Discussão

Autismo e videogames: por que autistas se interessam tanto por jogos?

Segundo dados, quase metade das pessoas no espectro autista joga, mas por quê?


Sabe aqueles prólogos de filmes comerciais? Quando paisagens incríveis são mostradas e começa a tocar uma trilha sonora crescente enquanto entra o narrador? É assim que eu queria que essa matéria começasse. Eu, sendo o narrador, usaria as seguintes palavras, abusando de uma das formas mais clichês de começar uma história e de uma voz extremamente séria: “Meu nome é Rafael Felipe Santos Isenof, tenho 22 anos e sou autista”.



Sentem o impacto? Não? Enfim, esta é minha primeira matéria de verdade para o GameBlast e eu tinha que falar sobre esse tema, começando o texto de forma dramática e um pouco peculiar. Este sou eu, um cara dramático e peculiar do norte do Paraná e, dentre outras “caixas” em que eu posso ser colocado, eu sou um autista apaixonado pelo mundo dos jogos.

Eu venho aqui com alguns objetivos em mente: acabar com alguns preconceitos relacionados aos autistas, trazendo algumas reflexões, e falar um pouco da minha paixão pelos games, paixão compartilhada por muitas pessoas, sejam elas autistas ou não.

Estudos apontam que 41,4% das crianças e adolescentes no espectro autista são adeptos dos games, porcentagem que contrasta com os 18% das crianças e dos adolescentes neurotípicos (termo utilizado para indicar pessoas fora do espectro). Nesse diapasão, resta evidente, logo de cara, que autistas “tendem” a se interessar mais por jogos.

Existe uma série de fatores que pode explicar tal constatação, sendo o mais comumente utilizado aquele relacionado à dificuldade de sociabilização que muitos autistas têm. Os jogos podem funcionar, nesse sentido, como formas de promover um contato social diferente, de se distanciar um pouco da realidade ou simplesmente como um passatempo. A verdade é que cada autista é único e, por mais que existam algumas características comuns, não existe uma regra geral. Prova disso é que muitos autistas têm facilidade muito grande com a comunicação, provando que, acima de tudo, nós somos humanos, cada um na sua humanidade.

Outra explicação plausível se relaciona ao fato de que pessoas neurodiversas costumam ter o que chamamos de hiperfocos, interesses restritos a um tipo de tema ou assunto. Pode ser, por exemplo, um hiperfoco em dinossauros (relativamente comum), Pokémon (um dos meus hiperfocos), plantas, literatura polonesa ou games. Assim sendo, dada a incrível diversidade e possibilidades que os jogos trazem, muitos autistas compartilham a paixão pela jogatina, existindo grupos específicos para discussões e formação de equipes. É muito fácil se apaixonar pela imersão que os games trazem e isso não é diferente para a comunidade autista.



Existem jogos que podem estimular a alfabetização de uma criança, ajudar na socialização de um adolescente e ajudar um adulto a esquecer dos problemas do cotidiano. É impossível imaginar um mundo sem os games e... Sinceramente? Por quê?

É claro que alguns cuidados básicos devem ser tomados, como a imposição de limites próprios, o que é bem importante, sobretudo para diferenciar hiperfoco e vício. 

Cabe rememorar, ainda, que nada aqui dito é regra geral. Existe todo um espectro no autismo. Falar em TEA (Transtorno do Espectro Autista) não significa falar em crianças antissociais que ficam “presas” em casa jogando o dia inteiro. Autistas crescem, autistas são diferentes, autistas amam jogar e autistas odeiam jogar.

Minha história



O mundo dos games “sempre” fez parte da minha vida. Cresci jogando Age of Empires, me tornei o campeão de Kanto, Johto, Hoenn, Sinnoh, Unova, Kalos e Galar, passei horas na frente do PS2 e carregando meu DS por aí. Os jogos, querendo ou não, fizeram parte do meu processo de crescimento e amadurecimento. Antes de eu ser diagnosticado autista, eu já era um “gamer”, sempre muito interessado. Sei que as duas coisas, intrinsecamente, não estão ligadas, mas, para mim e para muitos outros, elas caminham juntas. 

Podemos aprender muito com os jogos, desde como amadurecer, até regras sociais... Podemos questionar nossa moralidade: o que seria mais “correto”, salvar quem amamos ou impedir que um furacão destrua nossa cidade?

Hoje, tenho 22 anos, joguei muitos jogos (menos do que eu gostaria, admito) e sou defensor e ativista dos direitos dos autistas. Eu cresci para ver personagens autistas em games, eu vi um personagem específico com Síndrome de Asperger em Watch Dogs 2 e vibrei. Foi quando eu entendi na pele o que é representatividade. Aquele personagem poderia ser eu, aquele personagem pode ser eu. 



Nós, autistas, estamos em todos os lugares e sim, muitos estão envolvidos com jogos de alguma forma. Alguns estão segurando controles, outros estão produzindo novos games e tem um escrevendo esse texto para o GameBlast (hehe).

Lembra quando eu falei sobre prólogos clichês de filmes? Nada mais justo que terminar com um plot twist. Sabe a pergunta do título? Então, ela não tem bem uma resposta. É a mesma coisa que perguntar “por que a humanidade se interessa tanto por jogos?”. Aliás, tem como não se interessar?

Revisão: José Carlos Alves
Arte de capa: Rafael Isenof

é estudante de Jornalismo e Direito, atuando como escritor, podcaster e pseudocrítico, seja de cinema ou jogos. Sua paixão pelo mundo dos games começou logo cedo e ele sempre sonhou em viver uma grande aventura como Nathan Drake ou Lara Croft, desbravar o mundo Pokémon como o Red e ter a coragem e a determinação de Ezio Auditore. Contato: @rafael.isenof (Instagram); isenof.contato@gmail.com.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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