Resenha

The Last of Us: o segundo episódio traz a solidão de atravessar uma cidade retomada pela natureza

A vida encontra um caminho (e a morte também).


Após a decadência urbana que espelha a humanidade dentro dos muros da zona quarentena no primeiro episódio de The Last of Us, o segundo nos leva a outra face da cidade: desabitada, vazia, silenciosa, tomada por plantas e perigos adormecidos. Apenas três pessoas respiram naquelas ruas.

 A cidade é a ruína do verde ou o verde é a ruína da cidade?

Só neste episódio consegui perceber que a ramagem que se estende na bela sequência de abertura ocupa toda a forma geográfica dos Estados Unidos. O mesmo território que um dia o colonizador tomou, unificou com ferro e sedimentou com concreto agora é reivindicado pela velha natureza, que encontra seu caminho no longo trabalho de encobrir os rastros da presença humana.



Basta não haver pessoas para que o restante da natureza prospere, como em um terreno baldio que, deixado à própria sorte, se torna uma selva. As raízes quebram a alvenaria, os cipós cobrem os restos, os galhos sobem pelos obstáculos. Passados 20 anos na série, as frágeis ruínas não são mais habitáveis.

A humanidade teme a natureza — ou melhor, sua fraqueza diante dela. O bicho-homem excluiu-se como um ser autônomo, à parte do ecossistema, separado por uma linha fundada na dominação: eu nomeio, logo, possuo. Possuo, logo, sou superior. Destinado a ser.

A dominação foi a única saída encontrada para o medo, até que, segura em suas cidades que mantêm tudo o que é natural longe ou controlado, a civilização esqueceu o pavor primordial.



Voltemos brevemente à introdução do primeiro episódio, quando homens discutem contágios em um programa de auditório dos anos de 1960. Assim que é levantada uma proposta sobre o perigo de infecção por fungos, a resposta imediata é que basta criarmos vacinas, como se elas fossem tão normais quantos os microorganismos que as tornam necessárias. 

Essa é uma boa cena para iniciar a série, deixando claro o perigo antes mesmo de haver o surto: logo de cara ficamos sabendo que não há vacina, não há remédio, não há cura. Sentimos novamente o pavor de lembrar que há coisas que não podem ser controladas.

Aliás, o segundo episódio também começa com cena semelhante, mas mais próxima aos eventos que deram início ao fim: uma cientista se depara com os efeitos das primeiras infecções na Indonésia. Apavorada, ela se resigna à falta de opções e vê no extermínio pelo bombardeio a única forma de impedir a propagação, um fatalismo instantâneo e nada científico, mas que expressa bem o que a cena quer passar.



Espero que essas cenas de background do surto sejam uma tendência seguida em todos os episódios, pois acrescentam pequenas noções do nível macro a uma história que se estabelece no microuniverso da relação entre os dois sobreviventes, Joel e Ellie.

O um é o todo, o todo é o um

Em The Last of Us, o surto não foi o trabalho de uma corporação maligna que desenvolveu uma arma biológica e pode ser tão combatida quanto suas criações. Nessa distopia, a fatalidade é fruto do processo evolutivo que veio para derrubar mais um animal dominante.



Não, esta não é a parte em que eu vou dizer que o fungo do fim do mundo existe de verdade. O que lembrei foi do maior organismo vivo conhecido até hoje: uma rede de fungos que alcança 10 km², no estado do Oregon, Estados Unidos.

Isso ocorre através de micorrizas, associações simbióticas mutualistas entre alguns fungos e as raízes das plantas que os cercam, criando redes interligadas que podem chegar a uma unidade coletiva de vários quilômetros de extensão, estabelecendo comunicação através dos nutrientes que percorrem a rede, o que gera alterações na estrutura e na fisiologia das plantas envolvidas e até na bioquímica do solo.

Em outras palavras: você vê toda uma floresta, mas, na base dela, está um único organismo, vivo há milhares de anos.

A série usa essa ideia de coletividade orgânica para expandir a raiz do problema. Os produtores Craig Mazin e Neil Druckmann explicam que o contágio pelos esporos lançados ao ar pode fazer sentido dentro do design de mundo de videogame, mas seria questionável na série. Por isso, a solução foi eliminar essa via e introduzir outra já existente entre os próprios fungos: as tais ramificações que se conectam. E se espalham. E contaminam. Como enormes redes de infectados.



Em contraposição à fragmentação da sociedade humana, os fungos dos infectados crescem em redes interligadas, formando uma unidade, um todo que se comunica internamente e que não sabemos onde começa e onde termina. Com isso, um infectado se torna a expressão de algo maior que a soma de suas partes; um horror maior.

