Análise: Enotria: The Last Song é uma viagem deslumbrante por uma magnífica Itália mítica

Mesmo defeituosa, a jornada se destaca pelo que há de melhor nela.

em 30/09/2024

Enotria é o nome que os gregos deram a regiões do sul da Itália e ao povo que vivia ali, mais de 2.500 anos atrás. Sabe-se pouco sobre eles, mas o significado da palavra, “terra do vinho”, remete aos muitos vinhedos que a região tem desde o passado remoto.

Canovaccio é um tipo de texto teatral italiano simplificado, que não é um roteiro propriamente dito, mas apenas as diretrizes gerais do enredo e dos personagens, servindo como ponto de partida para a peça nasça do improviso de seus atores.

Um povo mediterrâneo obscuramente antigo e uma performance teatral dinâmica. Esses dois conceitos formam as bases para o soulslike da desenvolvedora italiana Jyamma Games: Enotria: The Last Song.



Na versão que joguei para análise (1.04), a experiência é ambivalente. Gostei de diversos aspectos do jogo, diverti-me e apreciei o desafio equilibrado, mas ainda há muitos pequenos problemas que impedem o título de subir ao pódio dos melhores. Veremos primeiro o que é bom e, antes do fim, os defeitos que limitam a produção.

Abrem as cortinas

Em um mundo ensolarado, com aspecto de fins de uma Idade Média fantasiosa, a mística Canovaccio surgiu, transformando a realidade em um enorme palco que encena uma mesma peça sem fim. Cada pessoa usa uma máscara que define seu papel: soldados, jardineiros, lenhadores, nobres, gondoleiros e outros. Todos cumprem os propósitos determinados pelos Autores, em um ciclo estagnado que faz o próprio mundo definhar em sua loucura.



O único que pode desafiar essa realidade mórbida é o Desmascarado, um boneco de madeira sem rosto, aquele que ainda não tem um destino fechado e será uma ponta solta no Canovaccio, sendo capaz de usar qualquer máscara, desempenhar qualquer papel e dar um fim à peça.

A inspiração no folclore italiano está na música instrumental do jogo, no design das vestimentas e armas, nas assombrações que inspiraram o design de inimigos, nas máscaras que lembram o carnaval de Veneza e nos NPCs vindos diretamente do teatro popular, como Pulcinella (nosso criador e “guia” na jornada), Arlecchino, Capitão Spaventa, Zanni, entre outros.



O que realmente rouba a cena é a ambientação inspirada em uma versão mítica da Itália antiga, com paredes decoradas com afrescos rachados, vilarejos medievais, monastérios, templos de eras passadas e fortalezas, uma geografia sempre recortada por falésias, praias e pelo mar. Enotria é um lugar consistentemente lindo, magnífico e detalhado, criando com sucesso uma identidade visual e temática que lhe é muito própria e evita que se confunda com seus semelhantes.

A dublagem em italiano deixa o conjunto ainda mais imersivo, sendo uma delícia de ouvir. Para quem preferir, também há opção de vozes em inglês; a localização em português brasileiro se dá na parte escrita.



Entra o soulslike

Já a temática de um mundo que decai devido à sua sobrevida não-natural lembra o ciclo do fogo de Dark Souls. Não é apenas na construção de mundo que Enotria é fiel à sua inspiração na FromSoftware.

A base da gameplay segue a cartilha soulslike: lutas compassadas e táticas, tipos de ataques rápidos e pesados, itens de cura recarregáveis no descanso, perda de XP ao morrer, clímax em confrontos com chefões, muitas esquivas e aparadas.



Este último ponto segue uma linha diferente, empregando aparadas instantâneas no apertar do botão de defesa, como em Lies of P e Stellar Blade, descartando a tradição complicada de sincronizar a animação de defesa com o ataque do oponente. Prefiro esse formato de reação imediata porque torna a mecânica mais acessível sem deixar de exigir habilidade, incentivando a encarar os inimigos em vez de correr deles.

As animações e os efeitos sonoros lembram bastante o material da FromSoftware, então, à primeira vista, pode parecer um mero clone, mas não seria justo reduzir Enotria a isso. Ainda que a experiência desperte familiaridade nos veteranos dos souls, o jogo da Jyamma Games enfatiza sua própria identidade. Já expliquei acima a ambientação italiana, então agora é preciso dizer o que traz de novo à gameplay.

A principal novidade está no dinamismo dos Conjuntos, um sistema em que podemos montar três builds diferentes e alternar entre elas a qualquer momento em tempo real, sem precisar acessar menus. Além de enriquecer o aspecto tático das abordagens de luta, isso funciona como incentivo a experimentar os recursos do jogo, como as diferentes armas e ataques especiais equipáveis.



