Análise: Rue Valley nos faz questionar o quanto pode ser produzido em apenas 47 minutos

Claramente inspirado por Disco Elysium, o lançamento se utiliza da relatividade do tempo para apresentar uma trama inconstante.

em 11/11/2025


Antes de qualquer coisa, é importante mencionarmos o elefante na sala: como bem aparenta, Rue Valley é, de fato, um clone de Disco Elysium. Dito isso, o título desenvolvido pelo estúdio Emotion Spark faz o dever de casa e até consegue um resultado consistente em sua empreitada. A diferença é que agora o jogador está nos pés de um redator preso no meio do nada e fadado a um loop temporal que o faz reviver infinitamente os mesmos 47 minutos.

É hora da sua sessão de terapia

O jogo começa às 8 da noite, com o personagem principal prestes a encerrar uma primeira sessão de terapia. Eugene Harrow é como o jogador o montou na tela de introdução, tendo que distribuir doze pontos em três eixos distintos de personalidade, sendo possível deixá-lo impulsivo ou calculista; introvertido ou extrovertido; e sensível ou indiferente.

Logo de cara, essa personalidade começa a aflorar durante os minutos finais com o terapeuta, sendo possível selecionar um leque considerável de opções imediatamente derivadas desse perfil recém-criado, algo que vai se estender ao longo de toda a campanha.




A própria terapia já se mostra um pouco incomum logo de cara, já que Harrow será acompanhado pelo especialista em um motel de beira de estrada isolado do resto do mundo — algo que, aparentemente, faz parte da metodologia do Dr. Finck. Para isso, ele também precisará passar uma temporada na hospedaria em questão. Dessa forma, o primeiro passo após o fim da conflituosa sessão é sair do quarto-consultório é ir em direção à administração fazer o check-in, mas não sem antes passar por uma moça em uma briga insistente com uma máquina de bebidas defeituosa, desesperada por um café.

Ao chegarmos na recepção, conhecemos Robin, a filha do dono do local, que nos faz esperar um bocado de tempo enquanto ela briga ao telefone com a companhia provedora de internet. Harrow, em um estado de completa desilusão com a vida, simplesmente não tem disposição para interrompê-la nesse primeiro encontro, então lá se vão mais alguns minutos do dia antes que fosse possível, enfim, dar entrada na papelada.




A própria moça é bem faladeira e parece bem empolgada com a novidade que a gerência — ou seja, o pai dela — implementou no local, entrando em detalhes técnicos a respeito do novo sistema de fechaduras movidas à cartão que ninguém realmente perguntou.

Harrow, exausto, sobe em direção ao seu quarto e logo desmonta em algum lugar, caindo no sono, porém logo sendo despertado por alguma bagunça do lado de fora. Um raio atinge as imediações do local, promovendo um blecaute por alguns momentos. Ele sai para conferir o que aconteceu e se depara com um homem fugindo desesperado em um carro. Na sequência, exatamente às 8h47, um clarão toma conta de tudo.




O personagem principal, então, desperta. Novamente, ele se encontra no sofá do Dr. Finck, ouvindo exatamente as mesmas perguntas. Após algumas sequências, ele logo percebe que está em uma espécie de loop temporal, revivendo os mesmos 47 minutos ad infinitum. Desesperado, ele tenta fugir do local, mas nunca consegue ser rápido o suficiente para escapar do clarão.

A partir daí, cabe ao jogador, no controle de Harrow, utilizar essas curtas sessões de 47 minutos para tentar decifrar não só o que prende o personagem a esse local ermo — tanto no aspecto psicológico que o fez parar no sofá do Dr. Finck, para início de conversa, quanto no aspecto quântico, que o faz reviver esse período insistentemente — como também escavar uma aparente trama de conspiração envolvendo a empresa espacial Coral Destiny, que exerce uma forte influência na região. Aquelas informações adicionais todas, como a jovem brigando com a máquina de café ou as tagarelices de Robin a respeito das trancas das portas? São todas partes desse quebra-cabeça.



É o dia da marmota!

O principal aspecto que diferencia Rue Valley de Disco Elysium envolve justamente a questão da efemeridade. Um dos principais aspectos da obra consagrada de Robert Kurvitz é a forma como cada ação infere em consequências duradouras em Elysium. Em Rue Valley, entretanto, a graça está justamente no efeito contrário, já que a cada decisão errada, basta sentar em um banco, puxar o celular e ficar rolando o feed até bater 8h47, quando o tempo é resetado e ninguém além de Harrow lembrará de absolutamente de nada do loop anterior.

