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Análise: The Forgotten City (Multi) é uma incrível viagem no tempo para desvendar os mistérios de uma cidade romana amaldiçoada

Um enigma feito de segredos minuciosamente concatenados para você investigar cada vez mais a fundo.


The Forgotten City
é uma daquelas aventuras narrativas das quais podemos dizer que é melhor jogar sabendo apenas o mínimo. Por isso, manterei o máximo de discrição, evitando spoilers de qualquer natureza.

Adianto logo que esta é uma excelente obra de mistério e investigação que qualquer apreciador do gênero deveria jogar — ou melhor, qualquer apreciador que saiba inglês (ou um dos outros sete idiomas disponíveis, incluindo espanhol) pois infelizmente não há tradução para o português brasileiro e a boa leitura é essencial à experiência.



Todos os caminhos levam a Roma

O desenvolvimento de The Forgotten City teve início em 2012, quando o australiano Nick Pearce começou a trabalhar em um mod para The Elder Scrolls V: Skyrim, contendo uma campanha própria de investigação em uma cidade subterrânea. Lançado em 2015, o trabalho foi tão bem recebido que até ganhou um prêmio da Australian Writer’s Guild.

Em 2016, Pearce decidiu levar sua criação a outro patamar e fundou o estúdio Modern Storyteller, centrado em um trio de desenvolvedores. O trabalho foi totalmente refeito no Unreal Engine 4, a ambientação foi transposta de Skyrim para a Roma Antiga, o total de textos dobrou de tamanho e os NPCs foram inteiramente dublados. Após mais de quatro anos de labuta intensa, The Forgotten City foi lançado em 2021 como um jogo próprio que chegou a ser um dos indicados na categoria de Melhor Estreia Indie do The Game Awards.


Eu já estava de olho nele há um tempo e, como ele entrou para o catálogo do PlayStation Plus Extra em fevereiro deste ano, já estava mais do que na hora de jogá-lo. O resultado me empolgou e logo tive certeza de que ao final da campanha eu escreveria uma análise para compartilhar a palavra da Regra de Ouro.

Sob o peso da lei

A premissa de The Forgotten City é a seguinte: você está na Itália do século XXI e vai a uma desconhecida ruína romana, de onde acaba sendo transportado a 2 mil anos no passado. Aquele lugar foi uma cidade subterrânea esquecida por todos, mas habitada por uma população de vinte e poucas pessoas que foram parar ali de forma tão obscura quanto você. Eles vivem sob a Regra de Ouro, uma lei proclamada em placas que dizem: “Os muitos sofrerão pelo pecado de um”.




A Regra de Ouro é indefinida, incerta, hipotética. O que ela significa? Qual é a sua origem? Por que ela existe? Quais são os pecados passíveis de pena? O que acontecerá caso seja quebrada? São justamente essas dúvidas que fazem com que a comunidade local tente não violar a lei invisível e viva sob o fantasma da possível punição definitiva que atingirá a todos de uma vez.

O elenco de homens e mulheres é bastante diverso, contendo personagens de várias posições sociais e diferentes origens dentro do Império Romano. Boa parte da gameplay consiste em falar com essas pessoas, conhecê-las e descobrir suas intenções e necessidades.



O grupo social é muito bem construído, conectado por vínculos em que a história de uma pessoa afeta diretamente a da outra, formando nós que você deve primeiro descobrir, depois planejar formas de desatar e, solucionando os problemas interligados, chegar ao fundo dos muitos mistérios que envolvem a cidade esquecida. Isso nos leva a quatro finais muito diferentes entre si e vale a pena conferir todos.

Após se acostumar aos personagens, as conexões ficam intuitivas. A cada nova sessão de jogo, eu já tinha em mente um planejamento de locais a ir e pessoas com quem falar. Caso você comece a se sentir perdido no tecer da trama, não se preocupe: o menu acumula todos os objetivos descobertos em um log generoso para orientar quando necessário.

O tempo dá voltas

Como já dito, o maior mistério nesta cidade ancestral é a Regra de Ouro. Aqui entra o papel do jogador: a Regra será quebrada inevitavelmente ou será que ela é prevenível? Você, viajante do tempo, sempre retorna ao começo do mesmo dia, carregando tanto o conhecimento quanto os itens adquiridos anteriormente.



Sim, a estrutura é de loop temporal, como no filme Feitiço do Tempo; na verdade, o loop é um design básico inerente a uma enorme parcela dos videogames: o jogador tenta, falha e retorna ao começo para tentar novamente, agora com mais experiência. Basta ver, por exemplo, a mecânica de vidas limitadas em jogos de plataforma.

