O impacto do coronavírus no mundo dos games

COVID-19 faz indústria criativa se reinventar e rever estratégias comerciais, enquanto consumidores veem streaming e mídias digitais como alternativa durante isolamento social.

Por meio de jogos eletrônicos e suas histórias, aprendemos que, em tempos de pandemias globais sem precedentes, sociedades estabilizadas entram em colapso e precisam encontrar novas maneiras de se adaptar àquela realidade. São inúmeros os títulos que retratam tais acontecimentos nos videogames, os quais podemos citar desde The Last of Us (PS3/PS4) até Days Gone (PS4), por exemplo.

Mas o que nos contavam até agora por meio dos controles e das telas hoje pode ser contado nos noticiários, pois existe um inimigo real, o SARS-CoV-2. O novo coronavírus surgiu na China em dezembro de 2019 e se espalhou rapidamente, afetando populações e ocasionando um enorme impacto econômico, comercial e nos mais variados âmbitos. Em meio à crise e com a necessidade de distanciamento e isolamento social, a indústria criativa dos videogames ainda emerge e mostra potencial, mas é preciso se reinventar e rever estratégias para driblar boa parte dos efeitos desta pandemia.

Abaixo você confere como o novo coronavírus está impactando um dos mercados mais rentáveis do planeta e como empresas, estúdios de desenvolvimento, eventos e consumidores estão se adaptando ao período.

Produção de hardware e desafios logísticos

Não é novidade para ninguém que a China e outros países asiáticos são os líderes de produção de eletrônicos no mundo. As maiores empresas de tecnologia, por exemplo, possuem fábricas em quase todo território chinês e utilizam de sua estrutura e mão-de-obra para produzir a maior parte de seus produtos, como celulares e televisores. No mundo dos videogames não é diferente e empresas como Sony, Microsoft e Nintendo produzem seus principais consoles em terras chinesas. Além disso, suas fornecedoras de componentes de hardware, como a AMD, a Intel e a Nvidia, também estão presentes por lá e se destacam pela produção em massa de peças de CPU e GPU para consoles, principalmente agora com a chegada do PlayStation 5 e do Xbox Series X ao mercado.

No entanto, a alta demanda de consoles e a baixa oferta de componentes para sua fabricação, devido à atual pandemia de COVID-19, trouxe às empresas do setor diversos desafios comerciais e logísticos. A Nintendo, por exemplo, teve uma taxa de procura elevada do Nintendo Switch durante os primeiros meses do ano, graças a títulos como Animal Crossing: New Horizons (Switch), mas teve que diminuir seu fornecimento de consoles às varejistas devido à crise, deixando estoques esgotados em pouquíssimos dias.

A Sony, por sua vez, também teve que reduzir a produção de PlayStation 4, devido às paralisações de suas principais fábricas na Malásia, mas o maior impacto deve ser no PlayStation 5, que será lançado no final de 2020, pois a AMD, sua principal fornecedora de placas e componentes teve que encerrar por tempo indefinido suas operações. Desta forma, estima-se que a empresa deva limitar a produção e a venda de seu novo produto nos primeiros meses após o lançamento. Por fim a Microsoft também teve sua produção de Xbox One reduzida e seu novo console, o Xbox Series X, que chega no final de 2020, deve ter estoques limitados de início. Assim como os consoles, o novo coronavírus também afetou o mercado de componentes para PC. A Nvidia e a Intel, principais fabricantes de placas gráficas, registraram uma queda na produção, enquanto empresas de periféricos também seguem a mesma direção.

Apesar do início turbulento, aos poucos fábricas chinesas vão reabrindo, pois o surto começa a ser minimamente controlado. Entretanto, por mais que existam medidas de apoio ao retorno das atividades industriais, nada será como antes e os impactos nos centros de produção ainda serão sentidos pelos próximos meses no bolso das próprias empresas e do consumidor.

Atrasos no lançamento de jogos

Com milhares de funcionários de estúdios de desenvolvimento de jogos trabalhando remotamente, devido à necessidade de distanciamento social, muitos títulos acabam tendo um progresso de finalização mais lento, pois seus desenvolvedores não contam com toda a estrutura que só um estúdio profissional pode oferecer. Segundo estimativas, alguns estúdios operam de 70 a 80% de sua produtividade normal durante a pandemia, o que gera um resultado diferente daquele que é esperado em um determinado período de tempo. Ainda assim, o home office na indústria dos videogames não é um dos mais problemáticos. Para falar a verdade, é um dos mais acessíveis. Entretanto, se fôssemos levar em conta apenas isso para o desenvolvimento de um novo título, tudo seria mais fácil.

O fechamento de fóruns e órgãos de classificação indicativa, a suspensão de processos de capturas de movimento de grandes jogos AAA e o bloqueio de envios de cópias de jogos finalizados para sua produção em massa em fábricas globais contribuíram para muitos dos problemas logísticos no setor, que consequentemente geraram atrasos de lançamentos, como foi o caso de The Last of Us Part II (PS4).

Eventos físicos cancelados e adoção de modelos digitais

Com o surto do novo coronavírus se alastrando pelo mundo, eventos globais de videogames, como E3, Gamescom, Paris Games Week e Tokyo Game Show, foram cancelados de imediato para evitar aglomerações e tentar conter a propagação do vírus. Para muitos estúdios, essas oportunidades eram cruciais, pois eram por meio delas que acontecia toda a divulgação e o marketing de suas marcas. Com a atual situação, grande parte das empresas, assim como as próprias organizações de eventos, começaram a procurar novas estratégias para manter seus cronogramas ativos e estão adotando um modelo de transmissões online, muito parecido com o Nintendo Direct.

