Análise: Silent Hill f — medo e delírio em Ebisugaoka

Novo título da série mistura beleza e podridão em um retorno intenso ao terror psicológico, ainda que limitado por puzzles irregulares e linearidade.

em 12/10/2025


Os anos 1960 têm uma constituição consideravelmente sólida no imaginário popular. Foi a década da euforia dos Beatles, da polarização da Guerra do Vietnã e do movimento hippie, da paranoia da Guerra Fria e da corrida espacial. Em um mundo que ainda não era conectado pela internet, essa percepção, entretanto, condiz com uma realidade pautada pela cultura popular das grandes metrópoles e centros urbanos, sem necessariamente se lembrar do quão isoladas as comunidades interioranas eram no mundo todo, seja nos Estados Unidos, seja no próprio Brasil, seja no Japão. O vilarejo fictício de Ebisugaoka, um desses assentamentos rurais e de difícil acesso, é o palco de Silent Hill f.


A história de Hinako começa com a garota fugindo de casa após uma briga feia com seu pai alcoólatra e mãe conivente. Descendo a colina, ela se encontra com seus amigos, quando uma misteriosa névoa surge e uma camada floral carmesim toma conta da geografia do povoado. A partir daí, a tensão toma conta e a jovem precisa, primeiramente, sobreviver. Para tal, é necessário enfrentar todos os perigos e medos que permeiam cada esquina, cada caminho oculto pela neblina, enquanto tenta entender o que realmente está acontecendo com ela.




Além dos perigos palpáveis, o novo título da franquia ainda consegue se estabelecer como um verdadeiro Silent Hill, mantendo um alto nível narrativo que se utiliza do horror como alegorias para uma infinidade de problemas que envolvem a psique humana. No caso de Hinako, criada em um lar abusivo e retrógrado, um tema recorrente é o da sua própria feminilidade, dos papéis tradicionais de gênero, e dos padrões de beleza impostos pela sociedade sobre ela, sempre à sombra da irmã, conhecida como um exemplo de sucesso em relação a todas essas expectativas.

O roteiro, assinado por Ryukishi07, mergulha fundo nas raízes culturais e históricas do Japão referentes a essas questões, especialmente por conta de um direcionamento da própria Konami ao tentar abandonar o imaginário americano dos jogos anteriores a fim de trazer a série para casa, por assim dizer. A despeito desse deslocamento geográfico, a excelente execução temática não torna Silent Hill f menos Silent Hill.




Afinal, o primeiro e o segundo títulos da série, por exemplo, já são bem distintos entre si, com o primeiro abordando os mistérios ao redor de um culto, enquanto o segundo foca na psique de um homem perturbado atrás de sua esposa. São iterações com abordagens e estilo de horror diferentes. Contudo, os jogos se conectam não pela mitologia, mas por utilizarem a força psicológica dos personagens como fio condutor, algo que com certeza é um elemento chave para a evolução de Hinako como protagonista. Além disso, para todos os efeitos Ebisugaoka se situa em uma colina e é um local silencioso — a grosso modo, então, pelo menos ao nome faz jus.

Essa última colocação pode parecer apenas um deboche, um malabarismo argumentativo, porém não é. A exploração pelo vilarejo — mesmo que ela se mostre relativamente linear em alguns momentos — e o descobrimento de seus segredos através de pistas meticulosamente escondidas fazem com que o próprio povoado também se torne uma espécie de personagem, sendo que o jogador é constantemente lembrado disso.




É possível assimilar a decadência da aldeia — que, um dia, foi um prolífico centro de mineração — a cada esquina, a cada cerca destruída, a cada beco escuro, a cada arrozal. Através de anotações esquecidas, fica cada vez mais evidente o apego que o local tem com as tradições e com um passado distante que não condiz mais com a atual situação de Ebisugaoka. O mundo alternativo, um elemento tão característico da IP, se dá através da beleza, do sucesso, sobre uma paisagem melancólica e abandonada.

Apesar de uma paisagem rural aparentemente infértil, é nela que a narrativa semiótica do jogo consegue florescer — a começar pela própria linguagem simbólica das flores. Originada na Inglaterra vitoriana, a floriografia foi uma forma de comunicação em que o arranjo de buquês eram usados para enviar mensagens em código. Os japoneses, por sua vez, abraçaram a ideia e ela se consolidou na cultura popular oriental local.




De uma forma mais objetiva, uma das principais flores que tomaram conta das ruelas de Ebisugaoka foi o Lírio-da-aranha-vermelha, uma flor importada da China e comumente plantada justamente ao redor dos arrozais. Nota-se que, embora se trate de uma flor de aparência visualmente agradável, ela também é venenosa, já que servia para afastar as pragas da plantação. A partir dessa ideia, ela também tinha um papel simbólico no budismo, uma vez que era plantada nos cemitérios como um lembrete do memento mori (um conceito que pode ser resumido ao “lembre-se de que és mortal”), simbolizando a passagem para o além.

