FANTASY LIFE i: The Girl Who Steals Time, que sucede o amado RPG do Nintendo 3DS Fantasy Life, tenta encaixar a franquia na definição ao se dividir em três segmentos: um JRPG engraçadinho à la Rune Factory, um mundo aberto nos moldes de The Legend of Zelda: Breath of the Wild e um “Animal Crossing-like” completamente chupinhado de New Horizons. O resultado é uma mistureba sem imaginação que, apesar de ser bonitinha, constantemente frustra e faz pensar “por que não estou jogando essas outras coisas que isso aqui quer tanto ser?”.
É fantasia, mas ainda tem de trabalhar
A princípio, FANTASY LIFE i apresenta uma estrutura parecida com a de seu antecessor. Após o que pode ser descrito como um acidente de trabalho, o personagem principal (plenamente customizável e com ótimas opções, incluindo de gênero “cavalheiresco”, “donzelesco” ou “misterioso”) vai parar na terra monárquica de Mysteria, um lugar onde quem não tem emprego vira bicho. Somos obrigados pelo rei em pessoa a escolher uma de 12 “Vidas”, ou classes de JRPG; ao progredirmos na história, desbloqueamos duas inéditas na franquia, Fazendeiro e Artista.
As Vidas compõem o coração da gameplay: o jogo nos encoraja a escolher todas de uma vez para que possamos ser autossuficientes, mas também é válido deixar outros personagens fazerem o trabalho se possível. Elas são divididas em três categorias: combate (Paladino, Mercenário, Caçador, Mago), coleta (Minerador, Madeireiro, Pescador, Fazendeiro) e criação (Cozinheiro, Ferreiro, Carpinteiro, Costureiro, Alquimista, Artista).Até aí, tudo bem. Puxa, quanta variedade de escolha! O problema é que quase nada as diferencia: as seis Vidas de criação são praticamente a mesma coisa, por exemplo, todas dependentes do mesmo minigame repetitivo de esmagar botões (que fica mais fácil com o tempo, mas tem uma pequena curva de dificuldade que frustrará novatos).
Já as Vidas de combate e coleta dependem de um único elemento central: fazer o número grande virar pequeno o mais rápido possível. A gameplay é sempre o mesmo trabalho tedioso, sem qualquer novidade além do fato de que, agora, estamos cortando uma árvore de cor diferente que se transformará em armas que dão números maiores de dano. Grande coisa (pelo menos alguns pequenos ajustes fazem o processo todo ser um nadinha menos monótono). Os estilos de combate seriam supostamente variados, porém não existe uma diferença muito significativa entre eles na prática.
“Ah, mas pode ser que a história salve!”, você pode estar pensando. De fato, o diálogo de FANTASY LIFE i é muito bem escrito e bem localizado para o inglês, mantendo a mesma leveza e piadinhas que fizeram do original um clássico cult. Infelizmente, é por aí que as partes boas ficam: a narrativa é insuportavelmente clichê, e ser consciente disso não faz dela magicamente boa.Isso se faz especialmente hediondo quando o loop central da história vira “seus amigos vão explorar as profundezas -> a vilã local aprisiona o mentor de algum jeito novo maluco -> temos de voltar ao passado para encontrar alguém capaz de solucionar o problema -> prosseguimos mais um tanto até o ciclo recomeçar”. Pode rir o quanto quiser do enredo batido, senhor jogo, ele ainda segue sendo batido e você ainda está me obrigando a passar por ele!
O conteúdo opcional dentro deste modo também não é muito melhor. Posso contar nos dedos quantas sidequests trouxeram foco a personagens em vez de serem só “colete 10 trocinhos” ou “mate 5 monstros” (foram só duas). A valorização que o título faz de quantidade acima de qualidade afoga qualquer outro princípio de design. É um jogo focado em te dar coisas para fazer — logo, é natural que também tente se inserir no gênero mais famoso por essa tendência.
Caramba, tem até Korok fake!
As seções de mundo aberto se passam na terra de Ginormosia, que tira o nome de seu tamanho gigante. É aqui que a LEVEL-5 mais ostenta o belo estilo gráfico de FANTASY LIFE i, combinando as diversas paisagens de Mysteria em um único grande cenário.
Treinado na escola Breath of the Wild de mundos abertos, o problema é aquele mesmo que assola vários títulos do tipo: o que mais tem aqui é nada. Cada região tem uma torre, um acampamento que dá três missões supérfluas em troca de um certo item especial, um punhado de templos chamados de “cocôs brilhantes” (não estou brincando), uma pancada de bichinhos da floresta para encontrar, alguns tesouros espalhados e os mesmos recursos que podem ser encontrados no resto de Mysteria.Isso não significa que Ginormosia não tenha as próprias exclusividades — existem, sim, motivos para querer passar tempo por aqui, mesmo que a campanha principal não o estimule muito —, mas a esmagadora maioria do território é vazia. O que não ajuda é o sistema de níveis por área: os jogadores são encorajados a chegar até pelo menos o nível 3 para desbloquear certas coisas que o valham (quando digo “encorajados”, quero dizer “talvez você ouça isso de um amigo, porque o jogo não vai contar nada”), o que significa passar horas coletando recursos de baixo nível em áreas que não têm o que oferecer a quem precisa do material X para melhorar as armas.
A estrela do modo é a possibilidade de multijogador, mas não fui capaz de analisá-lo, pois ele depende de serviços pagos de jogatina online em consoles, e a única conta que assina PS Plus por aqui não é a minha. É possível que a experiência seja melhor com amigos que possam aplacar o vácuo existencial e fazer piadinhas pelo chat de voz, porém ainda acredito que há maneiras melhores de se reunir.
