Resenha

Resenha: Castlevania: Noturno é só o estágio inicial de uma trama que promete ser maior

A sequência da animação de 2017 da Netflix traz uma produção visualmente impressionante, mas joga seguro na progressão da trama.



Você se lembra dos anos 90? Aquela época em que era costume pegar apenas os principais elementos de marcas conhecidas para, através deles, criar um produto novo e próprio, como um desenho animado licenciado? Pois então, o desenho de Castlevania, desde a primeira temporada, seguiu bem essa premissa.


Dividindo opiniões dos espectadores, a série original se estendeu por quatro temporadas e ainda conseguiu garantir uma sequência. Assim, Castlevania: Noturno (no original, Castlevania: Nocturne) dá continuidade à saga do Clã Belmont em sua tradição como caçadores de vampiros.



Liberdade, Igualdade, Fraternidade e Previsibilidade

Tendo a França como palco, Castlevania Nocturne usa a revolução como um plano de fundo para criar a dualidade entre os vampiros, aliados do ancien regime, e os humanos, que estão do lado revolucionário. Com a ação se concentrando na comuna de Machecoul, a série é protagonizada por Richter Belmont, que, ao lado de Maria Renard, lideram um núcleo de resistência contra o domínio vampírico local que cultua a figura de Erzsebet Báthory como uma espécie de messias das trevas.

Do mesmo jeito que a primeira temporada da série anterior parecia apenas servir para preparar o terreno para uma continuação, esta primeira leva de episódios de Nocturne é composta basicamente de incursões fracassadas à masmorra e sala de forja do Padre Emmanuel, o ferreiro responsável por suprir os vampiros com novas criaturas da noite. Paralelamente, dois personagens distintos, Anette e Edouard, chegam à França para participar da revolução e tentar impedir a dominação do mundo por Erzsebet. 




Tendo uma premissa clara no papel, nota-se que a execução acaba sendo... bem burocrática. Isto é, quando se chega lá pela metade da temporada já dá para sacar a estrutura padrão seguida por todos os episódios, bem como o destino de alguns personagens e outras reviravoltas que podem ser previstas a milhares de quilômetros de distância antes de acontecerem. 

Nesse aspecto, o principal showrunner, Clive Bradley, jogou um pouco mais seguro do que seu antecessor, o conceituado quadrinista Warren Ellis. Isso é algo até que curioso, já que Ellis via o projeto de uma maneira estritamente profissional — ele até deu algumas declarações polêmicas sobre como ele não era lá um fã da marca. Ademais, teve a questão de que ele foi dispensado por abuso e assédio na reta final da produção da quarta temporada da série original. Embora não seja o ponto aqui, não é certo jogar esse tipo de informação para baixo do tapete. 




Adicionalmente, por conta desse aparente medo em se aprofundar na história, foi sentida a falta do trabalho de alguns temas em paralelo. Por exemplo, você percebia uma dicotomia interessante na forma como Drácula, um vampiro, era originalmente uma força do conhecimento científico que acabou sendo completamente censurada pela Igreja a ponto de pegar sua esposa como uma bruxa e, por consequência, levá-lo à mais completa loucura. 

Aqui, dá para ver que o tema geral da trama é liberdade, mas ele é apenas pincelado de forma tímida, sendo repetido apenas de maneira mecânica pelos revolucionários e utilizando-o como plano de fundo da história de Anette e sua fuga como ex-escravizada ao lado do homem livre que é Edouard. 



Com a profundidade de uma poça de sangue

De um modo geral, a atenção dada aos personagens principais é um pouco desequilibrada. Enquanto os estrangeiros Anette e Edouard recebem um episódio quase inteiro de flashback contando a respeito do passado — que, na verdade, é muito interessante, diga-se de passagem — o de Richter se resume a uma curta introdução apenas no começo da série. Ao mesmo tempo em que acertam na atenção dada à dupla caribenha, outros personagens que também poderiam receber um tratamento similar acabam sendo escanteados.

Digo, sabemos que Richter veio parar na França e foi criado entre os Renard depois de ver sua mãe ser morta por um vampiro em plena Festa do Chá de Boston. Há uma grande lacuna nesse meio-tempo que parece simplesmente não importar. Em relação às moças Renard, Tera, a mãe, também recebe um rápido e satisfatório flashback contando sua história, mas Maria fica completamente no escuro nesse aspecto. Tudo bem que uma das reviravoltas da trama consiste em informação importantíssima a respeito de suas origens, mas há outros aspectos do seu passado que poderiam ser trabalhados dessa forma.




Inclusive, falando na Maria Renard, é cansativo ver quão unidimensional a personagem é ao só ficar repetindo o tempo todo sobre a revolução e sua força. É praticamente a única motivação da vida dela por boa parte do desenho. Pouco é explorado sobre o que ela pensa de como seria a vida pós-revolução, por exemplo, denotando que ela também teria seus anseios e objetivos próprios além desse suposto bem comum que ela prega.

Para se ter uma ideia, embora seja recorrente na franquia, Tera não tem nem de longe a mesma presença de Maria, mas no desenho exibe uma construção muito mais interessante e elaborada do que a filha, mesmo seu destino sendo claro praticamente desde o primeiro episódio. Não adianta acreditar que a Maria vai ser trabalhada com mais propriedade na segunda temporada se houver pontas soltas que deem a entender que esse desenvolvimento irá ocorrer.




A Anette, por outro lado, já chega praticamente como uma personagem pronta depois de um episódio praticamente inteirinho dedicado ao seu flashback. É quase os escritores dando o recado de que eles preferem explorar logo na entrada tudo o que a ex-escravizada tem a oferecer e deixar a evolução dos outros como prato principal em temporadas futuras. É claro que isso é uma faca de dois gumes, visto que um eventual cancelamento nunca está fora dos planos (especialmente se tratando da Netflix), mas pela conclusão em aberto, acho que essa segunda temporada já era garantia durante a produção.

