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Análise: Slow Damage (PC): em busca de euforia em uma sociedade em decadência

Visual novel BL da Nitro+Chiral chega ao Ocidente e se mostra uma das obras mais maduras e profundas da desenvolvedora.

A Nitro+Chiral é uma famosa desenvolvedora focada em visual novels boys’ love (BL), ou seja, aquelas que envolvem um protagonista masculino se envolvendo romanticamente e/ou sexualmente com outros rapazes. Responsável pelo fenômeno DRAMAtical Murder e clássicos como Togainu no Chi, Sweet Pool e Lamento, a empresa também é conhecida por abordar tópicos bastante pesados em suas obras, assim como é o caso de sua matriz Nitroplus (The Song of Saya, Full Metal Daemon Muramasa).

Slow Damage é o título mais recente da desenvolvedora a chegar ao Ocidente, tendo sido licenciado por sua parceira JAST BLUE, que também foi responsável pelas localizações de seus outros jogos. Com roteiro e direção de Fuchii Kabura, ilustrações de Yamada Uiro e tradução de Molly Lee, a obra é, sem sombra de dúvidas, um dos lançamentos mais importantes do gênero.

Uma sociedade em decadência

Em um futuro ficcional, o Japão estabeleceu uma zona especial para atração de turistas chamada Shinkoumi. Focado no setor de entretenimento com resorts, cassinos e uma vida boêmia forte, o lugar prosperou durante anos sob a supervisão de um grupo de yakuzas conhecido como Takasato-gumi. Porém, o século XXI ainda representou uma forte recessão para o governo japonês como um todo e mesmo essa bolha de sucesso estourou em certo momento.

Esse período de decadência deu origem a uma geração que ficou conhecida como Crianças Infelizes (Hapless Children). Sem perspectiva de futuro, os cidadãos acabam vivendo como indigentes, se prostituindo desde a infância, envolvendo-se com drogas e criminalidade e se dedicando totalmente a prazeres mundanos. Para o Takasato-gumi, tudo isso são apenas negócios.

Em meio a essas circunstâncias, acompanhamos a história de Towa, um rapaz cujo corpo é marcado por várias cicatrizes. Após várias circunstâncias do seu passado, ele acaba morando nas imediações de uma clínica na qual ajuda com um trabalho de meio-período. Porém, essa é apenas uma forma de ele pagar as contas e manter a sua independência.

Towa e euphoria

A verdade é que Towa também é conhecido como o artista “euphoria” e é uma pessoa um tanto excêntrica. Agindo de forma fria na maior parte do tempo, o que move e intriga o jovem são os impulsos sombrios da psique humana. Como euphoria, ele tenta extrair os desejos mais profundos das pessoas que encontra, tendo também a capacidade aparentemente sinestésica de enxergar auras coloridas associadas aos indivíduos e suas emoções.

Towa está sempre à procura de algo mais profundo. Em uma sociedade suja e fria, ele quer encontrar pessoas e situações que lhe deixem marcas. O mesmo vale para o seu eu artístico, que tenta enxergar a verdade por trás das pessoas. A sua interação com aqueles que lhe chamam atenção é um mergulho em busca da sua identidade e de fazer parte dos seus desejos, mas isso também implica em remexer nos seus traumas. Apenas após forçar a outra pessoa a expor tudo para ele é que os dois conseguem um singelo momento de união no qual até mesmo os elementos mais negativos dessa pessoa são aceitos.

Assim como em outras obras da Nitro+chiral e como esperado do contexto sombrio da obra, Slow Damage envolve tópicos muito pesados. Violência, criminalidade, abusos físicos e sexuais, prostituição infantil, estupro, torneios ilegais que só terminam com a morte de um participante e suicídio são elementos sociais comuns de Shinkoumi. Já dessensibilizado para esses assuntos e a criminalidade alta da região, o próprio Towa trata esses temas com uma casualidade que pode ser incômoda para muitas pessoas.

