O que Civilization V (PC) pode nos ensinar que a escola não ensina

Spoiler: esta matéria possui alguns fatos históricos distorcidos. Outros, nem tanto.



Caso um dia me torne professor de história, mostrarei aos meus alunos alguns vídeos de jogos, entre eles o do Civilization V, e serei bem sincero: a bibliografia opcional terá sugestão do que jogar para ajudar nos estudos.

Mas um aviso! Não levem os jogos tão a sério. Aos 13 anos, jogando Iron Storm, dei uma vacilada enorme ao dizer que o Japão invadiu o oeste do continente americano numa prova. Aquele jogo mentiu para mim! Ou eu deveria ter estudado em vez de ir jogar.

De qualquer forma, incluir videogames em sala de aula pode ser um tiro no escuro se o professor não souber quando e como usar um jogo em aula. Já vi professores de artes, matemática e física dando Minecraft como lição de casa, com resultados surpreendentes. Mas como fazer alguém se interessar pela Revolução Industrial sem ter como levá-lo para uma fábrica, ou pelo menos para um sindicato?

Este vídeo poderia dar um gostinho da trabalheira que era acordar às 5h, beber uma breja (ainda não existia o hábito de beber café) e ir jogar carvão num forno por dezesseis horas seguidas:


Além disso, alguns fatos históricos curiosos podem ser descobertos enquanto se explora um mundo gerado aleatoriamente com marroquinos e chineses convivendo lado a lado. Graças a dedicada pesquisa histórica feita pela Firaxis, os desenvolvedores de Civilization, pequenos detalhes podem ser vistos e grandes personalidades históricas são homenageadas. Nem mesmo Pedrinho (o segundo), nosso último imperador, foi poupado.

E assim como os videogames, não leve a história tão a sério. Ao longo de milhares de anos de pesquisas e opiniões pessoais estampadas escandalosamente nas linhas de verdadeiros tiranos dos fatos, sempre haverá espaço para questionamentos. A história, apesar de já ter acontecido, sempre é revista e remodelada segundo o pensamento dos estudiosos em suas épocas, e alguns exageros são colocados, para depois serem corrigidos ou até mesmo desmentidos.


Muito material histórico é encontrado nos jogos para sustentar seus enredos. Geralmente essas fundamentações são distorcidas (ou até mesmo jogadas pela janela) para que o jogador sinta-se parte do passado. Sniper Elite v2, por exemplo, coloca um americano atirando em soviéticos com seu rifle alemão, tudo isso no meio de Berlim. O absurdo chega por DLC: há uma missão para matar Hitler. E tudo isso só aconteceu na cabeça dos desenvolvedores.

A equipe de Civilization faz o que pode para fundamentar as intenções dos grandes líderes mundiais em uma partida, mas algumas motivações fogem tanto dos fatos que é preciso explicar melhor para evitar notas baixas no vestibular. Vamos a algumas destas explicações:

A capital da Assíria foi Assur

Quem conhece Monty Phython, deve conhecer esta dúvida através deste trecho do Em Busca do Cálice Sagrado:


Chamar um sírio de assírio é quase a mesma coisa que chamar uma bolacha de biscoito: os povos da região que hoje chamamos de Síria, na verdade, fizeram parte de um império maior, os assírios, este último formado por uma aliança de povos sumérios e acadianos. A história destes povos é tão antiga e confusa quanto o que está acontecendo atualmente no Oriente Médio, e essa confusão começou há séculos, ou talvez até há milhares de anos.

Tento explicar: O nome Assíria se origina de sua capital, Assur (ou Ashur, ou até mesmo Aššur). Daquela cidade, a expansão se deu, em seu ápice, até o Egito pelo oeste e a Babilônia pelo leste, e no meio deste império haviam importantes cidades em suas épocas, como Tiro (que antes eram dos fenícios), Damasco (capital da atual Síria) e Tebas (que antes fora dos egípcios). Aqui já dá para entender como os assírios gostavam de uma cidade estrangeira.

Em Civilization V, os assírios são verdadeiros agregadores, e ter Ashurbanipal como vizinho quase sempre é motivo de despesas militares extras. Ao conquistar uma cidade de outra civilização, eles ganham uma tecnologia já descoberta pelos conquistados. Então é quase óbvio quando Ashurbanipal simplesmente se vira contra você: ele quer a sua ciência.