Pelo menos aqui não tem dívida pra pagar…
Por fim, a última peça do quebra-cabeça é um simulador de vida que só pode ser descrito como “Animal Crossing: New Horizons da Shopee”. Normalmente é má prática comparar jogos de maneira tão direta (e especialmente com tanta frequência quanto o faço nesta análise), mas não estou nem brincando quando digo que é a mesma coisa, só que pior.
Depois de alguns acontecimentos, decidimos colonizar a versão presente de Mysteria (lá no começo do jogo, tivemos a oportunidade de nomear essa “ilha desconhecida”; o nome só é usado no modo multijogador desta parte), transformando-a na nossa própria comunidade. Recrute moradores, construa casinhas, expanda a sua própria, decore o ambiente, terraforme como quiser… parece familiar? Diferentemente de sua maior inspiração (ou até mesmo da paródia que a série Yakuza fez), contudo, o que falta ao modo é o sentido de construção de um núcleo de amigos.
A maior parte desse problema diz respeito aos NPCs que habitam a ilha. Estes são encontrados pelo mundo afora na forma de “Strangelings”, pessoas transformadas em objetos, e correspondem a personagens já existentes na série Fantasy Life. O jogo nos encoraja a ir atrás de, pelo menos, 20 para limpar a ilha por completo, mas o máximo de casas disponíveis é de míseras seis. Isso mesmo: a maioria dos seus “parças” vai ser obrigado a viver sem um teto, vagando a região sem rumo, coisa que nem o Tom Nook no seu dia mais capitalista forçaria os habitantes de sua ilha a fazer.O descaso com esse modo é tanto que até a progressão é jogada para escanteio. Certos Strangelings precisam ser destransformados para que o enredo possa seguir; contudo, em dado ponto da história, me vi sem moedas específicas suficientes para tanto. Pensei “OK, vou progredir o nível da ilha, isso sempre dá dinheiro”... só para descobrir que o jogo simplesmente para de distribuir as moedas após um certo nível, que eu acabara de passar. Para piorar, o personagem de apoio ainda sugeriu fazer exatamente o que eu tinha feito para conseguir a grana que não consigo mais receber desse jeito, por motivo nenhum! Qual é?!
O que também não ajuda é a abjeta falta de personalidade dos benditos bonequinhos. Se você é do time que odeia o diálogo repetido de New Horizons, FANTASY LIFE i vai te fazer enlouquecer. Os NPCs da ilhazinha são personagens com as próprias classes; logo, o jogo encoraja uma pequena party a ser formada, até porque eles dividem a carga de trabalho com você. Apenas um pequenino problema: eles nunca calam a boca, são completamente unidimensionais e adoram dizer as mesmas frases engessadas várias vezes. Em sequência.
Laura, minha amiguinha, eu estou CORTANDO UMA ÁRVORE! O que exatamente te anima aqui?!
É nessa insanidade de ter de ouvir as mesmas falas dos personagens de um modo descartável e pouco considerado enquanto faço as mesmas atividades insossas dezenas de vezes em sequência que eu penso: qual o sentido de eu sequer estar aqui? O que estou agregando à minha vida quando eu escolho investir meu tempo em pegar um peixe para uma quest que vai me pedir outro peixe assim que eu terminar? Eu poderia estar lavando a louça, levando o cachorro para passear, vendo tinta secar na parede…
Já comparei FANTASY LIFE i a muitas coisas nesta análise, mas agora é minha última vez: esse jogo é um bolo branco decorado com pasta americana. Quanto mais tempo passamos engajando com ele, mais a fantasia, cores e designs bonitinhos dão lugar a um aterrador sentimento de vazio. É o tipo covarde de cozy game, aquele que acha que o apelo do gênero é escapismo puro sem nada mais a dizer sobre quem vai atrás dele. É uma empreitada desossada com retrogosto de plástico e um manifesto de meia página em branco. No ano de lançamento de Wanderstop e Promise Mascot Agency, isso aqui devia ter vergonha de sequer se chamar de cozy.
Me devolva o tempo que você roubou, menina!
FANTASY LIFE i: The Girl Who Steals Time é uma ideia cínica sobre o que faz do cozy game tão popular, tão focado no apelo visual que se esquece de oferecer qualquer coisa que faça valer a pena querer passar tempo com ele, em vez de ir atrás de qualquer um dos diversos títulos que copia porcamente. O velho clichê de “estilo acima de substância” nunca foi tão real: pode até ter uma aparência fofa e um punhado de boas sacadas, mas nada sacia o enorme buraco negro de diversão e propósito no cerne da experiência.Prós
- Boas opções de customização;
- Diálogo espirituoso e bem localizado;
- Diversas mecânicas de qualidade de vida;
- Estética charmosa.
Contras
- A maioria das Vidas são cópias umas das outras;
- Combate raso;
- Curva de progressão mal implementada;
- História desinteressante e clichê;
- Mundo aberto vazio e extremamente repetitivo;
- “Modo Animal Crossing” restrito e supérfluo;
- Personagens unidimensionais, que só falam as mesmas coisas;
- Sensação constante de que nada do que está sendo feito tem qualquer importância.
FANTASY LIFE i: The Girl Who Steals Time — PC/PS5/XSX/Switch — Nota: 2.0
Versão utilizada para análise: PS5
Revisão: Alessandra Ribeiro
Análise produzida com cópia digital cedida pela LEVEL-5