Mafia: The Old Country – o contexto histórico do jogo e as origens da máfia

Mafia: The Old Country expõe a pobreza, exploração e como o crime se organizou na Sicília nos anos 1800.

em 14/12/2025
Lançado em 8 de agosto de 2025 para PlayStation 5, Xbox Series X/S e PC, Mafia: The Old Country marca o retorno da franquia Mafia às suas origens narrativas. Desenvolvido pela Hangar 13 e publicado pela 2K Games, o jogo é um prequel ambientado na Sicília do início do século XX, mais especificamente entre 1904 e 1908.

Uma visita às raízes do crime organizado

A trama explora o nascimento da Cosa Nostra, o nome interno da Máfia Siciliana. Diferente dos títulos anteriores, ambientados nos EUA entre os anos 1930 e 1960, este jogo mergulha na transição do feudalismo para o capitalismo na Itália unificada, retratando a Máfia não como uma vilania glamorosa, mas como uma reação desesperada à pobreza extrema, exploração laboral e à ausência do Estado.

O protagonista, Enzo Favara, é um órfão que inicia sua jornada como caruso, um menino escravo vendido pelo pai para as minas de enxofre que acaba se juntando e ascendendo na família criminosa Torrisi, liderada pelo Don Bernardo Torrisi. Com uma narrativa linear de cerca de 12 a 15 horas de duração, o jogo enfatiza temas de lealdade, sacrifício familiar e traição, em um mundo de combates corpo a corpo com stiletto (pequena adaga dobrável com ponta em forma de agulha), espingardas de cano serrado, longas cavalgadas e raras viagens de carro. A recepção foi mista, com elogios à autenticidade histórica e à imersão cinematográfica via Unreal Engine 5, porém com críticas à mecânicas de combate lineares e ritmo inicial lento.

A equipe da Hangar 13 pesquisou exaustivamente para criar o jogo: viagens à Sicília, testes com veículos e armas da época, consulta a historiadores como John Dickie (autor do livro best-seller Cosa Nostra), fotos históricas e documentos policiais. "Queríamos mostrar por que a Máfia surgiu: não por ganância pura, mas por falhas sociais e econômicas", explicou o diretor Alex Cox em entrevistas.

A Sicília pós-unificação: pobreza, recursos e o vácuo do estado

A unificação da Itália em 1861, com a criação do Reino de Itália, anexou a Sicília (até então parte do Reino das Duas Sicílias) a um Estado central fraco e distante. Com menos de 350 policiais para uma ilha de aproximadamente 25.711 km², o novo governo gerou desconfiança. Muitos sicilianos viam Roma como invasora, fomentando o banditismo e a criação de grupos armados para autodefesa. A transição do feudalismo para o capitalismo e a privatização das terras feudais fragmentou as propriedades na ilha, passando de 2.000 proprietários em 1812 para 20.000 em 1861, o que multiplicou as disputas por contratos, gado e colheitas.

A economia rural era dominada por dois "recursos malditos": enxofre e limões. A Sicília na época respondia por 80% do enxofre mundial no século XIX, com exportações crescendo ano após ano, equivalendo a 6% do PIB siciliano no início do XX. Minas superficiais empregavam os carusi (meninos de 4 a 7 anos vendidos por famílias pobres ou orfanatos por um "subsídio de morte"). Eles carregavam de 25 a 80 kg de minério em túneis escuros por 8 a 10 horas por dia, sofrendo maus-tratos, desenvolvendo deformidades e chegando a morte prematura. Leis de idade mínima para trabalho (10 anos em 1876, 14 em 1905) eram ignoradas; cidades como Lercara Friddi eram chamadas de "cidade dos corcundas".

Paralelamente, houve o grande crescimento do comércio de limões, impulsionado pela cura do escorbuto. Esta doença, causada pela deficiência de vitamina C, era no século XVIII e XIX o maior assassino de marinheiros em longas viagens. Após a descoberta de James Lind de que o suco de frutas cítricas prevenia a doença, a Marinha Britânica passou a demandar quantidades industriais de limões. A região ao redor de Palermo, conhecida como Conca d'Oro (Concha de Ouro), transformou-se em uma gigantesca fábrica de suco cítrico. As árvores demandavam 7 a 8 anos para frutificar, além de precisarem de água constante e de proteção contra ladrões. Essa lacuna de necessidade e segurança obrigou os Gabellotti (arrendatários das terras) a contratar guardas mafiosos, que, em conluio com ladrões, criavam a necessidade de "proteção". No jogo, essas minas e pomares de Valle Dorata (versão fictícia do Conca d'Oro) abrem o prólogo de Enzo, ecoando a "maldição dos recursos".