Montezuma era um psicopata. Seu filho, nem tanto

Montezuma (o primeiro), assim como Ashurbanipal ou Shaka, é sinônimo de encrenca quando aparece perto de seus territórios. Com sua habilidade de ganhar pontos de cultura ao destruir um inimigo, é quase certeza que o último imperador dos astecas adorava estar em constante guerra. Não foi bem assim.

Os astecas conquistaram praticamente todo o território em que hoje é o México não somente na base da porrada, mas também com relações comerciais, culturais e tecnológicas. Mas o império estava no seu auge quando Montezuma II (ou Monty Júnior) assumiu o reino e deu de cara com um homem branco, sujo e peludo e que era considerado a chegada dos deuses na Terra.


Quando o conquistador Henan Cortéz chegou na América, logo encontrou o principal líder das tribos da região no verdadeiro estilo ostentação. O capitão europeu encontrou uma enorme cidade bem organizada, com grandes avenidas retas e construções feitas com gigantescos blocos de pedra polida. Ouro, somente nos colares e em algumas armas, diferentemente dos relatos malucos dos exploradores da época que diziam piamente que haviam prédios feitos com ouro e rios cobertos por prata e diamantes.

Diz a lenda que o espanhol foi recebido por cerca de duzentos generais, todos descalços, apenas com Montezuma II usando sandálias e roupas diferentes. Há até relatos de que o grande asteca estava sendo carregado em seu trono por seus vassalos.

Apesar das intenções supostamente pacíficas de Monty, Cortéz conquistou o México com um punhado de soldados espanhóis e aliou-se a milhares de homens das tribos rivais do regime principal. Doenças, crises e a própria cultura bélica dos nativos contribuíram para a completa queda dos astecas, no século XVI. E Montezuma também pode ter tido sua fatia de culpa.


Ao ostentar seu poder aos espanhóis, o último imperador de Tenochtitlan foi bem claro: “vocês podem até ser deuses, mas quem manda aqui ainda sou eu”. Na cultura asteca, mostrar seu poder e sua hospitalidade eram sinais de que você não era bem vindo. Cortéz entendeu o recado e começou a preparar uma das guerras mais brutais que a América já viu.

Mas, não, Montezuma Jr. não foi um completo psicopata. Ao ver os canhões e os mosquetes trazidos pelos conquistadores, ele ficou pianinho. Convenceu-se que eram de fato deuses e fez quase de tudo para manter a ordem, até finalmente cansar dos cada vez mais absurdos pedidos dos espanhóis e suas intrigas com as tribos marginais, que já estavam farta das — pasmem — cada vez mais absurdas demandas da tribo maior.

Pedro II só queria cultura e sossego

Pedrinho (ou Pedro II) não ficou conhecido como o “magnânimo” por pura vaidade. O garoto coroado aos cinco anos recebeu uma verdadeira bomba de seu pai (Pedrão, ou Pedro I), que abdicou ao trono em 1831 (nove anos depois de proclamar a independência) para recuperar seus direitos reais em Portugal, e evitar a dor de cabeça de reorganizar a própria bagunça que fez a oeste do Atlântico.


Grandes poderes exigiam grandes responsabilidades, e Pedrinho foi praticamente forçado a enfiar a cabeça nos estudos até ter condições de reinar, o que fez aos quatorze anos, após muita pressão das elites. Apesar do absurdo de termos um adolescente no comando, os anos de estudos deram resultado, e nossa majestade reinou por 58 anos até ser deposto por uma junta militar que não estava muito a fim de desenvolver a cultura, as ciências e a economia, como Pedro II costuma fazer em uma partida de Civ V.

Pedrinho não era um cara muito irritado, mas, de alguma forma, “venceu” as três guerras onde esteve envolvido, incluindo uma com nossos hermanos, no Rio da Prata. A única ameaça ao seu trono veio em 1889, quando o Brasil se tornou República.


Mas chega de saudade. Em Civ V, o Brasil se torna uma verdadeira fábrica de cultura no mid-game, e se não for parado a tempo, pode conquistar vitória cultural. Os pracinhas (uma abominação anacrônica, já que estes só surgiram  em 1940,  bem depois da morte do Pedrinho) são sua maior defesa, e quanto mais homens se perdem para os praças, mais próximo o Brasil estoura uma Golden Age, gerando ainda mais cultura.

Ghandi não era um pacifista com mísseis nucleares

Ao longo dos últimos anos, a máscara de pacifista que Mohandas Ghandi ostentava foi caindo, e diversos historiadores (dos quais mais recomendo o Leandro Narloch) já denunciaram e estudaram as diversas peculiaridades do líder da independência dos indianos.