É bom tanto para quem gosta de variar quanto para aqueles que, como eu, se prendem a um único estilo de jogo do início ao fim, pois sempre temos mais duas alternativas prontinhas para verificar qual do trio é a melhor para determinado inimigo, evitando os custos de reconfigurar o personagem constantemente. Temos até árvores de habilidades para escolhermos modificações de personagens mais adequadas ao estilo pretendido.

Um ponto importante foi emprestado de RPGs mais voltados para a ação. São as Linhas de Máscaras, os tais ataques especiais que equipamos em botões específicos e recarregam à medida que atacamos. Elas conferem diferentes tipos de golpes, incluindo de longa distância, e cada uma tendo seu próprio parâmetro de recarga.

Por fim, Enotria dá sua própria versão das condições negativas clássicas de RPGs. A ideia é que há quatro elementos que têm vantagens e desvantagens entre si, no estilo pedra, papel e tesoura. Cada um deles pode infligir uma condição que tem efeito negativo e positivo. Isso torna uma simples punição em uma questão mais interessante de custo-benefício.



Por exemplo, o elemento Gratia é vulnerável a Mallano, que também causa o clássico efeito de envenenamento. Aqui, a condição se chama Doença e é contagiosa para quem está próximo do afetado. Tudo isso vale tanto para o protagonista quanto para os inimigos. A bem da verdade, esse sistema leva um tempo para aprender. Há até um auxílio visual permanente na tela para indicar a cadeia de vulnerabilidade entre os elementos.

Como Enotria é a terra do vinho, há um elemento dedicado a ele, Vis, que causa o efeito Tontura. A consequência positiva de ficar tonto é ter dano e recuperação de estamina aumentados, mas a negativa é a redução de todas as defesas. 

Assim, ainda que ostente inegável fidelidade à vertente soulslike, Enotria não pretende ser uma reprodução inerte ou vazia, buscando aplicar ideias e variações que contribuem com a diversidade de mecânicas do gênero.



Uma terra de abundância

As três regiões de Enotria são vastas e muito bem arquitetadas, progredindo em diferentes áreas conectadas. Elas dão voltas em si mesmas de uma forma muito coerente, desenvolvidas com uma continuidade que passa uma excelente noção de lugar. Algumas bifurcações levam a bons conteúdos opcionais, com direito a vários minichefes, então é bom explorar cada cantinho para descobrir tesouros, inimigos e alguns poucos NPCs.

Como pede a construção de mundo no estilo soulslike, aqui também temos histórias contadas por fragmentos encontrados ao longo da campanha, mas de forma mais organizada do que o comum no gênero. Cada novo texto funciona como um parágrafo adicionado ao Compêndio no menu em determinada ordem, como verbetes enciclopédicos que explicam as terras e os povos.

A viagem por Enotria é generosa em vários sentidos. Não quero dizer que seja um jogo fácil, mas sim que oferece muitas recompensas e é menos punitivo do que o que estou acostumado no gênero — vejo isso como uma coisa boa.

Já falei da aparada, que é muito responsiva e tem uma janela de reação que beira a leniência. É uma forma de garantir que essa mecânica central ao combate seja acessível. A cura é outro exemplo de generosidade ao oferecer muitos itens que reforçam o efeito e provêm formas alternativas de se restaurar.



Os pontos de experiência são abundantes, especialmente após chefões. Na primeira metade do jogo, foi comum que, ao derrotar um deles, eu conseguisse subir quatro, seis e até mesmo oito níveis de uma vez só, permitindo investir nos aspectos que eu desejava. O mesmo vale para os itens de aprimoramento de armas e ataques especiais, que recebemos em bom número, o que combina com a ideia de andarmos pelo jogo com três Conjuntos de armamentos equipados.

Falando em itens, tudo é recolhido automaticamente, sem necessidade de parar e apertar um botão para fazer isso. É algo muito simples, mas que eu apreciei de imediato ao começar a campanha.

Assim, percebi que Enotria equilibra desafio justo e sensação de poder, sem cair na armadilha de focar em inimigos que podem matar o protagonista em dois golpes, como em certos soulslikes recentes.

Deve dar para perceber que gostei muito do meu tempo com o game. Apesar das falhas do jogo, eu sempre queria continuar jogando um pouco mais — mas está na hora de falar das falhas.