Esse tipo de símbolo  — especialmente os derivados dos preceitos budistas — também é presente por todo o jogo. Além dos quebra-cabeças práticos, a nível de jogabilidade, a própria história é uma espécie de quebra-cabeça, sendo que rejogá-la em NG+ é essencial para a completa decodificação da trama e seus significados.



Paredes invisíveis, um clássico da década 1960

Por se tratar de um título tão dependente dos sentidos da visão e da audição para criar uma atmosfera e transmitir sua mensagem com precisão, Silent Hill f fez um excelente trabalho a nível técnico, seja na questão sonora, seja na composição gráfica, cheia de detalhes. 

Ebisugaoka parece mesmo um vilarejo de verdade e, apesar de 2025 contar com recriações impressionantes do Japão antigo, mesmo que não se situem na mesma época, como Assassin’s Creed Shadows e Ghost of Yōtei, o trabalho do NeoBards Entertainment se destaca por trazer um ambiente plenamente transitável e impressionante que nos faz recolher em nossa plena mediocridade como uma protagonista comum, sem as habilidades sobre-humanas de um Assassino ou Rounin, dos jogos citados.




Mais do que isso, é impressionante como o título consegue fazer uso do contraste de cores vivas para acentuar a para acentuar a podridão da cidade. É estranho dizer, mas a beleza do jogo reside não na beleza proposital, no cobertor florido que assola o local, como também em cada detalhe realista e imersivo da podre Ebisugaoka do mundo comum. O estilo estético traz consigo muita substância à mensagem — não é e nunca foi um elemento excludente, como o jargão popular insiste em pregar.

Isso se estende ao design das criaturas enfrentadas ao longo da campanha, com qualidades e representações dos ambientes em que elas se encontram. Muitos deles aparentam estar sendo consumidos pela beleza das flores — e um pouco mais de atenção mostra que a disposição dessa flora rubra também se dispõe como se fosse sangue escorrendo pelo corpo dessas monstruosidades.




Outro aspecto impecável é o design de áudio. Tanto em relação à trilha sonora — que conta não só com o retorno do Akira Yamaoka, como também com a inclusão de Kensuke Inage a fim de trazer um toque mais tradicional e folclórico às músicas devida à sua experiência em Samurai Shodown e na série Warriors — quanto à questão do som emitido pela cidade e pelas criaturas. Com o estéreo ambiente e jogando com fones, era bem fácil seguir o barulho dos inimigos até encontrá-los na direção certa.

Aliás, é impressionante como um jogo na Unreal 5, no PC, conseguiu se mostrar bem otimizado. Jogando em modo performance, foram raríssimas as situações em que o desempenho ficou aquém do aceitável, com poucas quedas da taxa de quadros em uma máquina que nem é tão potente assim — rodou bem com uma GTX 1650 e 16 GB de RAM.




Talvez, o único revés da exploração por Ebisugaoka é o fato de que alguns caminhos se mostram muito lineares ou obrigatórios. Certas paredes invisíveis incomodam um pouco, especialmente quando Hinako vaga por campos abertos, como as plantações, mas tem que se ater aos trajetos pré-determinados em vez de cortá-los. Não é possível que, diante de tudo o que a garota está passando, uma meia molhada por ter que passar sobre um arrozal seja um problema.

Bater (obrigatório) ou correr (não disponível) em Ebisugaoka

Um dos maiores questionamentos desde o período promocional de Silent Hill f reside no combate alegadamente truncado do título, que prefere se ater em um estilo totalmente voltado para o corpo a corpo.

O sistema se baseia em três medidores básicos: vida, sanidade e fôlego. O primeiro tem a ver com o dano físico que Hinako pode sofrer dos oponentes, enquanto o segundo corresponde à sanidade da garota, que vai se exaurindo caso ela passe muito tempo encarando os inimigos diretamente, sendo psicologicamente consumida pela influência dessas entidades.




O medidor de fôlego, por sua vez, é uma forma de manter Hinako uma personagem humana e vulnerável, já que ele vai sendo utilizado de acordo com os movimentos da protagonista, como ataques fracos, fortes, defesa e esquiva. Nota-se que esses atributos podem ser aprimorados com oferendas aos pequenos santuários espalhados pela cidade e que também servem como pontos de save e oferecem berloques que, quando equipados, são capazes de trazer algumas habilidades especiais para a garota (como deixá-la menos perceptível aos inimigos vagando pelas ruas, por exemplo).

Assim, como é estritamente necessário regular esses três valores — zerar a sanidade faz com que a vida da moça seja consumida pouco a pouco —, a ideia é encontrar a sinergia entre o instinto de atacar e o de evitar a confrontação física e direta. Na prática, entretanto, o jogo parece querer outra coisa, contudo, já que existem mais combates obrigatórios, ou, pelo menos, quase inescapáveis, que meio que acabam exigindo o enfrentamento direto ao longo do caminho, sem equilibrar as opções.




Apesar disso, embora o sistema de combate tenha como proposta conceitual ser truncado a fim de representar a vulnerabilidade humana da moça diante de uma ameaça de teor sobrenatural, ele passa a ser bastante prático uma vez que acostumado. Ele encontra um meio termo dentro da jogabilidade dos jogos clássicos da série sem se deixar influenciar pela movimentação fluida à base de esteroides do remake de Silent Hill 2.

