O que Civilization V (PC) pode nos ensinar que escola não ensina (Parte II)

Quando se trata de políticas de boas vizinhanças em Civilization, é difícil encontrar equilíbrio quando seu vizinho da direita é um completo babaca e o da esquerda quer te explorar até o último centavo.



Continuando a série de fatos históricos interessantes vindos de Civilization, convido-o a conhecer alguns dos verdadeiros cretinos da história. Aqui temos tudo que um diretor de novelas mexicanas ou do Game of Thrones gosta de colocar nos roteiros: muito sangue, traição, safadeza e mais sangue.

Uma lança zulu machuca mais do que um tiro de rifle

Se você já jogou qualquer partida com os Zulus ao seu lado, deve ter passado por um perrengue parecido com o da imagem abaixo. Não importa o quão avançada esteja a sua tecnologia, o quão treinados estejam suas tropas, os Zulus sempre jogarão pelo menos dez vezes mais Impis em sua direção.


Os Impis são as unidades únicas desta tribo africana. Armados com enormes escudos em forma de losango, lanças maiores ainda, vestidos com algumas tiras de couro e muitas vezes descalços, em 1879 eles deram uma verdadeira surra nos colonizadores britânicos, esses armados de rifles, canhões e toda uma logística militar avançada.

Em Civilization V, esses bullies de cidades-estado e destruidores de impérios existem por uma única causa: a porrada. Se Shaka, seu líder, não estiver em guerra com alguém ou cobrando tributos das cidades-estado, algo está dando muito errado. Seu perk de 50% de desconto na manutenção de tropas permite um exército gigantesco, sem pesar muito na economia e, somado ao outro perk de +25% de desconto na experiência necessária para sua promoção, os zulus ganham uma unidade de ataque altamente treinada, que até mesmo tanques (aquelas coisas de metal que, em teoria, deveriam aguentar explosões e projéteis!) chegam a pedir arrego no front.

O Impi é considerado uma das melhores unidades militares no mid-game. Sua capacidade de arremessar suas lanças à distância antes de atacar corpo-a-corpo já lhe dá uma grande vantagem. Combinados a sua construção única, o Ikanda, os Impis viram senhores da guerra. Infelizmente, tudo vai por água abaixo depois de algum tempo.


Com a defasagem tecnológica, os Impis acabam, invariavelmente, ficando para trás quando a pólvora é descoberta. Apesar da vitória inicial em 1879 contra a coroa inglesa, os encrenqueiros do sul do continente africano acabaram sendo derrotados depois de um ano de batalhas, mas isso não destruiu por completo esta civilização — destino das muitas tribos nativas americanas. Hoje, os cerca de 11 milhões de zulus vivem em diversas regiões, em grande parte na África do Sul, e em menor número no Moçambique, Zâmbia, Tanzânia e Zimbábue.

Songo-mongo não é um apelido bem justificado

Xingar um turco de árabe ou um corintiano de são paulino é quase a mesma coisa que chamar um mongo de songo e um songo de mongo. Porque de mongolóide já basta os mongóis, e os songos, os… songos. Então, para ofender mais ainda, juntaram os dois: songomongo.

Não que zuar um mongol (que nasceu na Mongólia) chamando-o de mongolóide (que é a raiz antropológica) seja útil numa viagem à Ulaanbaatar, atual capital do país asiático. Na pior das hipóteses, um mongol irá rir da sua cara e oferecer um gole de leite de iaque.

Como capturar seu mongol, segundo o filme Bill e Ted.

Mas voltamos ao apelido. Por que ser mongolóide é ser, por causa do apelido, uma pessoa idiota? Eles conquistaram quase toda a Ásia e um naco da Europa. Hoje, ⅙ da população mundial possui alguma descendência com Gengis Khan, e seu império foi o grande responsável pela construção da Muralha da China, que mesmo sendo uma das maiores obras que a humanidade já fez, não conseguiu segurar a cavalaria mongol e seus temíveis arqueiros.

A estupidez pode ser ao fato de que o império, mesmo sendo o maior  em território já visto na história, durou pouco menos de duzentos anos (comparado ao romano, que durou mais de mil, é quase nada!) e começou a se despedaçar logo depois da morte de seu maior líder: Gengis Khan. Ele dividiu as terras entre seus filhos, e que logo depois começaram a guerrear entre si, abrindo espaço para a revanche dos derrotados: chineses, árabes, eslavos, europeus… o que não faltou foram inimigos.

Estupidez maior ainda eram as atitudes dos mongóis com os conquistados. Além da conhecida brutalidade da Horda (não confundir com A Horda) contra os inimigos, o registro histórico de uma das batalhas mais brutais está creditada ao khanato: ao conquistar a região do que hoje é o Irã, cerca de ¾ da população de 10-15 milhões de habitantes morreu devido a guerra e suas consequências.


