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Análise: Gargoyles Remastered (Multi) deveria seguir no esquecimento como as próprias gárgulas amaldiçoadas

Título baseado no desenho cult dos anos 90 já era fraco na época e não há tratamento de relançamento que remedie isso.

em 20/05/2024


Produzida pela Disney nos anos 90, Gárgulas conta a história de um clã de criaturas guerreiras poderosas durante a noite, mas com o revés de se tornarem pedra sob a luz do sol. Trazendo uma atmosfera soturna e dramática, a animação foi uma resposta da empresa à crescente popularidade de Batman: The Animated Series, que se destacou à época por conta de seu tom sombrio pouco tradicional para um desenho animado voltado ao público infantil.

Com o sucesso da marca, cuja premissa foi elogiada por trazer uma trama com nuances shakespearianas, não demorou muito para que produtos licenciados fossem produzidos no intuito de ganhar uns trocados. Assim surge o jogo desenvolvido originalmente para Mega Drive e que, quase trinta anos depois, foi relançado como Gargoyles Remastered.



Controles duros como a rocha de uma estátua

O enredo básico do desenho envolve o grupo de criaturas que foi amaldiçoado a um sono profundo até que o antigo castelo que elas protegiam fosse erguido a uma altura acima do céu. Mil anos depois, isso é providenciado por um ricaço, que reconstrói a fortaleza no topo de um arranha-céu em Manhattan, o que pauta a ambientação urbana da narrativa e ajuda até a criar o contraste narrativo entre o mundo antigo que as Gárgulas conheceram e este novo ao qual elas precisam se adaptar.

O jogo, por sua vez, acaba fazendo modificações consideráveis na premissa, uma vez que aqui a trama é pautada pela existência de um artefato antigo chamado Olho de Odin, capaz de transformar e corromper seus portadores. Demona, uma das antagonistas do desenho e ex-parceira de Golias, o personagem principal, se torna uma das vítimas do talismã, e é daí que a história parte, ignorando completamente todos os elementos da mitologia construída na série corrente, incluindo o elenco secundário.




É claro que, naquela época, era comum as narrativas serem ultrassimplificações apenas para trazer um pretexto de existência para a progressão das fases temáticas que compõem a campanha, mas convenhamos que não precisavam ter chutado tanto o balde aqui, uma vez que a exposição se resume a um conjunto de artes estáticas entre um nível e outro com o mínimo de texto expositivo possível — algo que nem sempre é ruim, mas aqui acaba por evidenciar a precariedade da produção.

Apesar disso, esse tipo de problema narrativo normalmente fica em segundo plano se a jogabilidade funciona. É o caso aqui? Bom, não. No controle de Golias, o jogador precisa seguir pelos estágios em um estilo bem tradicional de jogo de plataforma; o problema é que a física é sofrível, a começar pela carência de feedback nos golpes aplicados e aparente falta de conexão entre os movimentos no combo de ataque básico, o que faz com que a detecção dos acertos se dê de forma imprevisível.




Além disso, cada investida aplicada não tem impacto algum, faltando peso na animação, e geralmente se mescla com os danos sofridos pelo próprio Golias. Além do botão de ataque, existe outro que faz com que os oponentes possam ser arremessados, mas fica um pouco complicado de identificar a distância correta para que o comando funcione com propriedade, uma vez que os oponentes têm uma área de contato completamente desregulada.

A possibilidade mais interessante da jogabilidade de Gargoyles acaba sendo a forma com que Golias consegue escalar as paredes e o teto, mas esse tipo de mecânica acaba perdendo todo o seu potencial quando o design das fases fica entre os mais genéricos já vistos, além do podre sistema de identificação de colisão. É notável que não há equilíbrio na composição, visto que os desenvolvedores provavelmente iam tendo as ideias, abusavam delas em um trecho só e depois não as retomavam posteriormente, variando as mecânicas e, assim, o progresso da aventura.




Para se ter uma ideia, fizeram com que uma fase de trem, dessas que permitem que o jogador siga tanto por dentro dos vagões quanto por cima, permitindo a alternância do trajeto, seja chata de se jogar. Grande façanha. Em todos esses anos nessa indústria vital, eu acho que essa é a primeira vez que eu vi isso.

Ainda em relação aos comandos e a como a física do título responde a eles, chama demais a atenção como Golias tem duas asas enormes que ocupam boa parte da tela quando abertas (e, por consequência, o tornam ainda mais vulnerável por conta da área maior que os inimigos podem se aproveitar) e nem para planar direito elas servem. 




A nós, resta no máximo um pulo duplo que nem sempre funciona, especialmente nas seções em que é necessário se agarrar em lustres, bandeiras ou qualquer outro suporte de apoio, como um trapézio (desses de circo), e rezar para que o sistema de colisão funcione — porque só recorremos à fé quando nada mais parece funcionar de forma lógica.

Ao final de cada estágio, há alguns chefes a serem enfrentados que, em termos de ameaça, nada diferem dos inimigos comuns, notavelmente xexelentos. A maioria deles, inclusive, pode ser completamente imobilizada se o jogador for rápido o suficiente com o botão de ataque, já que eles “travam” na animação de dano sofrido e o jogo não dá uma janela de invencibilidade para fazê-los se recompor. A despeito disso, nota-se que praticamente todos eles carecem de padrões de ataques variados e simplesmente não são divertidos. 



