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Análise: Immortality (PC) é um brilhante encontro entre o cinema de arte e a interatividade dos games

O mais novo trabalho de Sam Barlow eleva a outro patamar a produção e o roteiro de filmes interativos.


Desenvolvido por Sam Barlow (de Her Story e Telling Lies) e publicado pela Half Mermaid Productions, Immortality é uma trilogia interativa de filmes live-action com elementos de puzzle e mecânica de point-and-click. Junto de uma boa dose de mistério que aborda assassinato e desaparecimento, a obra procura abordar os conceitos de inspiração artística, abuso sexual e atuação, além de subverter algumas convenções narrativas do cinema.

Uma impactante narrativa sobre cinema, abuso sexual e inspiração artística

Com roteiros de Sam Barlow, Barry Gifford, Amelia Gray e Allan Scott, Immortality traz uma trilogia de filmes incompletos e nunca publicados cujas partes encontram-se fragmentadas e embaralhadas em um programa de computador, incluindo gravações de cortes e bastidores. O que esses três filmes têm em comum é o elenco, sobretudo a atriz francesa protagonista Marissa Marcel (interpretada por Manon Gage).

Logo no menu do jogo temos à nossa disposição uma página que resume a história da atriz. Inicialmente uma modelo fotográfica, ela foi contratada pelo diretor Arthur Fischer (interpretado por John Earl Robinson) após tê-la visto em um comercial de sabonetes. Marissa Marcel estreou como Matilda em seu filme Ambrósio, que foi gravado em 1968, mas nunca foi lançado.


Passados dois anos, o diretor de fotografia de Ambrósio, John Durick (interpretado por Hans Christopher), trouxe a atriz para seu filme Minsky, que acabou não sendo finalizado. Foi só 20 anos depois, em 1999, que Marissa retornou à cena, quando Durick voltou a contratá-la; dessa vez para Um Par Para Tudo. Entretanto, as gravações desse filme foram interrompidas pela morte do diretor.

Mais uma vez a atriz desapareceu do radar. Passados mais 20 anos, em 2020, foi descoberto um depósito secreto com as gravações dos três filmes, as quais foram compiladas e digitalizadas no programa que o jogador tem acesso. Seu objetivo será restaurar os arquivos e procurar pistas sobre a misteriosa carreira de Marissa.

As ambientações dos três filmes são bastante distintas. O filme mais antigo, de 1968, é uma adaptação do romance The Monk, de 1700, com um enredo que se passa em algum momento durante a Inquisição. Enquanto isso, o filme incompleto de 1970 é um drama policial; já o filme de 1999, de terror. Em todos esses há erotismo e até atos sexuais em cena e/ou nos bastidores, o que satiriza a cultura de abuso sexual no cinema.


Eu senti falta do conteúdo dos roteiros desses filmes ser melhor desenvolvido e explorado para a proposta do game, mas felizmente o enredo não se limita ao que está dentro deles. Na verdade, o mais interessante está por trás deles. E quando digo “por trás” não me refiro apenas aos bastidores, mas também às cenas escondidas em algumas das gravações, o que podemos chamar de “subverso” das cenas. No subverso de algumas filmagens encontram-se atuações de dois personagens chamados O Ser (The One) e O Outro Ser (The Other One), respectivamente interpretados por Charlotta Mohlin e Timothy Lee Depries.

Diferente das cenas do “verso” das filmagens, cujo conteúdo é direcionado ao espectador do filme em seu tempo ou aos demais envolvidos na produção, as cenas do subverso são direcionadas ao jogador, com quebra da quarta parede e geralmente em forma de monólogo. O roteiro do subverso é intrinsecamente metanarrativo, no sentido de que fala sobre os roteiros dos três filmes, e isso é fundamental para se compreender o que aconteceu com Marissa Marcel.


Mas ambos os tipos de roteiro (do verso e do subverso das filmagens) não tratam apenas de si mesmos e da carreira de Marissa, mas também sobre a natureza do próprio cinema, da atuação e da inspiração artística. O modo de abordar esses assuntos é essencialmente alegórico, com grande profundidade no diálogo entre ficção e realidade. A premissa ficcional envolve algo semelhante ao mito das musas.

Na mitologia grega, há divindades menores chamadas “musas” e associadas a diferentes modalidades artísticas. Elas são capazes de possuir os humanos, inspirando-os em seus trabalhos artísticos e imortalizando-os em suas obras. Exemplos incluem Calíope, a musa da poesia épica, e Melpomene, a musa das tragédias. Essa ideia é desenvolvida em Immortality com um tom erótico, trágico e assustador, sempre de uma forma íntima com o jogador, tornando-o cúmplice e parte do conceito narrativo.