Já os songos, com um apelido sem muita ligação (aparente) com os songais, ou aqueles oriundos do Império Songhai, foram um dos impérios mais importantes do mundo islâmico entre os séculos 15 e 16, antes dos europeus começarem a colonizar e dividir (ainda mais) o continente africano. Dizem que a capital do império, Gao, existe há mais de mil anos!

Formado no que hoje há o Níger e Burkina Faso, os que hoje usamos como sinônimo de idiotas foi o centro do comércio e cultura islâmicos por quase duzentos anos, ampliando suas fronteiras pela região do Saara. Quando Askia, o líder desta facção em Civilization V, chegou ao trono, imagina-se — pela sua imagem no jogo de durão, segurando uma espada enquanto um grande templo queima ao fundo — que ele liderou com mão de ferro, o que foi longe de ser o caso. Isso é intriga da oposição branca européia.

Askia, o Grande, na verdade foi um bom governador. Além de expandir o império a seu ápice, Askia construiu escolas, templos e fez com que o Islã fosse disseminado por todos os cantos de suas conquistas, mas não na base da força. Sua tolerância religiosa permitia que, quem quisesse adorar o que bem entendesse, não fosse incomodado pela maioria islâmica. Nem um pouco songo, para dizer a verdade.

Bismarck, Napoleão e Júlio César - o bonde dos traíras

Otto von Bismarck, em uma partida de Civilization, costuma se aliar aos vizinhos e, junto com eles, fomentar guerras contra outros vizinhos, de uma forma dura e aleatória. Estar ao lado da Alemanha significa não apenas um problema militar, mas um jogo psicológico de "quando que vou ser traído?". Em um determinado momento, tudo está bem, declarações de amizade, alianças conta os inimigos, tráfego liberado pelas terras um de outro e, subitamente, BAM! Bismarck te denuncia, e em dez turnos, Panzers estão dando uma volta pelas suas cidades. Logo depois do fim da guerra, ele pede para reatar os laços de amizade.


Na história, Otto fazia quase a mesma coisa. Ora se aliava aos liberais para combater a Igreja, ora se juntava aos católicos para aumentar impostos dos liberais, ora se voltava contra os dois. Foi nesse jogo bem conhecido nas novelas da 8 que o Chanceler de Ferro unificou o que era antes um balaio de gato com cerca de 500 estados independentes sob uma só bandeira, formando um dos mais poderosos países europeus apenas em 1871, quando a maioria da Europa já estava formada em estados há um bom tempo.

Para uma nação que gosta de uma guerra (foi responsável pelas duas maiores guerras da história), a pax germanica após a unificação soou como um fato bizarro, enquanto o resto do continente sofria com guerras, revoluções e pragas. Por quase trinta anos Otto manteve a ordem na mais nova nação do mundo e com isso ganhou fama por ser durão com quem quer que esteja lidando, seja liberal, seja conservador. Seu "reinado" como chanceler foi acabar apenas em 1890, quando o novo rei alemão, Wilhelm II, chegou ao trono e o demitiu.

Ainda segundo Bill e Ted, Napoleão é péssimo no boliche.

Napoleão é um pouco mais sucinto: ele simplesmente te declara guerra caso esteja ao seu lado. Depois da derrota, Napo (seu apelido carinhoso) te pede aliança. Logo depois ele o trai. Repita. Às vezes ele pode ser seu melhor amigo o jogo inteiro, mas mantenha um enorme número de tropas perto de suas fronteiras, só no caso dos franceses resolverem mudar de ideia.

Às vezes, ele consegue ser mais engenhoso. Com um inimigo em comum, Napo possui um plano: ele se alia a você e pede permissão para passar por suas terras para, juntos, dominar o inimigo. Com suas tropas já postas na fronteira, Napoleão só precisa deixar suas tropas perto de suas cidades e lhe dar o maior bolo da história. Fim de jogo.

Isso lembra o curioso episódio em que Napoleão usou a velha rixa Espanha x Portugal para abocanhar os dois. Pedindo permissão para a coroa espanhola para que suas tropas passassem pela Península Ibérica para atacar Portugal, Napo foi recebido com festa pelas ruas de Madri, e juntos tomaram Lisboa (enquanto a família real fugia para cá). Com o império lusitano afundando, a festa da união ibérica durou alguns dias. Subitamente, as tropas francesas se voltaram contra os espanhóis.


A trairagem teve um preço alto: além da guerra sangrenta com os espanhóis, Portugal retomou o controle de seus territórios e juntamente com os ingleses, prussianos, austríacos (estes dois também mudaram de lados) e agora os enfurecidos espanhóis,  venceram o grande general de 1,68 metros de altura.

Júlio César é tão traíra que chega a ser óbvio. Logo nos primeiros turnos do jogo, ele pede uma aliança. Com ela feita, as legiões começam a se aproximar de seus territórios. E isso continua com os outros oponentes até ele ser derrotado (o que não é muito desafiador). O que difere César dos outros deste bonde é que ele não costuma trair duas vezes. Após a "facada nas costas",  Júlio fica rancoroso e marrento, dando trabalho nas negociações comerciais e políticas.