Nesse aspecto, ele bebe diretamente de uma obra clássica do cinema, Groundhog Day, conhecido no Brasil como Feitiço do Tempo, em que o personagem de Bill Murray também se vê preso em uma cidade minúscula do interior, mas em um ciclo que dura 24 horas. No filme, assim como em Rue Valley, o personagem principal faz anotações a respeito da rotina de cada morador daquele local a fim de conhecê-los melhor em loops posteriores e que acarreta em maneiras melhores de lidar com cada um.




Com isso, dá para progredir na história de uma forma bem livre enquanto vai explorando os mapas e entendendo o tempo exato em que ocorre cada acontecimento, adequando suas ações já para tal. O fato desse loop ocupar um período de tempo curto também joga a favor, já que o jogador pode escolher focar em apenas uma única ação durante os 47 minutos disponíveis, avançando na campanha por etapas e cumprindo as missões, no próprio ritmo.

Nota-se que as várias alternativas referentes às personalidades — muitas vezes contrastantes — definidas logo no começo do título só colaboram para trazer variabilidade para a história e ainda ajudam a mostrar que o ser humano não é uma entidade unidimensional, uma vez que há situações, momentos e impressões que vão condicional qual desses atributos vai ser mais necessário, condizente ou útil para ser o dominante na hora de pautar uma reação.




Isso também se aplica a certas variações de status, como é o caso da sede ou de um fim de sessão positivo com o terapeuta, que pode direcionar os atributos para certos espectros mais radicais e facilitar ou dificultar certas ações e reações por parte do protagonista. Com o progresso, algumas ações são executadas com mais facilidade, como é o caso do check-in no hotel, o que, adicionalmente, acaba otimizando o tempo do próprio jogador na hora de seguir na campanha.

O loop temporal, por si só, é mais um que oferece um leque considerável de possibilidades, já que são vários acontecimentos em paralelo, sendo que cabe ao jogador escolher qual deles é necessário acompanhar em certos momentos. O começo é realmente um pouco entediante porque Harrow ainda passa por esse processo de assimilação do fenômeno em questão, porém quando essa barreira é superada, chega a ser surpreendente o novo mundo que se abre para explorar.




Em contrapartida, há algumas situações de tédio, justamente por cansar pela repetição. Em trechos sem muitas pistas a respeito de por onde prosseguir, Rue Valley acaba se tornando chato e os 47 minutos parecem durar muito mais do que provavelmente deveriam, mesmo com alguns recursos para acelerar a passagem do tempo até instantes específicos e determinados pelo jogador.

Essa função, inclusive, é um pouco frustrante porque quando ela é utilizada, normalmente é através de uma série de opções pré-estabelecidas de acontecimentos já marcados, como a queda do raio ou o aparecimento de um hóspede inconformado pela ausência de sinal de internet no motel. Nesse aspecto, o jogador bem que poderia contar logo de cara com um controle manual, interrompendo quando for mais útil ou prático, em vez de deixar no automático.




Essa chateação também ocorre nas sequências de transição entre os mapas exploráveis, quando o personagem precisa pegar o carro entre eles. Considerando o vai e vem recorrente da estrutura do jogo, elas poderiam ser mais ágeis a fim de poupar o nosso tempo real de ficar observando sempre as mesmas sequências.

A impressão, inclusive, é que há uma necessidade prática de consumir o nosso tempo (fora do game), uma vez que vários dos quebra-cabeças dão voltas na resolução. Alguns deles aparentam ser óbvios a nível lógico e com o nosso conhecimento externo de jogador-observador, mas incomoda um pouco quando é necessário um caminho longo para solucioná-los e conosco sabendo que o que está sendo procurado está disponível, por exemplo, na pilha de documentos da despensa dos fundos da administração do motel.  




A principal falha de Rue Valley, então, acaba correspondendo, de forma irônica, a essa relação que o jogo estabelece entre o tempo interno de gameplay e o tempo externo do próprio jogador. Nesse aspecto, o conflito de Eugene Harrow é o mesmo que o nosso. Assim como ele fica entediado e sem vontade de prosseguir com a própria vida em determinados momentos, nós também somos sucumbidos por essa ausência de ímpeto de continuar a jogar com ele.

Por outro lado, existem situações em que todos os enigmas parecem ir se solucionando sozinhos, no embalo, e nós, fora da tela, também perdemos a nossa noção do tempo de um jeito positivo, com um loop levando a outro, rendendo horas a fio em ações que acarretam em um avanço visível na trama geral do jogo.



