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Análise: Essays on Empathy (PC) é um passeio pela fábrica de jogos narrativos do Deconstructeam

Com comentários dos desenvolvedores, coletânea reúne dez jogos do estúdio espanhol responsável por The Red Strings Club.


Quem já visitou uma vinícola conhece o sentimento de se estar testemunhando mais do que a colheita de uvas Merlot e a fermentação quase mágica dos vinhos. Para além das belas paisagens campestres e das taças viradas ao longo do processo, o tour por entre garrafas em uma adega carrega a poesia de uma arte milenar, demonstrada em frente a nossos olhos.


A maioria dos visitantes não vai se importar muito com a metodologia; estão lá para aproveitar a vista, beber bem, e para contar que conheceram uma vinícola naquela viagem feita ao sul do país no começo do ano. Mas a minoria, alguns sujeitos que talvez se considerem especiais, vai se interessar pelas etapas; vai importunar os funcionários do vinhedo e passar longos minutos girando as taças de vinho – para “desprender as partículas de aroma”, dizem.

Essa mesma minoria vai se encantar por Essays on Empathy. Não de apreciadores de vinho, é claro, mas de pessoas que vão além, que querem entender os processos, as etapas por trás de suas paixões. E nesse caso, a vinícola se chama Deconstructeam, o estúdio independente espanhol responsável pela antologia, famoso principalmente por The Red Strings Club, de 2018.
Cada um dos jogos é acompanhado por imagens de seu desenvolvimento, com imagens de protótipos e ideias iniciais.



Essays of Empathy é um passeio por dez jogos do time, fundado em 2012 e composto por três pessoas: Paula “Fingerspit”, Marina González e Jordi de Paco. São pequenas obras, a mais longa com cerca de 90 minutos, quase todas feitas em poucas semanas – ou dias – para a Ludum Dare, famosa game jam.

Com uma ou outra exceção, são jogos simples mecanicamente e com foco na narrativa, o ponto forte do Deconstructeam, sempre com o estilo pixelado já característico do estúdio e permeando temáticas sociais. Além disso, a equipe gravou uma espécie de documentário lançado junto ao game. Cada uma das dez obras é acompanhada por um vídeo de Paula, Marina e Jordi comentando sobre o jogo.
Marina, Paula e Jordi formam o Deconstructeam desde 2012.
Essays of Empathy não é para todo mundo. É voltado a quem já conhece e gosta do trabalho da equipe e se interessa pelo processo de desenvolvimento de jogos, principalmente indie. A coletânea é como um livro de contos em processo de edição; muitos deles feitos à pressa e com pouco refino, mas o que interessa é a trajetória, a coesão de ideias e, por que não, o sentimento ébrio ao final do passeio.

O fim de uma era

A antologia começa em 2015 com Underground Hangovers, o jogo mais destoante e fraco da seleção. Feito em dois dias para uma Ludum Dare, o game é um metroidvania com armas bizarras e criativas, como um botão de teleporte, um gancho e uma arma de gravidade zero. Ao contrário de outros jogos da equipe, o foco aqui é totalmente mecânico. Como os próprios desenvolvedores comentam, é o estilo acima da substância.

















Apesar de ter sido lançado depois de Gods Will Be Watching, de 2014, jogo de estreia do Deconstructeam no circuito comercial e também com foco narrativo, Underground Hangovers ainda mostra um estúdio tentando encontrar sua identidade. É “o fim de uma era”, como diz Jordi no documentário. Os cenários cyberpunk são interessantes, mas o jogo é repleto de bugs, como é de se esperar de um game feito em um par de dias. Ainda assim, é interessante sua escolha na coletânea; ele está em Essays of Empathy para contrastar com o que está por vir.

The Red Strings Club

Os próximos dois jogos da coleção representaram uma mudança no patamar da desenvolvedora. Zen and the Art of Transhumanism, de 2016, criou as sementes para o que se tornaria o mundo de The Red Strings Club e é um marco para o estilo narrativo do time.
Zen and the Art of Transhumanism foi um dos jogos mais importantes para as ideias desenvolvidas em The Strings Club.
Apesar de ser só um minigame um tanto monótono de moldar cerâmica, o jogo aborda sua narrativa de forma sutil, com a ideia de um robô criando implantes para “melhorar” a vida de habitantes de uma metrópole futurista, mas cabendo ao jogador escolher qual exatamente será essa melhora. Se uma pessoa quer mais seguidores nas redes sociais, devo fazê-la mais carismática ou acabar com sua necessidade por aceitação social? Zen and the Art of Transhumanism foi integrado dentro de The Red Strings Club como um minigame no decorrer do jogo.