Por mais estranho que pareça, Ghandi também é um dos mais odiados líderes na série Civilization. Com suas aspirações pacifistas, ele sempre almeja vitórias culturais ou tecnológicas, mesmo tendo em seu arsenal dezenas de armas nucleares no endgame. Sua mais conhecida bandeira, a resistência pacífica, é demonstrada de uma forma irônica nos mapas onde ele aparece.

BOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOM!


Ghandi geralmente é um dos últimos líderes a declarar guerra em você, mas sempre é um dos primeiros a te denunciar. Faça algo "errado", como conquistar seus inimigos ou folgar com as cidades-estado, e Mohandas irá desencalhar todo seu estoque bélico em sua face. Seus exércitos e quantidades de cidades chegam ao ponto do risível em números, mas poucos conseguem chegar perto de conquistar Mumbai, fortemente populosa e defendida.

Um dos maiores ícones do século passado diria, se estivesse se vendo in-game: É a "pax nuclear" que tanto pregaram na Guerra Fria. Quanto mais poder de destruição uma nação tiver, menor será a vontade do inimigo atacar. Então as ogivas nucleares estão lá só para meter medo, mas Ghandi sabe e irá usá-las caso seja perturbado. Apesar disso, a Índia atual já se meteu em inúmeras encrencas com seus vizinhos paquistaneses, e lembre-se de que ambos possuem armas nucleares. Então a treta realmente é séria e o abuso dos indianos com ogivas pode ser justificada.

Kamehameha foi mais do que um golpe do Goku

Os polinésios foram incluídos como DLC em Civilization V sob a tutela de Kamehameha, e até então o mundo conhecia este nome somente pelas mãos de Son Goku, o herói da série Dragon Ball. Poucos sabem que Kamehameha também foi uma família que conquistou e unificou o que hoje conhecemos como o estado americano do Havaí.

Kamehameha (há cinco, e este é o primeiro) foi o idealizador e criador do Reino do Havaí em 1810 e sua história é salpicada por lendas. Uma delas diz que “aquele que conseguisse mover a rocha Naha conseguiria unificar todas as ilhas havaianas”. Kamehameha não só conseguiu levantar o enorme rochedo, como também o virou de ponta cabeça, só para mostrar que não estava de brincadeira.


Com a pedra dominada, veio o enorme desafio de dominar todas as tribos sob um só reino, o que Kamehameha fez, fosse na base de alianças, fosse na base da porrada. O reino foi unificado e sua dinastia durou 77 anos e cinco gerações de Kamehamehas. Quando o último Kamehameha morreu sem deixar herdeiros, em 1872, diversos conflitos internos e brigas pelo trono culminaram na intervenção dos EUA. Em 1887, a realeza foi forçada (literalmente) a criar uma nova constituição favorável aos interesses ocidentais, em especial às elites brancas estadunidenses.

Em 1893, uma tropa de marines ocupou o arquipélago para manter a paz na região e ajudar na manutenção de uma república — a coroa apenas manteria uma função cosmética, tal qual acontece no Japão atual — na época, independente dos outros 49 estados americanos, mas ainda sob a tutela dos EUA, algo parecido com o que Porto Rico é nos dias atuais. A anexação e transformação do Havaí como 50º estado dos EUA se deu em 1898, apesar da resistência maciça dos havaianos nativos.

A anexação, apesar da brutalidade e sem dar muita atenção ao o que os havaianos nativos queriam, acabou sendo favorável aos adoráveis canoadores. Hoje o estado é um dos mais visitados e carismáticos de todo o território, com grande importância econômica e social. Aliás, Barack Obama, o atual presidente do país, nasceu em Honolulu, capital do arquipélago.

História jogável

Estou quase certo que ao menos Pedro II e Ghandi já caíram em alguma prova. Se quiserem conhecer mais sobre os personagens históricos que fazem parte de Civilization, eis alguns autores e coleções que recomendo a leitura para saber muito mais da história destas e de outras civilizações:
  • A História da Vida Privada (vários autores);
  • O Paraíso Destruído (Frei Bartolomé de Las Casas);
  • Série As Eras (Eric Hobsbawm);
  • Série Guia Politicamente Incorreto (Leandro Narloch).

Talvez alguns de vocês, amigos leitores, já tenham encontrado estes ou outros personagens históricos em alguma aula ou livro. E caso queiram adicionar mais alguns fatos interessantes sobre estes ícones do passado, ou conhecer mais sobre algum outro líder, não deixe de comentar!

Revisão: Luigi Santana
Capa: Felipe Araújo

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
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