Há um bom trabalho aqui na proposta de criar um sistema que não fosse tão confortável sem que ele parecesse frustrante. Nisso, Silent Hill f consegue o básico para qualquer jogo de terror: é necessário capar as habilidades do protagonista a fim de fortalecer o sentimento de impotência e apreensão diante do perigo, com opções limitadas.




Aliás, isso sempre se aplicou aos outros títulos da série também, além de outras IPs de terror, como Fatal Frame ou mesmo Resident Evil, em certa extensão. Não existe motivo para apontar o dedo para qualquer problema aqui. No instante em que o combate em um jogo de terror se torna apenas divertido, ele deixa de pertencer ao gênero para se tornar ação ou qualquer outra besteira.

O problema maior termina por na falta de variedade de oponentes, o que torna a experiência geral da campanha um pouco repetitiva nesse aspecto. Para complementar, esse sentimento de falta de variedade acaba sendo reforçado nas jogatinas de New Game+ subsequentes e necessárias para o entendimento pleno da história do jogo.


Outro revés que poderia ter recebido um pouco mais de atenção vem do fato de que certos prompts de ação não aparecem apropriadamente, em que se faz necessário ajustar a câmera e o posicionamento de Hinako a fim de fazê-los pipocar na tela da maneira correta. Essa é uma das poucas faltas de acabamento persistentes em Silent Hill f, mostrando-se mais incômodas durante certos puzzles que precisam ser resolvidos sob alguma pressão externa que pode render um game over.

Nota-se que esses quebra-cabeças podem ser bem chatinhos de se lidar. Embora a dificuldade alterne entre alguns exercícios básicos de lógica e aqueles cuja resolução só pode ser alcançada através de clarividência — ou melhor, tentativa e erro — o formato geral deles é um pouco repetitivo, mesmo dentro de uma única dificuldade.




No caso, há tanto o modo história, com as respostas sendo praticamente dadas de bandeja para o jogador através do diário de Hinako, que serve de guia geral para a trama, quanto os modos difícil e “perdido na neblina”, que correspondem à experiência padrão e a mais complicada, desbloqueada apenas para trazer um sabor a mais para o NG+.

Embora os formatos desses puzzles sejam meio repetitivos, a forma como eles incorporam os significados dos elementos gerais da cultura japonesa é o que faz com que eles se destaquem de uma forma mais ampla dentro do gênero. Para os que não têm noção alguma desses símbolos, é uma verdadeira aula cultural que consegue ir além de uma experiência lógica de jogo de terror. Para complementar, há vários enigmas espalhados por Ebisugaoka de forma opcional, mas que ainda assim colaboram para trazer ainda mais entendimento em relação ao mistério que paira sobre o vilarejo.



F de Formidável

Silent Hill f é um título autêntico dentro da marca à qual pertence, que não contava com um jogo original completo e de grande porte desde Downpour, de 2012. Abandonando a ambientação Ocidental, o jogo decide abraçar a tradição do horror japonês em sua essência, tentando resgatar o que Silent Hill, como IP, realmente oferece de diferente em relação a outras do gênero. O combate pode parecer um pouco limitado no começo e falta consistência no design dos quebra-cabeças, mas a nova abordagem temática e o sucesso inquestionável na concepção de uma Ebisugaoka imersiva e estranhamente convidativa no que diz respeito à exploração foram o chacoalhão necessário para uma fórmula claramente estagnada. Afinal, a série passou tanto tempo em latência na geladeira da Konami por algum motivo.
 

Prós

  • Narrativa fragmentada e com várias camadas simbólicas que consegue captar a atenção do jogador;
  • Combate soube criar um sistema que conseguiu ser limitado e prático sem que deixasse a experiência geral fluida ao ponto de mitigar o desafio ou complicada ao ponto do frustrante;
  • Recriação impressionante de um vilarejo decadente do Japão feudal;
  • Design de som que consegue fazer um trabalho exemplar tanto na trilha sonora quanto nos sons ambientes, crucial para a exploração;
  • Otimização competente no PC, especialmente pela quantidade de detalhes visuais que normalmente fariam a aplicação demandar um processamento exagerado da máquina.

Contras

  • Inconstância na qualidade geral dos quebra-cabeças;
  • Paredes invisíveis e caminhos lineares impedem uma exploração mais livre de Ebisugaoka;
  • O prompt de ação parece pouco calibrado e nem sempre aparece com facilidade na tela;
  • Pouca diversidade geral nos oponentes, além do desequilíbrio de situações em que o enfrentamento direto é mais vantajoso do que uma fuga furtiva;
  • A falta de variedade para o New Game+ entra em conflito com a sua obrigatoriedade para a compreensão total da narrativa.
Silent Hill f — PC/PS5/XSX — Nota: 8.5
Versão utilizada para análise: PC

Revisão: Thomaz Farias
Análise produzida com cópia digital adquirida pelo redator
OpenCritic
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João Pedro Boaventura
É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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