Um processo semelhante aconteceu com Supercontinent LTD, também de 2016; um competente jogo de detetive no qual um hacker freelancer tenta derrubar uma conspiração corporativa por meio de ligações telefônicas. O game oferece diferentes caminhos a serem seguidos e conceitos usados futuramente pelo estúdio. É uma das melhores obras da coletânea. Não à toa foi integrado ao último ato de The Red Strings Club e seu protagonista é um dos principais personagens do jogo.

A sétima obra de Essays on Empathy também é muito relacionada a The Red Strings Club. Em Eternal Home Floristry, o jogador experiencia a narrativa de um assassino de aluguel trabalhando em uma floricultura enquanto se recupera de um ferimento. É um game surpreendentemente refinado para suas 72 horas de desenvolvimento – foi feito em 2018 para a 43ª Ludum Dare.

O jogo se passa no mesmo universo dos outros três citados acima e poderia muito bem ser um capítulo adicional de The Red Strings Club. Eternal Home Floristry apresenta uma narrativa bem amarrada e tocante, com dois personagens desenvolvidos de forma delicada, enquanto resta ao jogador fazer escolhas por meio de um minigame de montar buquês, que impactam na história a depender das flores escolhidas.

Um pé no terror

Em meio a jogos com pouco foco em mecânicas, nos quais o jogador raramente tem botões para movimentar o personagem, dois jogos se destacam. Engolasters January 2021 e Dear Substance of Kin replicam o mesmo formato de sandbox para permitir um maior desenvolvimento do mundo desses games e contar histórias a partir de cenários mais detalhados. Os dois também têm outra coisa em comum: a temática voltada ao terror – ou com pinceladas do gênero.

Engolasters January 2021 foi feito em 2017 para a 39º Ludum Dare, durante a parte final do desenvolvimento de The Red Strings Club. Foi uma busca por novidades dentro da equipe, depois de anos trabalhando no mesmo projeto. Na história, uma ufóloga precisa decidir entre tentar manter sua família unida ou ir atrás do que pode ser o primeiro contato entre humanos e alienígenas.


O interessante aqui são as escolhas que o jogador é obrigado a fazer por meio das mecânicas. A protagonista deve dirigir até diferentes lugares do mapa para resolver os puzzles, mas a quantidade de gasolina no carro é limitada, assim como a bateria no celular da cientista, usado para registrar os encontros com ETs e para se comunicar com a família. Porém, a falta de refino nas mecânicas pode tornar a experiência um pouco frustrante. Se o jogador abrir o mapa, o carro começa a andar; é fácil clicar em opções de diálogo sem querer; o controle do veículo no gelo é irritante.

Já Dear Substance of Kin, lançado dois anos depois, em 2019, também para uma Ludum Dare, aprimora a fórmula sandbox de Engolasters January 2021. Esse é um jogo de visual e temáticas mais sombrias. O protagonista é uma criatura mitológica que visita vilas em busca de oferendas – órgãos humanos. Em troca, realiza desejos para os chefes das famílias sacrificadas.

O sombrio mundo de Dear Substanse Of Kin foi idelizado por Jordi di Paco quando o escritor estava tirando cartas de tarô.

Cabe ao jogador escolher os sacrifícios exigidos e a forma como irá realizar os desejos, que podem ser vistos ao final do jogo. É um jogo mais refinado do que o citado acima e faz um recorte muito interessante do universo criado pelo estúdio. Jordi di Paco, responsável pela escrita dos games, teve a ideia para o mundo de Dear Substance of Kin tirando cartas de tarô.

Por trás de todo grande homem

Gabriel é um pintor de sucesso, sempre motivado a criar quadros mais ambiciosos. E maiores. Victorine, por outro lado, não possui grandes paixões, mas ela, como uma boa esposa, apoia Gabriel. Behind Every Great One é o melhor jogo de Essays on Empathy. Na pele da dona de casa, o jogador deve limpar, cozinhar, fumar e sentar às noites para jantar com seu marido.


Desenvolvido em 2018 para a 43º Ludum Dare, o jogo é difícil. Não mecanicamente, mas em suas temáticas. Abordando de forma realista as dinâmicas de uma relação abusiva, na qual Victorine sente a pressão de se sentir grata por não precisar trabalhar, mas também a culpa por ser infeliz. O estado mental da personagem é traduzido de forma magistral pelas animações do jogo, mudando a postura da personagem e a forma como ela anda durante crises de ansiedade.