Com base nesse modelo, surgiu o Summer Game Fest, uma temporada de eventos totalmente digitais, onde estúdios e empresas podem apresentar suas novidades por meio da Internet, fazendo com que a industria criativa e seus consumidores continuem unidos e conectados de suas próprias casas.

Apesar de ser um passo significativo para o setor em geral, essas edições digitais nunca chegarão ao nível de edições físicas, pois nem só de divulgação e marketing eventos como a E3 se caracterizam. O fato de que estúdios possam trazer demonstrações de seus jogos para os consumidores tem um grande impacto no lançamento final. Isso porque é ali que seus desenvolvedores ouvem opiniões, mantêm contato com diversas pessoas e recebem feedback, podendo aproveitar tais trocas de conhecimentos para melhorar seu produto.

e-Sports

Dentro desse mundo de grandes eventos também estão incluídos os e-Sports ou, em português, esportes eletrônicos. Diferente dos campeonatos nacionais e internacionais de futebol, que tiveram suas operações suspensas por tempo indefinido por causa do novo coronavírus, o esporte eletrônico continua de certa forma, firme e forte, mas, é claro, com restrições como estádios vazios, por exemplo.

Ao contrário do futebol, o esporte eletrônico não necessariamente precisa manter contato direto com seu time e com o time adversário. Tudo é feito por meio das telas de computador, onde ocorre a disputa e a interação entre os componentes dos times. A ESL, organizadora de competições profissionais de Counter-Strike: Global Offensive (PC), Tom Clancy's Rainbow Six Siege (Multi), StarCraft II (PC), dentre outros jogos, alterou seu calendário para preparar eventos em modalidade online. No Brasil, por sua vez, o CBLoL, Campeonato Brasileiro de League of Legends, segue em andamento cem por cento online. Embora haja alternativas dentro do cenário dos e-Sports, muitas das competições preferem esperar e cancelar seus torneios até tudo se normalizar, pois a melhor sensação de competir é diante de uma plateia.

Streaming e mídias digitais

Enquanto a indústria criativa enfrenta problemas na produção de hardware e software, os consumidores veem os jogos eletrônicos como uma boa medida durante o confinamento. Para evitar contato humano e aglomerações, como o momento exige, as mídias digitais se tornaram uma das principais aliadas dos jogadores, e vai ao encontro de novos adeptos.

Se no ano passado as vendas de mídias digitais decolaram, gerando uma receita muito acima do esperado para as companhias, de março pra cá elas explodiram de vez. De acordo com estimativas, houve um aumento de cerca de 10 milhões de dólares com gastos digitais entre os consumidores de jogos eletrônicos no período de isolamento social. Plataformas como Steam, Epic Games Store, PlayStation Store, Nintendo eShop, Xbox Store e Xbox Game Pass registraram um aumento simultâneo de acessos nos últimos meses, atingindo números absurdos.

Outra alternativa para aqueles que buscam se entreter por meio de jogos e que gerou boas receitas durante os últimos anos para as empresas foram as plataformas de streaming. E aqui não estamos falando do Google Stadia lançado nos Estados Unidos em 2019 e que, apesar de boa a ideia da gigante das buscas, ainda não se popularizou. As transmissões ao vivo de jogos aos quais me refiro estão a todo vapor e é exatamente por isso que grandes eventos de e-Sports como o CBLoL ainda funcionam durante a pandemia. Para se ter noção, plataformas de streaming como Twitch, YouTube Gaming e Mixer registraram um aumento de acesso de cerca de 20%, atingindo picos de 3 milhões de espectadores simultâneos.

Na crise econômica de 2008, a indústria criativa que compõe a indústria cinematográfica e dos games teve um crescimento significativo, enquanto outros setores lutavam para sobreviver. A explicação para o constante crescimento do setor do entretenimento, que vai na contramão da economia mundial no passado e no presente, ocorre principalmente por causa de um efeito chamado cocooning, no qual a tendência é que as pessoas fiquem mais em casa trocando atividades sociais por outras alternativas. Para uma pandemia, no entanto, o cocooning é uma recomendação de um órgão máximo de saúde pública e, com ele, o setor de mídias digitais e streaming se fortalece ainda mais perante o consumidor, pois com a necessidade de distanciamento social, consumir produtos direto de suas casas se torna muito mais seguro, viável e barato.

A COVID-19 vai transformar a sociedade. Pessoas vão ver o mundo com outros olhos e percepções. Aquela balada com amigos no fim de semana não vai mais ser a mesma. Abraçar e cumprimentar, talvez, vai se tornar obsoleto. Quem sabe!

As respostas que nos cercam para o que vem depois da pandemia ainda seguem sendo um verdadeiro mistério, mas o que podemos confirmar é que o mundo dos games não sairá do mesmo jeito. Consumidores vão mudar de hábitos. Estúdios vão repensar suas ações. Práticas anti-crunch serão levadas mais a sério. Tudo vai mudar, a indústria vai aprender com todos os impactos, sejam eles positivos ou negativos.


Revisão: Ives Boitano

é entusiasta e apreciador de jogos com conceito artístico minimalista e narrativas de significado profundo. Acredita na potencialidade de cada experiência interativa e tenta extrair delas sentimentos humanos e existenciais. No GameBlast também escreve notícias, análises e especiais; no tempo livre produz roteiros autorais de séries e filmes. Criatividade, imaginação e curiosidade são algumas de suas características marcantes.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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