The Forgotten City aplica essa mecânica de forma diegética — ou seja, ela existe dentro do mundo ficcional. Não é apenas o jogador que vive o loop de tentativas, mas também a personagem protagonista que revive o mesmo dia e usa seu aprendizado gradual para decifrar o fio da causa e efeito que prende a todos em um ciclo infinito. Outros jogos de exploração e investigação que usam esse artifício com sucesso são Elsinore, The Sexy Brutale e o magnífico Outer Wilds.



Não se preocupe com a repetição: The Forgotten City tem ideias inteligentes para manter organizadas as pontas soltas que você já amarrou e os nós que desatou, o que proporciona uma sensação de progresso constante, nunca retornando à estaca zero.

Toda a aventura histórica ocorre no pequeno mundo aberto da cidade, muito bem arquitetada com caminhos circulares, que facilitam o vai e vem contínuo da protagonista. Os diferentes níveis de terreno proporcionam boa compreensão espacial, e há também áreas secretas, cabendo a você descobrir como chegar a elas.



Na diversidade de contextos em The Forgotten City, deparamos-nos com muitos dilemas morais. No fundo, os loops nos deixam observar todos os rumos, então não precisamos fazer escolhas definitivas e nem é essa a questão. A profundidade está muito mais na fábula multifacetada e nos debates e questionamentos que surgem do encontro com pessoas distintas.

Os mais elementos diferentes, no entanto, são o jogador e a protagonista, ambos dotados de sensibilidade do século XXI para lidar com questões (hipoteticamente) do século I. Mesmo com as raízes históricas que confrontam nossas filosofias morais com as dos antigos, é perceptível como a balança tende a favorecer cosmovisões contemporâneas.
 
Assim, o roteiro é temperado com pitadas de anacronismo cultural que não comprometem a ambientação histórica, principalmente se as considerarmos como licença poética em uma obra que é, afinal, de fantasia.



Nem tudo que reluz é ouro

Há poucos defeitos em The Forgotten City e o maior está bem na cara — literalmente, no rosto dos personagens. As animações faciais são fracas e às vezes passam a sensação de boneco de olhos arregalados fixos em você.

Sempre que iniciamos um diálogo, a câmera mostra o NPC de costas e ele se vira para nos encarar. Como nossa protagonista não aparece, o ângulo do bate-papo é sempre com a câmera fixa de frente no outro, o que pode ficar visualmente monótono em conversas prolongadas. A escrita e a dublagem ajudam a compensar essa rigidez, mantendo o interesse do jogador nas histórias de cada um e nas conexões possíveis.




O sistema de investigação por diálogos também encontra limitações. Algumas falas ativam novas opções de perguntas com outras personagens; logo, mesmo se você não tiver feito certa dedução, o jogo a fará em seu lugar.

Ainda que às vezes isso pareça levar a investigação pela tentativa e erro, a ênfase está no “às vezes”, pois os mistérios só serão desvendados pela exploração ativa de quem está jogando, lendo, associando, inferindo e tentando — sutilmente orientado pelo labirinto de pistas que o game constrói com competência ímpar.



Você não esquecerá essa cidade

É necessário reconhecer o mérito de uma aventura de investigação tão bem construída. The Forgotten City não tem excessos: todas as peças se encaixam para formar uma espécie de diorama narrativo que podemos ver de múltiplos ângulos até chegar à satisfação de, como um oráculo, compreender o todo daquela comunidade multifacetada que foi tecida com maestria em uma rede de fios entrelaçados. Os loops temporais põem em marcha o progresso contínuo do herói, transformando a vulnerabilidade da ignorância no poder do conhecimento para desafiar o destino.

Prós

  • Belos cenários de uma cidade romana bem arquitetada para criar um mapa mental;
  • Os mistérios fisgam a atenção, mantêm o interesse e satisfazem pela descoberta;
  • Os loops proporcionam mais sensação de progresso que de repetição;
  • História bem-escrita e intrigante, cujos detalhes importam;
  • Cada personagem do elenco é única e tem boa dublagem;
  • O log de missões ajuda a manter a consciência das muitas pontas soltas a investigar;
  • Há quatro finais bem diferentes entre si.

Contras

  • As animações faciais limitadas e os diálogos sempre com o mesmo ângulo frontal podem cair na estranheza ou monotonia visual;
  • Algumas associações aparecem nos menus de diálogos, parecendo mais uma questão de tentativa e erro que de compreensão e dedução;
  • Não há tradução para português.
The Forgotten City — PS4/PS5/XBO/XSX/PC/Switch — Nota: 9.0
Versão utilizada para análise: PS5
Revisão: Davi Sousa


Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
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