Entre o breu e o neon

Um dos principais charmes de Rue Valley acaba sendo a própria apresentação geral do produto. O visual de história em quadrinhos funciona com uma dinamicidade muito agradável e vale o destaque para a forma com que eles lidaram com a iluminação natural dos ambientes externos, considerando que ainda está quase de dia às 8 da noite e presenciamos a noite chuvosa tomando conta ao longo dos 47 minutos de loop.

Certos momentos bastante específicos também impressionam quando os presenciamos pela primeira vez, como o acendimento das luzes neon do posto de gasolina, o raio atingindo seu alvo ou até mesmo a explosão que consome o personagem principal e serve de arauto para o começo de um novo ciclo.




O aspecto sonoro também colabora na imersão, com um atuações de voz bem acima da média para o que se espera da indústria de jogos — sem aquela impressão canastrona recorrente — e combinam muito bem com as músicas que assumem um tom que colaboram com perfeição na construção atmosférica. Às vezes, essa abordagem de trilha ambiente é um tiro no pé porque o resultado fica insosso, mas aqui é sentida a influência prática na hora de ditar o humor de cada sequência.

Ainda nessa perspectiva mais técnica, há algumas colocações que precisam ser feitas. A primeira delas é a forma como a interface padrão é muito pequena para a tela, embora isso possa ser ajustado no menu de configurações, então é um problema menor e rapidamente solucionável, embora gere uma primeira impressão negativa.




Outra questão diz respeito à movimentação de Harrow, uma vez que ele anda e corre normalmente, no entanto, em um sistema de cliques que é um pouco incômodo, além de obrigar o personagem a estar em posições específicas para poder interagir com determinados elementos do cenário, por mais que isso ocorra de forma automática. No geral, seria mais interessante se pudéssemos controlá-lo com o analógico (no caso do controle) ou com as setas do teclado, em um modo manual.

Por fim, houve algumas ocorrências de soft lock na transição de certos mapas, que falham em carregar, com o protagonista ficando preso em um ambiente completamente escuro. Por sorte, basta esperar o tempo passar até chegarmos no fim do loop e começarmos um novo ciclo.



Os 47 minutos mais longos (ou curtos) da sua vida

Rue Valley, no geral, acaba sendo uma aventura bem interessante pela sua proposta e faz um trabalho bom ao conseguir subverter e combinar suas várias fontes de referência, como o Disco Elysium e o Feitiço do Tempo. Enquanto as linhas gerais das múltiplas tramas sejam envolventes e as possibilidades oferecidas pela estrutura de atributos inerente ao protagonista contribuam para a diversidade da narrativa, o título, por vezes, acaba assumindo um tom cansativo e pouco estimulante. Ainda assim, embora derivativo, é um produto bastante sólido e parece feito sob medida para quem pensa constantemente nos próprios erros e se imagina tendo uma nova oportunidade para corrigi-los.

Tendo isso em vista, o jogo funciona quase como um pequeno experimento sobre a percepção do tempo e do arrependimento cujo ritmo inconstante é responsável por tanto prolongar quanto encurtar a noção geral da jornada. No fim das contas, é igual àquele ditado falsamente atribuído a Albert Einstein sobre a relatividade do tempo: “uma hora ao lado de uma mulher atraente vai parecer um minuto, mas um minuto com a mão no fogo vai parecer uma hora". Em Rue Valley, a passagem do tempo será igualmente relativa, seja pelas as horas que (não) passam, seja pelas escolhas que (não) pesam.

Prós

  • Proposta de reviver o mesmo período indefinidamente bem-traduzida a nível mecânico;
  • Personagens cujas escritas multidimensionais conseguem desenvolver de maneira competente uma trama fragmentada e interessante;
  • Durante o processo de aprendizado, chega a ser impressionante a quantidade de possibilidades a serem acompanhadas durante os 47 minutos;
  • Diversidade dos atributos, determinados logo na introdução, trazem variabilidade a cada nova campanha.

Contras

  • Há situações em que a repetição se torna exaustiva e o progresso inconstante;
  • Sistema de avanço automático do tempo poderia ser mais versátil;
  • Às vezes, movimentar Harrow é bastante chatinho;
  • Telas de transição e de carregamento recorrentes e incômodas;
  • Pontuais bugs e soft locks que atrapalham a imersão geral.
Rue Valley — PC/PS5/XSX/Switch — Nota: 7.0
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Thomaz Farias
Análise produzida com cópia digital cedida pela Owlcat Games
OpenCritic
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João Pedro Boaventura
É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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