Porém, trata-se de um mundo muito bem desenvolvido em que nenhum dos elementos mais negativos é usado de forma gratuita. Ao avançar pela história das rotas do jogo, é possível ver e compreender mais a fundo não apenas os rapazes com os quais o protagonista se envolve, como também o que está por baixo da aparente frieza de Towa.

Um caleidoscópio de experiências

Uma coisa que chama a atenção em Slow Damage é a sua tradução em inglês. Traduzido por Molly Lee com edição de Mary Borsellino, o título é bastante vibrante em seu texto, conseguindo apresentar com bastante clareza as personalidades de cada indivíduo e as suas reações diante dos eventos. É fácil imaginá-las como pessoas reais, o que ajuda a enfatizar os temas e discussões presentes na obra e trazer um senso de empatia com as circunstâncias.

Além disso, em termos de audiovisual, Slow Damage consegue oferecer uma experiência profundamente imersiva e estilosa. A trilha sonora opta por toques ambientes mais maduros, evitando se sobressair às vozes dos personagens que assumem os holofotes.

As ilustrações de personagens e ambientes são de altíssima qualidade e a interface brinca com o conceito de pintura, especialmente na tela inicial, que simula uma visão do quarto de Towa no escuro. Há um pouco de lentidão em algumas transições de tela, não sendo possível evitá-las, mas, felizmente, o jogo conta com dois sistemas de skip que fazem com que seja muito tranquilo rejogar a aventura.

Em particular, também chama a atenção o fato de que Slow Damage trabalha com os conceitos de exploração e interação em mecânicas especiais. Primeiramente, em determinados pontos da trama, o jogador pode escolher para onde ir em um menu de áreas do mapa de Shinkoumi. Cada lugar pode ter um NPC à espera, mas o jogador pode avançar direto para o próximo ponto da história se quiser.

Ao interagir com esses personagens, é possível obter falas especiais que podem ser usadas nas sequências de interrogação. Esses são os momentos em que o jogador tenta fazer com que um determinado personagem chegue a um estado de euforia e abandone as suas máscaras, revelando as cicatrizes emocionais que tenta esconder.

A ideia é que a interrogação consista em várias rodadas de interação que o jogador pode escolher entre assumir uma postura positiva ou negativa em contraponto ao seu “oponente”. Dependendo da pessoa e do contexto, a escolha pode levar ao aumento ou à redução da euforia, sendo possível alcançar um game over por mau uso do sistema. Além disso, se o jogador tiver obtido falas ao longo do capítulo, terá escolhas extras entre esses momentos.

Uma mecânica similar, mas reduzida também é apresentada na interação com os NPCs durante os trechos de exploração. Com menos peso narrativo, eles também indicam se uma decisão afetará positiva ou negativamente a euforia antes de ela ser selecionada.

Um BL de alto nível

Slow Damage é uma visual novel BL cuja história e ambientação estão entre as melhores opções do gênero. Com uma tradução em inglês sólida e cheia de personalidade, ilustrações estilosas e uma trilha madura, a obra consegue retratar tópicos bastante pesados de forma séria e bem trabalhada. Trata-se de um jogo facilmente recomendado para qualquer jogador que curte uma boa história e não tiver dificuldade em lidar com os tópicos aqui presentes.

Prós

  • Boa discussão sobre tópicos pesados relacionados a identidade, traumas e desejos profundos;
  • Ambientação futurista sombria bem desenvolvida;
  • Texto traduzido em inglês cheio de personalidade;
  • Ilustrações de alta qualidade, variadas e estilosas;
  • Mecânica de interrogação representa de forma curiosa a interação de Towa com os seus potenciais parceiros.

Contras

  • Pouco indicado para quem não consegue lidar com os temas;
  • Algumas transições lentas entre telas.

Slow Damage — PC — Nota: 10.0

Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela JAST USA


é formado em Comunicação Social pela UFMG e costumava trabalhar numa equipe de desenvolvimento de jogos. Obcecado por jogos japoneses, é raro que ele não tenha em mãos um videogame portátil, sua principal paixão desde a infância.
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