Ao lado do enredo intrigante, também vemos ótimas atuações de Manon Gage e Hans Christopher, que interpretam papéis em filmes e tempos diferentes com grande naturalidade, inclusive em ocasiões eróticas. Eu achei especialmente interessante as nuances de seus comportamentos em cena e nos bastidores.

Outro destaque está na atuação de Charlotta Mohlin. Na pele da principal personagem do subverso, ela traz uma interpretação intimidadora e austera diante do jogador. É brilhante como essa construção de personagem é usada no final para criar uma cena paradoxalmente sentimental e fria.

Um puzzle altamente interativo e flexível, mesmo que mecanicamente simples

Sob a direção de Sam Barlow, Immortality traz elementos interativos para sua cinematografia, alguns dos quais já estavam presentes em sua obra de 2015, Her Story, muito elogiada e premiada por inovações em design narrativo. Contudo, aqui a interatividade é bastante simples, se limitando a acelerar ou retroceder as gravações e a clicar em objetos da cena para o jogador ser levado a uma outra filmagem com algo análogo.

A mecânica de retroceder ou de acelerar é útil especialmente para encontrar as cenas escondidas por trás das filmagens. Caso tenha algo no subverso em algum trecho da gravação, você ouvirá um som homogêneo e grave que pode ser mais ou menos intenso, conforme a proximidade do ponto-chave da gravação. Esse som também tem espacialidade. Você pode ouvi-lo mais à direita ou mais à esquerda, e assim você saberá se precisa retroceder ou avançar para achar o ponto. Ao achá-lo, acelere o vídeo de trás para frente e, voilà, você está no subverso.


Não são todas as gravações que possuem conexão com o subverso. Na verdade, é a minoria delas que guarda cenas secretas. Entretanto, todas elas se conectam com outras gravações, ou seja, há objetos análogos ou atores em comum. Assim, caso você clique em algo na tela, como uma fotografia, uma flor, um rosto ou um quadro, é direcionado para outra gravação que pode ou não ser do mesmo filme.

Há no total 202 gravações. Felizmente elas podem ser ordenadas automaticamente por filme, o que ajuda a compreender o fluxo da narrativa. Assim como em Her Story, não é preciso encontrar todas as cenas para completar o jogo, basta descobrir todas aquelas que forem necessárias para você solucionar o mistério. Nesse caso, o jogo parte do pressuposto de que você foi capaz de conectar o conteúdo daquelas gravações, e então verá a cena final.


Após cerca de cinco horas de jogo, você verá os créditos. Caso queira completar 100% do que a história tem a oferecer, poderá continuar jogando, o que deve render pelo menos mais umas 10 horas de jogo. Aviso que pode ficar um pouco cansativo desbloquear todas as gravações. Além disso, os controles das mecânicas, por mais básicos que sejam, não são muito intuitivos, especialmente com teclado e mouse.

No mais, recomendo ficar bem atento aos objetos interativos de cada gravação e tomar cuidado para não se perder. Navegar entre essas cenas de forma aleatória pode ficar um pouco entediante, principalmente se você não estiver entendendo a cronologia. Por outro lado, é um jogo que guarda muito suspense, mistério e passagens intrigantes, então a curiosidade do jogador tende a ser bem recompensada.

Apesar de simples, o que eu achei mais curioso, em termos de gameplay, é que esse dinamismo interativo torna possível assistir atentamente três filmes ao mesmo tempo e compreendê-los de forma não linear, o que eu não imaginava ser possível. Por incrível que pareça, funciona. Espero que isso inspire outros projetos futuros com filmes completos e pensados em conjunto.

Uma produção cinematográfica muito acima da média para seu gênero

Um filme de arthouse, ou “cinema de arte” (como também chamado), não costuma seguir muitas convenções do cinema de massa ou dos clichês de Hollywood. Em vez de reproduzir os padrões da indústria (às vezes até em contraposição a eles), diretores que seguem essa linha costumam demonstrar bastante originalidade e/ou ousadia em seus trabalhos. David Lynch é um deles; uma das influências para o trabalho de Sam Barlow. Outras de suas inspirações vêm da literatura, como Mark Z. Danielewski e Paul Auster.

Contudo, o caso de um filme de arte interativo é ainda mais complicado em termos de orçamento, pois não se trata de uma mídia convencional com o intuito de alcançar o público amante de cinema, e os gamers ainda não estão muito familiarizados com esse gênero que vive na fronteira entre o cinema e os videogames. Nesse contexto, mesmo não sendo um filme tão caro, com transições e cenários modestos, é impressionante o que Barlow consegue fazer com o que tem em mãos; certamente é seu trabalho mais ambicioso.


