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Análise: Ghost Song (Multi) é um metroidvania memorável, inesperadamente otimista e filosófico

Com a profundidade reflexiva da ficção científica e um mundo que convida à exploração, Ghost Song é uma bem-vinda adição ao gênero.



A Deadsuit
Quieta por muitos anos...
Neste dia, algo se move por dentro.
Algo novo...
 
Após essas palavras de introdução, você desperta em um cenário desolado. Atrás, está uma nave caída no chão. Será sua? Em todo caso, faz muito tempo que ela caiu ali, pois as plantas já cresceram sobre a fuselagem. Quem é você? Não sabe. Aonde deve ir? Só há uma maneira de descobrir.




A canção fantasma

A protagonista não tem nome, mas vou chamá-la de Blue, o apelido que recebe de outras pessoas em referência à cor de seu traje. Nas legendas, o nome aparece como Deadsuit, uma armadura cujo nome quer dizer “traje morto” ou, talvez, “traje do morto”. É isso que ela é? Isso o que, afinal?

Apesar da Deadsuit, não vejo Blue como morta nem vazia, longe disso. Ela tem personalidade, tem vestígios que brotam do espaço em branco da memória. Sua voz é doce, sua vontade é forte e gentil. Seu braço é um poderoso canhão, tal qual aquela primeira heroína de ação nos games, Samus Aran, cuja identidade também foi obscurecida por uma armadura.



Ghost Song começou como uma homenagem a Super Metroid (SNES) que ganhou forma própria e misturou-se a conceitos de Dark Souls (Multi) para lançar uma campanha de financiamento coletivo no Kickstarter. Isso foi em 2013, antes de todos nós percebermos como os subgêneros metroidvania e souls combinam tanto que até parece que a união conhecida por soulsvania era algo inevitável.

Sim, 2013, faz tempo. Demorou tanto porque esse é um daqueles projetos de uma pessoa só, um desenvolvedor de nome Matt White que fez a maior parte sozinho, mas depois buscou ajuda, formando o estúdio Old Moon, e reformulou muita coisa até chegar ao jogo que será lançado nesta semana, no dia 3 de novembro.



Empatia na atmosfera lunar

Algo em que Ghost Song acerta com louvor é a atmosfera. Assim como no clássico dos metroids, a progressão é vertical, partindo da superfície rumo às profundezas escuras da terra – no caso, da lua Lorian V. Os gráficos são desenhados à mão, cheios de detalhes. Os ambientes são escuros, contrastando com cores luminescentes de lilás, azul, verde e rosa. Tudo tem um aspecto alienígena, uma distorção de formas familiares que às vezes me fez pensar no fundo do mar.

Os muitos planos de fundo, desfocados à distância, dão profundidade aos cenários, avivados pelo movimento da vegetação ou das paredes orgânicas de uma colônia de insetos carregados de um amarelo doentio. O Deadsuit fica sujo do branco dos ovos pisoteados, ou do verde das criaturas gosmentas, ou ainda do sangue dos inimigos abatidos. O design de som sabe usar o silêncio, os inquietantes barulhos pegajosos e, principalmente, a música contemplativa, lenta e ecoante que abraça o jogador com suas cordas sintéticas suaves.



É isso que, para mim, mais destaca Ghost Song em meio ao gênero no qual se insere e que o distingue daquelas duas referências iniciais, Metroid e Dark Souls: aqui, você não está sozinho, como diz o próprio slogan. Não, não é multijogador e não há personagens que te acompanham às entranhas da lua. O que temos são NPCs que conversam com Blue em diálogos levados pela filosofia. Falam de linguagens, de sonhos, do passado, da morte, das mudanças; no fundo, falam sobre quem são e o que a existência significa para eles.

Os diálogos são profundos e poéticos, mas giram em torno das coisas comuns da vida – família, comida, dança, música, poemas, cheiros –, sem cair no rebuscamento pedante ou obscuro. São bem escritos e soam muito humanos; tive enorme satisfação em falar com todos que conheci a cada vez que a história avançou para ver o que mais tinham a dizer. Blue não é uma protagonista desprovida de voz; é quieta, mas conversa. Até fala consigo mesma, quando você solta o controle por um tempo.