Dois visuais: a ruim de tempos antigos e a pior de tempos modernos

Olhar para o trabalho de remasterização de Gargoyles Remastered é ter a impressão de que se trata de um projeto particular de estudante de primeiro ano de design de jogos (às vezes, nem isso). Aqui, toda a parte visual foi repaginada no intuito de fazer o título se parecer ainda mais com um desenho animado na tela, mas você vê que, apesar de ser perceptível um trabalho decente no protagonista e em alguns inimigos, os cenários ficaram medíocres.

Assim, com um único toque de botão, é possível trocar entre os gráficos remasterizados e a arte pixelada do original. Embora o visual da versão do Mega Drive tenha algum charme pela sagacidade no uso das cores, ele já não era um grande exemplar nem mesmo em sua época original, não indo além do minimamente competente. Aqui, a possibilidade de alternância entre o antigo e o moderno só denuncia a simplicidade e pobreza dos tilesets originais.
Comparativo entre os gráficos novos e os antigos para uma mesma porção do jogo. 
Também não ajuda o fato de que, como comentado anteriormente, a segunda metade do jogo se passa na mesma fábrica, repetindo as mesmas estruturas a torto e a direito em um marasmo vermelho cuja única responsabilidade é a de deixar a nossa vista cansada. Eu inclusive tinha até me esquecido desse hábito da época que é a utilização indiscriminada de jatos de fogo e chão de lava com o objetivo semiótico de gritar a informação de que o jogador estava chegando ao derradeiro clímax da aventura.

Ou seja, no fim das contas, com um botão, o jogador tem completa autonomia para escolher entre um trabalho mediano de arte pixelada, mas em baixa definição e que vagamente remete ao desenho, ou um trabalho estéril de arte digital, mas em alta definição e verossimilhança. O bom é que dá para alternar rápido toda vez que algum deles acabar cansando, o que acontece com uma frequência aborrecedora.
Só depois de tirar essa screenshot que eu fui perceber o bug gráfico em que alguns tijolos, que ainda deveriam cobrir parte de Golias, estão sumidos.



Se bem que talvez a versão em pixel art seja realmente a melhor opção, porque o estilo remasterizado foi implementado através de uma troca simples de assets. O problema é que alguns desses novos modelos foram confeccionados em um tamanho diferente dos respectivos originais, o que piora ainda mais a questão da precisão e das hitbox, além de certos elementos do cenário se interpolarem em outros por conta disso e da mudança forçada de aspecto.

Isso que nem entramos no mérito dos menus horrorosos e das telas entre os níveis, com as frases soltas e desconexas que tentam pintar uma história. São construções visuais bem desagradáveis de se ver por conta de toda a precariedade (palavra de ordem aqui, inclusive) envolvida. O remapeamento dos controles também é risível, uma vez que boa parte dos comandos (e olha que eles são poucos) não podem ter o botão assimilado trocado por outro. 




Por fim, outro ponto a ser levado em consideração nesse relançamento é o sistema de retroceder alguns segundos da ação. Como era de se esperar, ele não foi implementado com muita competência, já que as ações e os elementos em tela simplesmente embolam durante o processo e os controles têm uma espécie de atraso no input logo após uma rebobinada, mas ao menos é funcional.

Graças a isso, é possível terminar o pesadelo que é Gargoyles Remastered em menos de duas horas para então nunca mais tocá-lo, uma vez que o fator replay nulo faz com que a experiência se torne consideravelmente custosa se formos olhar sob um ponto de vista de produto, principalmente porque ficaram com preguiça até mesmo de improvisar um tutorial simples que poderia ao menos explicar o efeito ou significado de alguns dos itens coletáveis nas fases. 



Há quem diga que esse tipo de material é uma boa pedida para quem é fã, mas o cara que segue aí cultuando essa série, que acabou há uns trinta anos e pouco material recebeu depois disso, merece coisa melhor. 

Mil anos de esquecimento e torpor ainda seria pouco

Gargoyles Remastered não é um jogo que podemos considerar arcaico ou datado, pois, até dentro do recorte de seu tempo, dá para ver que já era ruim. O trabalho de remasterização, no fim das contas, é cosmético, não chegando nem perto de tentar remendar o estrago que é o original — quiçá, até piora. 

Às vezes, a gente esquece que, para cada produto licenciado bacaninha daquela época — como o Aladdin, O Rei Leão, Darkwing Duck ou mesmo Ducktales — existem incontáveis outros que não valem o trabalho de um eventual relançamento, ainda que o esforço exercido (note o sarcasmo) esteja em um nível similar àquele despendido no original. Assim como as gárgulas do desenho caíram no esquecimento após serem amaldiçoadas a um sono de mil anos, o game baseado em tal propriedade intelectual também deveria. 

Prós

  • Campanha curta, em menos de duas horas já dá para extirpar do HD;
  • Retroceder alguns segundos compensa a jogabilidade troncha;
  • Alguma coisa a ver com preservação dos videogames, por piores que alguns deles possam ser, eu acho.

Contras

  • Física simplesmente inexistente e sistema de colisão disfuncional;
  • O bojo do desafio reside na ineficácia dos controles, que mal podem ser remapeados;
  • Narrativa preguiçosa e constrangedora tanto no conteúdo quanto na exposição;
  • Inimigos xexelentos, principalmente os chefões;
  • Design de fases precário, linear e pouco diverso;
  • Estética remasterizada insossa;
  • Port completamente esquelético em termos de conteúdo;
  • Provavelmente sequer tentaram mexer um dedo que seja para minimizar os bugs ou suavizar o sofrimento da jogabilidade original;
  • Produto bem custoso dentro das poucas possibilidades que oferece.
Gargoyles Remastered — PC/PS4/PS5/XBO/XSX/Switch – Nota: 3.0
Plataforma utilizada para análise: PC
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital adquirida pelo próprio redator

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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