Além das já comentadas atuações, algo que se destaca é a fotografia, sob a direção de Douglas Potts. Para as filmagens antigas, por exemplo, é usado um efeito que simula bem as películas de filmes coloridos dos anos 60 e 70, o que contrasta com o estilo de fotografia mais nítido usado para Um Par Para Tudo (1999). Além desses efeitos, também há uma boa variação de filtros, o que resulta em colorações diferentes. Além do fator estético dessas escolhas, elas também contribuem para o jogador encontrar conexões entre as obras.

Em várias cenas há referências ao surrealismo de Lynch e a pinturas como as de Balthasar Klossowski (Balthus), que fazem muito sentido para o erotismo e à metalinguagem da obra. O único problema que vejo na escolha dos três tipos de filme é que parece um tanto arbitrária. Os três roteiros acabam sendo pouco desenvolvidos nas gravações. Em vez de melhor escolhidos e explorados para a proposta, às vezes parecem quase uma distração para a história que está por trás delas; a trama que realmente interessa.


Tanto a cenografia quanto o figurino são fundamentais para a imersão nos bastidores do cinema. Penso que a escolha de filmes antigos foi pertinente para o orçamento do jogo, porque assim também se justifica uma produção menor para aquelas gravações; dá para perceber isso muito pelas roupas, câmeras, sets de filmagem e até mesmo a direção de som.

Por fim, o jogo conta com trilha sonora de Nainita Desai, que já havia trabalhado com Barlow em seu último game, Telling Lies. As músicas de Immortality não são muitas, mas isso não chega a ser um problema, considerando a brevidade do jogo. As composições às vezes possuem um estilo de jazz noir leve, com um pouco de piano, ou simplesmente trazem um bom clima de suspense e mistério, com ênfase em instrumental de cordas (confira no vídeo abaixo).


A harmonia tende a ser em tom menor, de uma forma levemente triste ou mesmo desconcertante e tensa, sempre com ritmo lento e melodias simples recheadas de dissonância. Gostei especialmente de como o tema de abertura é marcante sem ser enjoativo, o que dá identidade ao jogo e serve como um convite à reflexão, como um puzzle vivo.

Interessante também como a última faixa “Two of Everything” tem um contraste alegre de pop dos anos 2000, uma escolha que combina com o estilo do último filme e também é assustadora em contraste com as demais peças da trilha; acho que foi bem empregada nos créditos. O único problema que vejo é que as músicas de fundo nem sempre contribuem para a imersão das cenas dos filmes, uma vez que elas são as mesmas para as três produções e não costumam levar em conta qual cena específica o jogador está vendo.

Um novo patamar para a produção de filme interativo

Os filmes da trilogia poderiam ser mais desenvolvidos e a gameplay poderia ser um pouco mais rica, porém há ótimas atuações e direção de arte, além de uma brilhante sobreposição interativa dos roteiros. Sem dúvida Immortality traz com sua produção ambiciosa, madura e ousada uma experiência narrativa crítica e única, e consegue aproximar o cinema de arte dos videogames como nenhum outro filme interativo até então. O título é uma recomendação obrigatória a qualquer amante do cinema que esteja interessado no potencial da interseção dessa mídia com os videogames, bem como aos fãs de adventure de mistério abertos a lidar com o irreverente erotismo e conceitualismo dessa obra.

Prós

  • Boas atuações dos protagonistas que criam uma conexão direta, intrigante e assustadora com o jogador;
  • Design narrativo único com sobreposição de roteiros em uma experiência não linear e metanarrativa bastante impactante e intrigante;
  • Enredo profundo e ousado sobre questões importantes acerca de abuso sexual, cinema e arte;
  • Direção de arte e fotografia bem inspiradas para suspense, alegorias e sátiras combinadas com escolhas adequadas para cenografia e figurino;
  • Uma boa trilha sonora para o mistério do game e para a época dos filmes dentro da ficção;
  • Uma gameplay econômica, intuitiva e coerente com a proposta ficcional.

Contras

  • Os roteiros dos três filmes poderiam ser mais desenvolvidos e explorados para a proposta;
  • A trilha sonora não é muito sensível à identidade de cada uma das três produções cinematográficas;
  • Ainda se mantendo coerente com a proposta, a jogabilidade poderia aproveitar um pouco mais a potencialidade interativa dos videogames;
  • Mesmo com controles simples, eles são um tanto imprecisos, principalmente com teclado e mouse.
Immortality — PC/XSX — Nota: 9.0
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Juliana Piombo dos Santos
Análise produzida com cópia digital adquirida pelo próprio redator

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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