Aqui está um ponto que me agradou bastante: cada estalador (clickers, os cabeças-de-cogumelo) é um perigo formidável. No jogo, podemos enfrentar cinco de uma vez e tudo será apenas uma questão de se aproximar sorrateiramente e de quantas balas conseguimos acertar nas cabeças deles enquanto corremos para manter distância do alvo que nos persegue.

Já na série, ao menos até este episódio, no qual eles aparecem pela primeira vez, a mera possibilidade de encontrar um inimigo desses inspira um silêncio apavorante. Ouvir seus estalos, então, é a certeza de que a vida está por um fio. Atrair a atenção de um ou dois deles é o suficiente para pôr tudo a perder.



Também temos que ser furtivos no jogo, mas, com tantas armas e munições entregues nas mãos dos jogadores, a eliminação dos infectados também é um dos objetivos. O trio Joel, Tess e Ellie só quer sobreviver e passar despercebido, mas não é tão simples assim. Uma vez construído o suspense, chega a hora de explodi-lo e deixar acontecer a luta pela vida (leia-se: abrir uma brecha para a fuga).

Esse segundo episódio foi dirigido por Neil Druckmann, que também é diretor dos dois jogos. Experiente nos trabalhos cinematográficos da Naughty Dog, ele acertou no ponto o suspense, a dinâmica entre os personagens e as explicações que não soam como exposição gratuita.

Fora a introdução na Indonésia de 2003, o restante dos 52 minutos é inteiramente focado nos três personagens como protagonistas, sem coadjuvantes. Exceto pela primeira aparição dos infectados em estado avançado, é claro.



Podemos até ver aqui algumas marcas de design de níveis do estúdio que fez também a série Uncharted, como o ponto de destaque no horizonte que mostra o objetivo a ser alcançado e serve de referência para o jogador sentir que está avançando na geografia local (a cúpula do Capitólio) e os desvios de travessia que transformam 10 minutos em linha reta em uma hora em meio a escombros suspeitos (“hmmm... como eu chego ali?”).

Independência e morte

O cenário é desolador e não parece permitir uma volta ao “velho normal”, mas Tess quer ter a esperança que Joel se recusa a alimentar. Podemos “ler” o episódio dessas maneiras. A primeira é a decomposição da humanidade, representada na contaminação dos símbolos históricos presentes através do Museu de Boston (um lugar fictício) e a invasão destrutiva do Capitólio, que em outros tempos abrigava o governo da província.



Em 1775, Boston foi o palco de uma vitória-chave quando George Washington conseguiu tomar a cidade dos britânicos, que haviam resistido a um longo sítio durante a guerra de independência dos Estados Unidos. Na série, a situação é invertida: os americanos estão sitiados na zona de quarentena e os infectados os cercam, trazendo a morte, que vem de fora do organismo humano — e de fora da nação, para variar.

O Museu está completamente tomado pela matéria orgânica inchada, invasora e implacável. Os vestígios humanos do local de história foram tragados por uma forma de vida alienígena aos nossos olhos. No andar de cima, porém, o Salão da Independência, com material daquela guerra, está intacto sob a camada de poeira comum. Um suposto lugar seguro simbólico da resistência e do iluminismo, se não fosse pelo fato de que não existe mais certeza de lugar seguro para a espécie humana.

Decomposição ou esperança? O próprio título da série aponta para o fim.  Pensar sobre “os últimos de nós” é imaginar a última pequena chama da humanidade antes de se apagar completamente, ou a esperança de que ainda haverá pessoas que, mesmo em face à extinção, levarão o estandarte da resistência de tudo o que simboliza o ser humano?

É isso que aparece na última cena do episódio. Do lado de fora do Capitólio, centro da organização cívica, a bandeira estrelada, tão sagrada para aquele país, está rasgada, mas ainda hasteada no mastro. Se destruída ou altiva, depende do ponto de vista.

P.S.

Eu tento manter os spoilers no mínimo, sem fazer da análise um resumão, então não detalhei certos acontecimentos. Eles não serão esquecidos, pois seus desdobramentos permanecerão na história e nos personagens e poderão ser comentados mais à frente. Eu sei que já disse isso na semana passada e voltei atrás, mas permaneço sem a intenção de analisar todos os episódios semanalmente Tudo vai depender de eu ter algo a dizer sobre ele — o que é bem provável, considerando o quanto a série está massa!

Revisão: Davi Sousa

Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


Disqus
Facebook
Google