Procurando por um addon da civilização gaulesa em Civ V

Os vikings são seus melhores amigos quando derrotados

A fama de fanfarrões dos vikings não é por acaso. Eles ganharam seus chifres demoníacos graças às descrições cristãs, que os descreviam como cruéis, insanos e inegavelmente violentos. Diziam que eram loucos: vinham de suas ilhas de gelo sabe-se-lá-daonde, embarcados em enormes navios de carvalho, dezenas de homens bêbados armados de machados, espadas, paus, pedras ou o que quer que tinham nas mãos no momento e devastavam as casas, queimavam igrejas, afogavam os abades, jogavam sal na terra e… iam embora.

Não foi bem assim. Os Vikings, antes de serem os temíveis, eram os engenhosos. Sua tecnologia naval inspirou e inspira designs até hoje com sua arquitetura complexa. Mas antes de usarem seus navios como meios para invadir um inimigo, eles eram usados para o comércio. Rotas marítimas surgiam no norte europeu, e graças aos navios vikings, muitas culturas se conheceram. Os melhores barcos da época vinham da Escandinávia, e todos queriam um. Era a Ferrari da época.


Mas apesar da grande capacidade de se criar colônias no extremo norte do globo e navegar por quase todo o hemisfério norte, os vikings continuam sendo vistos como uma ameaça, sempre. De fato, eles eram temíveis. Invadiam em seus enormes navios de carvalho, com homens bêbados (naquele frio, só um bom goró para ter vontade de fazer guerra) armados com o que tinham nas mãos. Sim, devastavam as casas, queimavam igrejas e afogavam os abades, mas geralmente eles queriam ficar por lá mesmo.

E apesar dos países vizinhos das regiões vikings às vezes procurarem bons negócios e outras ações amistosas, muitas vezes tudo dava errado e uma guerra recomeçava. E eles voltavam aos negócios logo depois. E isso acontece sempre ingame.

O maior problema do viking não era a guerra, mas o que fazer com tanta gente em tão pouco espaço. Terras cultiváveis nas tundras escandinavas eram quase nulas, e a pesca já estava saturada com tantas bocas para alimentar.

Os hunos não fundavam cidades. Eles pegavam a dos outros

Atilla, o Huno, teve um curto império. Seu reinado começou quando as conquistas dos povos hunos foram consolidadas e acabou um ano depois de sua morte, de uma forma súbita. Tudo que sabemos é que ele era detestado por todos. O "Flagelo de Deus" possui origens misteriosas, com tribos vindas dos confins da Ásia, e que ao longo de séculos foram migrando rumo a oeste, até chegarem à Europa.

Suas raízes nômades eram famosas. Os hunos nunca ficavam em um lugar, ou sequer eram um só povo, e geralmente se mudavam logo que conquistavam um espaço novo. Foi assim até chegarem às portas do Império Romano, onde seu primeiro grande inimigo tomou forma. O medo dos romanos por Atilla era conhecido: era comum um exército de arqueiros montados em cavalos invadirem as cidades marginais do império, saquearem, matarem quem estivesse pela frente e depois irem embora. E assim novamente na cidade vizinha.


Com o declínio do Império, os hunos se aproveitaram para extorquir ainda mais os romanos. O césar era obrigado a pagar um tributo anual em ouro para Atilla, ou então ele iria lá buscar essa grana. Imagino um bando de centuriões bem vestidos entregando baús recheados de ouro para um bando de selvagens e seus cavalos, falando um idioma que misturava aspectos europeus e asiáticos.

Os hunos não tinham uma capital fixa, já que seus generais estavam constantemente ocupando a dos outros, assim como em uma partida de Civ. Atilla não é do tipo de trair, mas sim de declarar guerra em você em quaisquer oportunidades, seja ele seu amigo, ou não. Atilla está em guerra a todo momento, e é normal que seu império fique estagnado já no early game, já que tudo que ele faz em suas cidades é construir tropas. Sua unidade siege, um enorme carro feito para destruir portões de fortalezas, é relativamente barato e rápido de se fazer. Seria natural ter uma dúzia desses prontos em menos de cem turnos de jogo. A superprodução com o bônus em pastos de cavalos dá uma preferência extra por este recurso, que ajuda muito caso alguém queira uma vitória científica.

Atilla e seu império foram tão voláteis quanto suas movimentações militares. Após unir todas as tribos, ser o principal suspeito pela morte de seu irmão Bleda (com quem dividia o império huno) e começar a dar problemas para os romanos, os hunos controlavam metade da Europa com pedaços do Oriente Médio. Em seu score de lugares saqueados, está Roma, Paris, Milão, e estava prestes a atacar Constantinopla quando subitamente morreu de hemorragia na noite de núpcias, o que põe mais lenha nas lendas deste mito.

Revisão: Luigi Santana
Capa: Stefano Genachi

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
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