A história é inspirada nas vidas dos próprios desenvolvedores. É um dos primeiros jogos do Deconstructeam a se passar no mundo real, longe de apetrechos futuristas e naves extraterrestres. Behind Every Great One inaugura uma nova fase na desenvolvedora, mais introspectiva.










Impostora

11:45 A Vivid Life é o jogo mais curto da coleção, mas com fator de rejogabilidade. Na história, uma garota descobre que seu esqueleto não é mesmo dela, então rouba uma máquina de raio X e foge para investigar o próprio corpo.

Assim como em todos os jogos da seleção, as ideias são interessantes. O jogador escolhe a origem de cada um dos objetos encontrados no corpo da garota, depois de passar alguns minutos procurando por coisas estranhas na radiografia. Assim, a história pode ir desde um drama familiar, passando por histórias de guerra, terror e ficção científica. Existem seis caminhos diferentes para seguir.


Talvez 11:45 A Vivid Life seja a narrativa mais experimental de Essays on Empathy, dando total liberdade para que o jogador decida o tipo de história a ser narrada. E apesar de não ter um final canônico, a última cena do game sempre faz você pensar que estava completamente errado em tudo. A temática de autoconhecimento funciona, assim como os diferentes caminhos narrativos. Apesar disso, a premissa é mais interessante do que o jogo em si, que acabou sendo um dos mais desinteressantes da coletânea. Talvez, assim como em Zen and the Art of Transhumanism, essas ideias sejam melhor aproveitadas em um futuro jogo comercial mais bem desenvolvido.

Um presente de aniversário

Você decide visitar a casa de três amigos no dia do seu aniversário. O que você espera receber de presente? Quem sabe um livro, um par de meias azuis ou uma garrafa de vinho, para nos lembrar como este texto começou. Mas e se você é um artista e seus amigos são, na verdade, os três membros de um estúdio independente de jogos? Nesse caso, seu presente de aniversário é um game desenvolvido por vocês mesmos.


The Bookshelf Limbo foi desenvolvido em fevereiro de 2020 em conjunto com Ivan Papiol, o amigo aniversariante de Paula, Marina e Jordi. A premissa é simples: é aniversário do seu pai e você vai a uma livraria comprar um livro em quadrinhos como presente.

O protagonista precisa escolher entre aproximadamente dez livros, cada um com sua própria premissa, análises online, citações na capa. Durante o jogo, percebemos que cada escolha irá dizer uma coisa diferente sobre você para seu pai e, assim como em 11:45 A Vivid Life, transforma o game em uma narrativa de autoconhecimento.


Você pode escolher o caminho mais fácil e comprar um quadrinho de porradaria, sabendo que vai agradar e fugindo de qualquer mensagem mais íntima sobre você. Mas também pode escolher presentear seu pai com um livro mais reflexivo, sobre relações parentais ou sexualidade. The Bookshelf Limbo é charmoso e eficaz. Com menos de 20 minutos de gameplay, consegue gerar reflexões interessantes e conquistar o jogador.

A cereja do bolo

O décimo e último jogo da curadoria vem para presentear os fãs com algo novo. De Tres al Cuarto foi desenvolvido exclusivamente para Essays on Empathy e é o game mais longo da coletânea, com cerca de 90 minutos de duração. É também o primeiro jogo lançado pela equipe depois do começo da pandemia de COVID-19, durante um período de recuperação de Paula, Marina e Paco – e de todos nós.


É o primeiro game de comédia do Deconstructeam. Nele, um casal de humoristas de pouco talento faz pequenos shows na praia. Fora dos palcos, o jogador pode escolher entre se embebedar nos bares da cidade, voltar ao hotel para descansar, nadar pelado no mar, jogar videogames...

O ato de comédia feito pelos protagonistas em palco é feito por meio de um jogo de cartas. Os elementos de deckbuilding são simples. Você ganha dinheiro a cada acerto nas apresentações e depois pode usar essas moedas para melhorar seu repertório. Porém, como o intuito é de que a dupla não seja lá muito boa, dificilmente você terá bons resultados com seu baralho e é preciso se contentar com resultados medíocres.

Inspirados em Disco Elysium, o estúdio adicionou um espaço à direita da tela com “The Hidden and the Unkwown” (O Escondido e o Desconhecido). Roubando a ideia dos pensamentos do jogo da ZA/UM, o jogador pode ler o que se passa na mente dos protagonistas durante os momentos fora das apresentações. O jogo também nos conta acontecimentos futuros e de realidades alternativas.

Os momentos fora dos shows de comédia, com The Hidden and the Unknown ao lado, são os melhores do jogo. Talvez até de toda a antologia. Os personagens se desenvolvem pelo dito e pelo não dito – que nos é contado longe dos olhares dos protagonistas. A escrita da equipe aqui está em seu melhor momento, com um tom humorístico interessante para os cenários deprimentes do jogo. É também muito acertada a decisão de entregar a história já em andamento aos jogadores.