Olrox, o vampiro responsável por matar a mãe de Richter, também figura em um dos poucos personagens interessantes por originalmente se apresentar como um antagonista, mas ainda com alguns tons camaleônicos no sentido de que ele age por conta própria e apresenta algumas motivações ambíguas, já que ele também não parece ser muito fã de Erzsebet. Nota-se que ele tem um tempo de tela muito menor do que os outros, o que acaba indiretamente contribuindo no mistério acerca de suas motivações.




De todos os personagens, talvez o que tenha ficado mais cansativo de se assistir é o Richter. Em teoria, sendo um Belmont, ele é o protagonista, certo? Pois então, salvo um episódio em específico que conta com a aparição do Juste Belmont, a impressão que fica é que ele só está lá sem voz ativa, simplesmente aceitando tudo o que acontece à sua volta, sem papel ativo como condutor da trama.

Por exemplo, por que ele se juntou à revolução mesmo? É porque ele é um caçador de vampiros e os vampiros são contrarrevolucionários? Mas se essa é uma informação pública e não uma conspiração da classe dominante, por que a população simplesmente se une aos vampiros na aclamação à Erzsebet? O mundo construído não mostra muita consistência na história que quer transmitir e isso acaba respingando no potencial dos personagens em se desenvolver até mesmo por tabela, no sentido de que o fato de eles simplesmente terem de reagir ao mundo à sua volta já é suficiente para desenvolvê-los pelo menos um pouco.




A tábula rasa que é o Richter em Castlevania: Noturno fica mais evidente quando o comparamos com o seu ancestral Trevor, que começou em baixa, mas, interagindo com Alucard, Sypha, e o resto do universo à sua volta, como a Igreja como instituição, foi crescendo e assumindo seu posto como um Belmont de respeito.

É claro que sempre existirão os puristas que irão argumentar que o Richter dos jogos não tem passado para ser trabalhado e transportado para a tela, mas é justamente isso o que uma adaptação significa. O termo crossmedia, academicamente falando, existe exatamente para descrever como tais adaptações precisam ser traduzidas de forma a respeitar as características próprias da mídia de destino.




Um jogo vai se voltar para aspectos de jogabilidade de um jeito interativo e com um papel mais ativo do jogador. Um desenho animado, por outro lado, oferece um conteúdo a ser consumido de um jeito mais passivo, o que denota a necessidade de um roteiro mais apropriado, já que o tipo de atenção que o público despende no produto é um pouco diferente.

Afinal, convenhamos: Richter não é exatamente o Belmont mais interessante para ganhar uma série própria, né? Isso, em teoria, poderia jogar a favor dos roteiristas de Castlevania: Noturno, já que ele é uma tela em branco para ser preenchida, mas parece que torná-lo um rebelde sem causa (tanto no sentido de se juntar à revolução sem questionar quanto no de fazê-lo parecer um adolescente reclamão e boca suja) foi a única ideia que tiveram.



Deu para ver a chicotada que foi a verba da Netflix nesta temporada

O maior mérito de Castlevania: Noturno certamente reside na qualidade de sua produção a nível técnico. Enquanto a história básica tem alguma dificuldade em compelir o espectador por sua simplicidade e ritmo formulaico, a qualidade artística em si é de tirar o chapéu. Para se ter uma ideia, os piores momentos de Nocturne no que diz respeito à fluidez da animação estão praticamente do mesmo nível dos melhores apresentados pela série anterior.

A qualidade do traço, por sua vez, é sublime, com um estilo artístico muito mais detalhado, algo que fica bem nítido quando um personagem que esteve em ambas as séries dá as caras no finalzinho dessa primeira temporada de Castlevania: Noturno. Os efeitos de luz e iluminação também são um show à parte, especialmente quando os personagens realizam feitiços. A cena em que Richter desbloqueia seus poderes mágicos e que é embalada por uma rendição exclusiva do tema Divine Bloodlines é de arrepiar e um dos principais momentos que nos fazem lembrar do motivo de estarmos assistindo ao desenho.




Inclusive, vai aí um complemento: é compreensível que eles estejam segurando as músicas do jogo para momentos icônicos, mas poderiam selecionar algumas de menor destaque (ou as mais batidas) para integrar as trilhas mais casuais e recorrentes. Na série anterior, inclusive, eu achei consideravelmente decepcionante o fato de não terem aproveitado a Clockwork para embalar o combate na Torre do Relógio durante o conflito quase final da última temporada.

De um modo geral, a produção como um todo é bem bacana e os momentos de ação acabam se sobressaindo ao ponto de evidenciar a qualidade técnica da produção. Poderia até utilizar o chavão de que é estilo demais e substância de menos, mas o estilo em si também é uma maneira visual de contar a história — e é essa ideia que consegue justificar que Castlevania: Noturno também tem seu valor.



Como um vampiro, Castlevania Noturno é bonito e encantador, mas ele tem alma?

Embora seja uma experiência satisfatória para quem gostou do primeiro Castlevania da Netflix, Castlevania: Noturno peca um pouco por jogar seguro demais na sua história e, em decorrência disso, deixa de trabalhar os personagens com a merecida profundidade. Da mesma forma que a primeira temporada da série anterior serviu meramente para preparar o terreno para a segunda, esperamos que a segunda temporada de Nocturne consiga equilibrar melhor o desenvolvimento da sua trama com a evolução dos personagens e suas brilhantes sequências de ação. 
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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