De proteção privada a império de extorsão

A Máfia de fato surgiu nos anos 1860 como um cartel de firmas de proteção privada, evoluindo das "mafie" do século XIX para grupos organizados com rituais de iniciação (corte no dedo/lábio, sangue em imagem santa) e códigos de conduta e juramentos (nunca se apresentar diretamente como membro, respeitar esposas alheias, evitar polícia e bebedeiras).

Mafiosos recuperavam gado roubado, manipulavam eleições e controlavam o comércio de enxofre e cítricos via pizzo (extorsão). Relatórios entre 1898 e 1900 de Ermanno Sangiorgi (delegado de polícia autor do primeiro mapeamento detalhado da estrutura da Máfia) mapearam 670 mafiosos em Palermo, condenando 32 em 1901 por associação criminosa. O historiador John Dickie confirma em seus estudos que minas de enxofre eram "foco de atividade mafiosa". O ditador Benito Mussolini desmantelou as estruturas de poder abertas da Máfia entre os anos 1920 e 1930, mas o Escritório de Serviços Estratégicos americano (OSS-Office of Strategic Services) acabou por revivê-la na invasão de 1943, nomeando mafiosos como prefeitos para garantir a ordem local.

A jornada de Enzo Favara

AVISO. O trecho a seguir contém spoilers leves do jogo.

Enzo começa como caruso nas minas de Don Spadaro, fugindo após uma rebelião. Acidentalmente, acaba se juntando aos Torrisi, liderados por Don Bernardo Torrisi. Enzo ascende demonstrando fidelidade via missões de extorsão, enfrentando duelos de faca, participando de emboscadas e vencendo corridas. Ele vive também um romance com Isabella, filha de Don Torrisi, e sua jornada culmina na emigração para os EUA, criando uma ponte com os demais jogos da franquia.

Alguns paralelos com a realidade no enredo do jogo são: a Iniciação de Enzo com derramamento de sangue em imagem santa; combates com espingardas e facas que refletem a escassez de armas de fogo; a rivalidade Torrisi/Spadaro serve de alegoria para as famílias reais. Coletáveis contextualizam greves e o racismo anti-italiano nos EUA. A gameplay reforça as táticas utilizadas na época, dando ênfase ao uso de stealth e tiroteios que exigem certo nível de atenção. O uso de um rosário católico para perks representa a força do catolicismo na época.

Subdesenvolvimento e migração em massa

O sistema de extorsão do pizzo e o controle dos mercados de enxofre e limões garantiram que a Máfia não apenas sobrevivesse, como também perpetuasse o subdesenvolvimento da ilha, inibindo investimentos legítimos e sufocando a mobilidade social. A alta lucratividade do crime enriquecia poucos, enquanto a maior parte da população siciliana permanecia estagnada na pobreza.

Esse cenário de opressão e falta de oportunidades impulsionou a emigração em larga escala. Entre 1880 e 1920, milhões de sicilianos emigraram para os Estados Unidos, levando consigo tanto suas tradições como a estrutura criminal. Famílias mafiosas transplantaram suas táticas para os cortiços de Nova York e Chicago, dando origem a clãs que mais tarde dominariam o tráfico de heroína (como na famosa Pizza Connection dos anos 1970) e servindo de inspiração para as famílias de jogos como Mafia II. O jogo termina com a esperança imigrante, mas o realismo é mantido: o protagonista chega à Ellis Island, um portal de entrada racista e brutal, que testou a resiliência e a moral de milhões de recém-chegados.

Humanizando o monstro sem romantizar

Mafia: The Old Country humaniza a Máfia ao colocar Enzo Favara, o protagonista, não como um herói, mas como uma vítima de um sistema social e político falido que lhe oferece a violência como único caminho para a sobrevivência e o status. Ao retratar o crime no contexto agrário e de minas de enxofre, o jogo segue a linha de mostrar a atividade criminosa como um "trabalho explorador", uma solução desesperada e brutal para a ausência do Estado.





A reflexão final da obra é forte: embora o cenário seja o início do século XX, as desigualdades estruturais que criam o crime persistem. A Sicília moderna ainda luta com a Máfia (agora mais envolvida em política e obras públicas) e com o legado da corrupção. O jogo não romantiza a violência. Embora controlemos Enzo, a verdadeira protagonista da trama é a própria engrenagem da Máfia, sendo o jovem apenas um representante do instrumento descartável dentro desse sistema. Como dizem os próprios desenvolvedores, a "Honra é apenas uma fachada para a ambição". Mafia: The Old Country trata-se de uma obra que mostra como o crime organizado seduz as camadas mais desafortunadas, dá um propósito vazio e com a mesma velocidade da ascensão volta para cobrar seu preço, que é sempre alto demais.


Revisão: Thomaz Farias
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WindsorSan
Jogadorino desde os áureos anos 90, geralmente surpreende amigos com a quantidade de títulos que já finalizou. Divide o amor por games com seus mangás, Hq's e filhotes. Agora seu objetivo é registar seus conhecimentos para as novas gerações de jogadores.
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