Escrever comédia não é fácil, como os próprios desenvolvedores dizem no documentário. Porém, eles se apoiam na premissa de que Bonachera e Garza não são bons humoristas, o que dá a desculpa perfeita para as piadas sem graça em palco. Os momentos de apresentação podem se tornar um pouco repetitivos, o que é intencional, reproduzindo a rotina monótona de artistas que encenam o mesmo ato todas as noites. Mas não deixa de ser entediante para o jogador, até porque os melhores momentos vêm depois dos shows.


De Tres al Cuarto é um final perfeito para Essays on Empathy, tanto pelos seus acertos como por seus poucos erros. É conciso e introspectivo, focado na narrativa e dando diferentes caminhos ao jogador. O jogo representa bem a evolução do Deconstructeam ao longo dos seis anos de obras presentes na coletânea.

Identidade

O estilo visual do Deconstructeam é marcante. Quem jogou The Red Strings Club sabe. E isso é uma constante em todos os jogos de Essays on Empathy. As dez obras da antologia mantêm um estilo pixelado minimalista e charmoso, com cores chapadas e movimentos concisos.

Marina González é a principal animadora do estúdio e merece todos os reconhecimentos por conseguir criar uma identidade visual marcante e efetiva. Mesmo com pouco, os personagens criados por ela são expressivos. O maior exemplo disso aqui, como já citado, é em Behind Every Great One.

A trilha sonora, feita sempre por Paula “Fingerspit”, também merece, e muito, reconhecimento. Ao longo dos dez jogos, a parte sonora é impecável. Também minimalista, com muito uso de efeitos de ambiência.


Em Zen and the Art of Transhumanism, a musicista teve a ideia de fazer com que a trilha sonora fosse uma estação de rádio, em referência aos rádios sempre ligados em oficinas e mecânicas, e assim podendo modificar as músicas mesmo que o cenário seja sempre o mesmo.

Já em De Tres al Cuarto, Paula faz uma distinção sonora entre os momentos de palco e os momentos de conversa entre os protagonistas. Durante as apresentações na praia, a trilha está sempre ao fundo, sendo abafada pelos sons da plateia conversando e tossindo – assim como o próprio show dos personagens está sendo ignorado pelo público. Nos momentos de intimidade, a música ganha uma nova vida, marcada principalmente por melodias de piano inspiradas em jazz.

Desconstrução

Essays on Empathy é um passeio pela história do Deconstructeam e também pelo amadurecimento de Paula, Marina e Jordi. Ao longo de dez jogos, acompanhamos a trajetória e as mudanças no estilo do estúdio, o aperfeiçoamento na forma sutil de abordar temas sociais.

O documentário é uma ótima adição ao pacote. Eu diria que é essencial assistir aos vídeos para apreciar a coletânea em sua totalidade, principalmente porque a maioria dos jogos tem falhas estruturais, já que foram feitos em pouquíssimo tempo. Além das entrevistas, cada um dos jogos é acompanhado por uma galeria com imagens de seu desenvolvimento.


Nem todo mundo vai gostar de Essays of Empathy. É interessante conhecer primeiro as duas principais obras do Deconstructeam: Gods Will Be Watching e The Red Strings Club. E se você não se importa muito com o desenvolvimento de videogames e o processo por trás da arte, talvez se decepcione um pouco.

Ao longo dos dez jogos, fica provada a competência da desenvolvedora em construir histórias cativantes e delicadas, sempre com trilhas sonoras impactantes e visuais charmosos. Algumas ótimas gemas estão aqui, com destaque para Supercontinent LTD, Behind Every Great One, Eternal Home Floristry e De Tres al Cuarto.

Prós

  • Escrita imersiva e delicada, tratando de assuntos sociais e políticos;
  • Narrativas não lineares, com grande fator de rejogabilidade;
  • Ambientações charmosas, com estilo visual simples e trilha sonora imersiva;
  • Comentários interessantes sobre o processo de se fazer jogos.

Contras

  • Falta de refino em vários jogos;
  • Não está disponível em português.
Essays on Empathy - PC - Nota: 8.5

Revisão: Ives Boitano
Análise produzida com cópia digital cedida pela Devolver Digital

Jornalista londrinense se aventurando na terra dos Beatles. Fã de metroidvanias e survival horrors, tentando entrar no mundo dos JRPGs. Opino sobre coisas que ninguém quer saber no Twitter.
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