Uma terra amaldiçoada

Uma miríade de pequenos problemas assola Enotria: The Last Song. Nenhum deles é grave o bastante para condenar o jogo, mas podem atrapalhar aspectos da experiência e incomodar. Felizmente, todos eles podem ser ajustados com atualizações, então espero que a Jyamma Games continue polindo o jogo. Vejamos uma lista deles.

Os menus de itens e melhorias de equipamentos têm navegação trabalhosa, com longas listas que não são suficientemente organizadas por tipos. Também não temos opção de guardar itens que não usamos para facilitar o gerenciamento de inventário e acabamos com certas armas inúteis repetidas.



As opções de combate a longa distância são poucas e todas são Linhas de Máscara. Ou seja: sem arco e flecha ou armas de arremesso que possam ser usadas a qualquer momento, o que diminui a versatilidade das abordagens de combate.

As músicas, quando surgem, são muito boas, mas geralmente só estão presentes em lutas contra chefes e minichefes. Considero esse uso restrito o desperdício de um poderoso recurso para enriquecer a já magnífica atmosfera de Enotria.



Apesar da grande maioria dos NPCs ter vozes interessantes, alguns poucos não foram dublados e destoam do restante. Essa ausência é mais significativa na narração de abertura.

Ocasionalmente, a inteligência artificial falha e um inimigo engajado em combate conosco simplesmente fica parado por um tempo. Ainda há um ou outro que se jogam de penhasco ao tentar atacar (não, não estou me referindo aos que fazem isso intencionalmente no começo).

Algumas legendas ficaram travadas em minha tela mesmo depois de me afastar do falante. Houve uma vez que a barra de vida do chefão desapareceu perto do fim, mas isso não me impediu de derrotá-lo.

Em alguns locais, a performance no PS5 é inconsistente, com quedas perceptíveis na taxa de quadros por segundo até mesmo no modo Performance. Os soluços foram raros, mas aconteceram.

Como eu já disse, os cenários são deslumbrantes e grandiosos, com um grande campo de visão, mas isso tem a contrapartida de renderizar parcialmente os locais mais distantes, criando um forte contraste com a definição dos modelos e texturas mais próximos, como você pode ver ao expandir a imagem abaixo e comparar os penhascos da esquerda com os da direita.




 

Quando eu já havia escrito esta lista de problemas, a Jyamma Games divulgou um cronograma de três atualizações que devem corrigir a maior parte do que mencionei até março de 2025. Ou seja: o jogo foi lançado antes de estar completamente pronto. Ainda que seja uma atitude de lançamento decepcionante, não anula a grande satisfação que tive em minhas quase 30 horas com Enotria: The Last Song, do começo ao fim.

Commedia dell’arte

Ainda que maculado por vários pequenos defeitos de ordem técnica e de design, Enotria: The Last Song consegue oferecer uma experiência empolgante por uma magnífica Itália mítica. Os grandes cenários de locais deslumbrantes são muito bem arquitetados e incentivam a exploração de cada cantinho, reforçada pelas bifurcações de caminhos e pelo equilíbrio de um estilo soulslike no qual a generosidade prevalece sobre a punição.



Prós

  • Ambientação deslumbrante em uma Itália mítica de raízes antigas e medievais, enriquecida pelo enredo baseado em teatro popular e máscaras;
  • Grandes cenários com muitas curvas para explorar;
  • A dublagem italiana dá ainda mais sabor à atmosfera;
  • Os sistemas de construção de personagem fogem aos lugares comuns dos soulslikes;
  • Combate dinâmico e de aparadas acessíveis, estimulando a encarar os inimigos de frente em duelos agressivos;
  • Os chefes são equilibrados e muitos deles rendem duelos empolgantes;
  • A abundância de pontos de experiência em batalhas contra chefes e de itens de melhorias de armas incentiva o progresso e a experimentação dos recursos disponíveis;
  • Textos em português brasileiro.

Contras

  • A mecânica de elementos é interessante, mas pode confundir mais que ajudar;
  • Falta clareza para alguns parâmetros de personagens, efeitos de armas e Linhas de Máscara;
  • O inventário precisa de mais opções para otimizar o gerenciamento;
  • Panes técnicas em legendas que não desaparecem e, ocasionalmente, na inteligência artificial dos inimigos;
  • Na versão de PS5, algumas áreas apresentam performance inconstante;
  • Quando vistos a grandes distâncias, os cenários e texturas apresentam definição muito baixa;
  • A obtenção de várias máscaras exige derrotar inimigos específicos repetidamente.
Enotria: The Last Song — PC/PS5/XSX — Nota: 8.0
Versão utilizada para análise: PS5

Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela Jyamma Games

Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
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