Aos que não querem se envolver com leitura em jogos assim, uma boa notícia: a esmagadora maioria dos diálogos é opcional e só se desenvolve com a iniciativa do jogador. Leia como preferir; tudo, muito, pouco ou quase nada. Fique à vontade.

Na minha experiência, os NPCs e as relações com eles fizeram muita diferença. Em um cenário desolado de ficção científica de horror, encontrei o inesperado calor de uma esperança simples e contagiante que deu motivação à minha busca. Blue não sabe quem/o que ela é, mas sabe que se importa e isso basta.



É importante notar que não há tradução para português. Além do inglês, há opções de espanhol, francês, alemão, japonês, russo, coreano e chinês simplificado.

A liberdade de explorar um mundo alienígena

Eu finalizei Ghost Song em 13 horas. Não há estatística de completude e eu fiz praticamente tudo ao meu alcance, obtendo 52% dos troféus, mas, conversando com Matt White, percebi que ainda há muito a encontrar em Lorian V, desde itens até NPCs, partes da história e no mínimo um bom chefe opcional.



Ghost Song está no lado mais aberto da fórmula metroidvania, optando por menos linearidade e mais caminhos possíveis ao explorar Lorian V. Isso faz parte da intenção do desenvolvedor de, inspirado em Dark Souls, oferecer uma grande porção de conteúdos opcionais. São locais que talvez não sejam descobertos por todo jogador e mistérios que talvez não sejam solucionados, mas que surgem como recompensas à exploração e contribuem ao maior aproveitamento e compreensão do todo.

Como o jogo começa do nada, sem rumo fixo nem objetivo, a abertura crescente faz parte da imersão. Eventualmente, o jogador chegará ao local onde o eixo principal da narrativa tem início, apontando alguns locais nos vazios distantes do mapa. Para minha surpresa, surgiu uma desnecessária tela de tutorial para explicar que devemos alcançar aqueles pontos, recomendando começar por um específico.

Para testar o grau de liberdade do design do mundo, decidi que o objetivo inicial seria o último que eu cumpriria. Ghost Song passou com louvor nesse quesito, me permitindo uma progressão muito natural mesmo invertendo a recomendação. Não é um mundo aberto; afinal, existem as “trancas e chaves” que caracterizam os metroidvanias, embora elas sejam mais orgânicas que a média. Ainda assim, o potencial de liberdade pode ter alguns efeitos colaterais, como alguns caminhos alternativos que, quando descobertos, não são mais relevantes porque você já passou antes pelas áreas que eles conectam.

Esses objetivos, porém, levam a momentos de backtracking desnecessários. Ao alcançá-los, você tem que retornar ao local de origem sem fazer uso dos pontos de viagem rápida e com apenas alguns inimigos a mais, o que para mim não serviu de novidade que justificasse as jornadas. Felizmente, cada retorno leva apenas alguns minutos.



O mapa permite posicionar marcadores, o que é muito útil para criar lembretes, mas a ideia é prejudicada por seu design de cabeças de inseto que pouco servem de ícones para representar tipos específicos de pontos de interesse. Acabei usando apenas uns três modelos, mas foram afetados por um bug: os ícones dos marcadores mudaram sozinhos várias vezes. Após recarregar o jogo, eu tinha certeza que havia marcado certos locais com outro inseto, mas ao menos o marcador ainda permanecia no local correto, sem maiores consequências.

 “Nós podíamos ter conversado...”

Ei, eu falei de Dark Souls no começo, não falei? Não temam, Ghost Song está longe de ser realmente punitivo, mesmo adotando várias mecânicas associadas à série da FromSoftware, como a perda de pontos de experiência ao morrer, com a possibilidade de recuperá-los, assim como a perda cumulativa de uma pequena fração do seu total de vida. Isso não passou de um pequeno incômodo que logo deixou de ter impacto, uma vez que pode ser revertido por um custo baixo.



