficos pré-renderizados: há alguns momentos em que o jogo não é tão intuitivo para saber onde há algum objeto para interagir ou caminho certo a seguir. Por outro lado, passear por esses cenários dá uma sensação única de aventura em um mundo  miniatura, além de as texturas serem maravilhosamente realistas; às vezes é como se aquele mundinho estivesse ao alcance das mãos do jogador.

No entanto, os personagens do jogo, que são desenhados por Takatoshi Goto, destoam um pouco daquele estilo da cenografia. Seus traços seguem padrões de anime um tanto genéricos e simplistas,  tendo contornos e colorações que contrastam com o estilo realista da arte de fundo. Todavia, são personagens de proporção reduzida e delicada que combinam com a escala em miniatura, e Goto deu a eles um bom figurino.

Em paralelo a  essa experiência de JRPG em miniatura, boa parte da história é contada por um narrador com ilustrações de fundo. O game conta com belas artes conceituais de Manabu Kusunoki (conhecido por seu trabalho em The Last Story e na série Panzer Dragoon). Sua arte  às vezes contém traços de esboço, sem muitas cores quando se trata de memórias e relatos dos personagens; outras vezes há um aspecto mais vivo de pintura quando a função é ilustrar algum conceito da lore de Fantasian.

Por fim, temos uma trilha sonora original (OST) rica e variada em número de faixas, tons maiores e menores em diferentes estilos musicais. A OST foi composta integralmente por Nobuo Uematsu, principal compositor da série Final Fantasy. Como ele próprio declarou, este é possivelmente seu último trabalho de composição original completa para um jogo.

Em minha opinião, como alguém fascinado pelas composições de Uematsu em dezenas de jogos, talvez a OST de Fantasian seja o seu melhor trabalho. Como esperado, a trilha possui algumas de suas conhecidas influências de música erudita com instrumentos clássicos (como piano) e ocasionalmente um ritmo de rock com acordes graves de guitarra.

Mas há também características sem precedentes em sua obra prévia. O que mais se destaca nessa OST é uma profícua composição de estilo barroco e técnicas modernas de improviso, com dissonâncias e diferentes sintetizadores que combinam com momentos de tensão e com a fantasia medieval-tecnológica do game.

Convém também observar o uso de alguns instrumentos étnicos e destacar sua  sensibilidade de música orquestral, sempre melódica e com um aproveitamento instrumental de cordas, sopro e xilofone que é variado e elegante. Por fim, há três canções nas vozes de Yasuo Sasai e Yuria Miyazono e algumas peças de coro experimentais, às vezes com melodias simultâneas (polifonia), como na música “God Realm”. Confira abaixo a playlist do game.

Um título obrigatório para fãs de JRPG e também uma das melhores entradas para novatos

Apesar de a narrativa de Fantasian não ter tanta profundidade como poderia e sua gameplay não oferecer grande complexidade em exploração e customização, o jogo possui sistemas únicos, criativos e desafiadoras batalhas contra chefes, além de um mundo lindo com mistérios engajantes e uma das melhores trilhas sonoras que já vi em videogames. Dada a qualidade e a acessibilidade desse título, ele é facilmente recomendável tanto para os  fãs de clássicos de JRPG como para  novatos no gênero, estando muito bem adequado para plataformas móveis.

Prós

  • Um mundo com uma bela direção de arte em cenários de diorama, criando  uma experiência única de JRPG com ambientação em miniatura;
  • Alguns conceitos e mistérios engajantes além de  alguns personagens carismáticos;
  • Design de interface elegante e prático para telas sensíveis ao toque;
  • Sistemas de combate criativos, fáceis de aprender e bem aproveitados em lutas contra chefes;
  • Level design acessível e com boa progressão de dificuldade;
  • Uma trilha sonora extremamente rica, diversa, com peças sempre muito bem compostas, várias belas melodias e algumas peças ousadas e experimentais.

Contras

  • A narrativa poderia ter mais profundidade em sua trama e desenvolvimento maior de seus personagens;
  • O level design e o design narrativo são bastante lineares e simples;
  • Há uma baixa flexibilidade e complexidade na customização dos personagens e na configuração do grupo;
  • Estilo de design de personagem um tanto genérico;
  • A combinação da câmera fixa e cenografia de diorama eventualmente gera um pouco de confusão em saber onde é possível interagir no cenário.
Fantasian — Mobile (Apple Arcade) — Nota: 9.0
Revisão: Juliana Piombo dos Santos
Análise produzida via o serviço de assinatura Apple Arcade

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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