Blue prefere dialogar, mas precisa lutar. O combate é bom e tem algumas nuances interessantes. Os ataques de blaster dão mais dano de acordo com a proximidade com o oponente, assim como os acertos na cabeça. Atire demais e seu canhão vai superaquecer e reduzir a cadência dos disparos, mas, com a arma vermelha e fumegante de tão quente, o dano de usá-la para realizar ataques corpo a corpo será maior; uma desvantagem equilibrada com uma vantagem para uma abordagem diferente, incentivando a alternar os ataques e a assumir postura ativa nos combates.

Há diversas armas corpo a corpo e também os módulos de blasters que dão ataques especiais e servem para variar a gameplay, ajustando ao seu gosto. Estes consomem a barra de Energia, a qual é recuperada automaticamente, pouco a pouco, promovendo um uso estratégico desse tipo de munição.

No entanto, devo dizer que alguns minichefes (leia-se: inimigos únicos com nome próprio) desapontam com sua limitação de movimentos; chego a considerá-los descartáveis. Há os que correm para longe de você e depois retornam correndo para descarregar seus ataques antes de sair correndo novamente, criando um ciclo estranho. Vários ataques até vêm quando o chefe está fora da tela. Essa acaba sendo a estratégia que o próprio jogador usará contra esses chefes.

Também encontramos um punhado de chefões interessantes, como uma ogra enorme e poderosa que surge em certas salas enquanto atravessamos uma determinada área, criando uma boa sensação de perseguição e perigo iminente.



No fim das contas, os chefes são razoáveis, mas, quando comparo a outros exemplares entre os soulsvania, boa parte deles está abaixo do esperado. Mais uma vez, há grande liberdade nesse quesito no sentido de que a maioria dos minichefes pode ser evitada se o jogador simplesmente passar direto por eles.

Dificuldade e evolução

Ao iniciar, são oferecidas duas opções de dificuldade. A Explorer é a mais fácil, que minimiza as penalidades da morte e aplica outros ajustes não especificados.

Fiquei intimidado com o aviso de que a dificuldade não pode ser alterada ao longo do jogo, mas ainda assim optei pela Original. Até morri bastante na primeira hora, mas, depois que peguei o jeito, as mortes ficaram incomuns.



Além da prática, o motivo maior da atenuação na curva de dificuldade provavelmente é o sistema de acumular experiência para gastá-la subindo de nível, o que é feito em locais específicos. Logo, a evolução dos pontos de vida, energia, resistência e até de dano de armas não depende de encontrar itens por meio da exploração, como é comum no gênero.

Contanto que o jogador se atenha a atacar todos os inimigos que surgem pelo caminho, terá uma freqüência razoável de melhorias de nível, que são divididas em três opções: GunPower potencializa o dano das armas de fogo; Vigor aumenta os pontos de vida e o dano físico dos seus golpes; Resolve incrementa pontos de vida (HP), energia e stamina.

Não é um sistema elaborado de build, mas é melhor que uma evolução pré-determinada porque dá um pouco de margem para adaptação. Está morrendo muito rápido? Aumente Vigor. Usa muitas armas de módulo? Aumente Resolve. Quer tentar uma run de canhão de vidro? Invista tudo em GunPower e ignore o restante.

Uma jornada de esperança

Ao final da análise, preciso levar em consideração os pontos negativos que acabam refletindo na nota. No entanto, minha experiência pessoal com Ghost Song foi algo maior que a soma das partes e do saldo numérico. É um ótimo metroidvania na exploração, atmosfera e na surpresa do calor humano por trás de cada encontro, tornando-o um título poético e memorável dentro de um dos meus gêneros favoritos. Certamente voltarei a jogá-lo no futuro.

Atualização: confira também minha entrevista com Matt White, o criador de Ghost Song.

Prós

  • Visual e música criam uma atmosfera impecável.
  • Bom design de mundo não-linear.
  • Temas filosóficos dignos da boa ficção científica.
  • Personagens interessantes e diálogos bem escritos.

Contras

  • Poucos chefes empolgam.
  • Marcadores de mapa pouco intuitivos e com bugs.
  • Backtracking desnecessário em alguns momentos.
Ghost Song — PC/PS4/PS5/XBO/XSX/Switch — Nota: 8.5
Versão utilizada para análise: PS5
Revisão: Thais Santos
Análise realizada com cópia digital cedida pela Humble Games

Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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